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1222 – Anne Holt

COMO O MAQUINISTA foi o único que morreu, não se pode falar de catástrofe. Quando devido a umfenômeno meteorológico que contínuo sem entender totalmente, o trem descarrilou e não entrou como devia no túnel de Finsenut, havia 269 pessoas a bordo. Um maquinista morto constitui só uns 0,37 por cento do número total do grupo. Levando em conta as circunstâncias, fomos muito afortunados. Ainda que no choque houvesse muitos feridos, na maioria foram ferimentos leves: pernas ou braços quebrados, traumatismos, arranhões, machucados diversos e pequenos cortes; apenas uma pessoa no trem não ficou fisicamente marcada pelo choque, foi como eu já falei, a única vítima mortal. Mas, pelos gritos que atravessaram o trem nos minutos seguintes ao acidente, parecia que acontecera uma grande catástrofe. Permaneci muito tempo sem falar com ninguém. Estava convencida de que era uma dos poucos sobreviventes, e, além disso, tinha nos braços um bebê desconhecido. Chegou-me pelo ar vindo de trás quando acontecera o choque, me roçou o ombro e bateu contra a parede que havia bem na frente da minha cadeira de rodas, antes de aterrissar sobre os meus joelhos comum suave golpe. Em um ato reflexo abracei o vulto, que não parava de chorar. Voltei a respirar e notei o seco aroma a neve. A temperatura caiu em um espaço de tempo assustadoramente breve, passando de um desagradável calor estático a um frio desses que causam danos por congelamento. O trem se inclinou. Não muito, mas o bastante para que começasse a me doer umombro. Estava sentada na parte esquerda do compartimento, e era a única usuária de cadeira de rodas de todo o trem. Uma parede de um branco acinzentado fazia pressão contra a janelinha do meu lado. De repente compreendi que nos salvaram as enormes quantidades de neve; sem elas, o trem teria virado. O frio era paralisante. Em Hønefoss, a cinquenta quilômetros de Oslo, havia retirado o casacão. Agora usava só um casaco e blusa e apertava contra o meu peito o bebê, enquanto constatava que estava nevando dentro do compartimento. Tinha a pele desnuda dos braços tão fria porque os flocos que caíam pousavam nela num gelado segundo, antes de se derreter. Todas as janelinhas do lado direito do vagão haviam se quebrado. O vento devia ter aumentado nos escassos minutos transcorridos desde que o trem havia se detido na estação de Finse para que os passageiros subissem e descessem. Só haviam descido dois. Certo é que havia prestado atenção em como se encolhiam contra o temporal quando percorriam a plataforma em direção à entrada do hotel, mas não parecia pior que o mal tempo habitual na alta montanha.


Ali sentada, com o meu casaco envolvendo o bebê, e incapaz de alcançar o meu casacão, temia que o vento ficasse tão forte e a neve tão fria que pudéssemos morrer congelados em pouco tempo. Inclinei-me o melhor que pude sobre o bebê. Agora, ao voltar os olhos para trás, não saberia dizer quanto tempo permaneci ali sentada, sem me dirigir a alguém, sem dizer nada, com os gritos dos outros passageiros como fragmentos desconexos de som no compacto rugido do vendaval. Talvez se tivessem se passado dez minutos. Provavelmente só alguns segundos. — Sara! Uma mulher nos olhou colérica, a mim e ao bebê, que era todo rosa, desde a camisola até as minúsculas calças. Também os pequenos punhos que eu tentava proteger com as mãos e o rostinho furibundo que não parava de chorar tinham uma delicada cor rosada. O rosto da mãe, em troca, estava vermelho com o sangue. Um profundo corte em sua testa sangrava copiosamente. Isso não a impediu, não obstante, de me arrancar a criança. O meu casaco caiu no chão. A mulher envolveu o bebê em uma manta com tanta habilidade e rapidez que não poderia se tratar de seu primeiro filho. Cobriu a cabecinha com a manta, apertou-a contra o peito e me gritou em tom acusador: — Eu caí! Estava na parte dianteira do vagão, e nesse momento eu caí. — Está tudo bem, disse eu, depressa; tinha os lábios tão rígidos que me era difícil falar. — Sua filha, pelo que parece, está ilesa. — Eu caí, soluçou a mãe, tentando dar chutes sem me alcançar. — Sara também caiu! Liberada do pesado bebê, eu apanhei o casaco e o vesti. Ainda que estivesse a caminho de Bergen, onde me esperavam uma chuva torrencial e dois graus de temperatura, havia trazido apenas um leve casaco. Sem um gorro, colocara um grande lenço ao redor da cabeça. Não trouxera luvas. — Relaxe, disse colocando as mãos nas mangas do casaco. — Sara está chorando. É umbom sinal, creio. Pior é que… Fiz um gesto em direção a sua testa. Ela ainda não tinha notado.

A criança continuava chorando, e não se deixava tranquilizar, apesar de que a mãe tentava protegê-la do frio com o seu casacão de pele demasiado estreito. O sangue continuava escorrendo da testa e me atreveria a jurar que congelava antes de chegar ao chão inclinado, que já estava escorregadio de neve, sangue e gelo. Alguém havia pisado numa caixinha de suco de laranja. Um pedaço de gelo amarelo jazia como uma enorme gema de ovo no meio da brancura. No meu corpo não entrava calor. Ao contrário, era como se a roupa piorasse a situação. É certo que o intumescimento estava desaparecendo pouco a pouco, mas era substituído por uma aguda dor. Tremia tanto que tive que apertar os dentes para não machucar a língua. Sobretudo queria virar a cadeira de rodas, para ver de onde vinham os gritos, o choro de uma mulher que devia estar bem atrás de mim e a cascata de maldições e blasfêmias vindas de uma voz que soava como se pertencesse a um adolescente. Queria descobrir se haviam mortos, da magnitude das lesões dos sobreviventes, e de se seria possível tapar as janelas nos lugares por onde estava entrando o vento. Queria me virar, mas era incapaz de retirar as mãos das mangas do casaco. Queria olhar o relógio, mas não suportava a ideia do frio na pele. O tempo estava totalmente confuso como os torvelinhos de neve fora do vagão, um caos cinzento com raios azuis vindos dos tubos das lâmpadas fluorescentes do compartimento, que já haviam começado a piscar. Não entendia como podia fazer tanto frio. Devia ter se passado mais tempo desde o choque do que eu pensava. Devia fazer mais frio do que o maquinista havia informado pelos alto-falantes ao entrar na estação de Finse. Havia advertido aos fumantes que estávamos a vinte graus abaixo de zero e não era momento de aproveitar os dois minutos da parada para fumar na plataforma. O homem devia de ter se equivocado. Já estivera muitas vezes à vinte graus abaixo de zero. E nunca o sentira como desta vez. Fazia um frio mortal, e meus braços se negaram a obedecer quando por fim decidi olhar o relógio. — Olá! Um homem acabava de forçar as portas automáticas de vidro que ficavam junto às prateleiras para a bagagem. Estava com as pernas separadas no chão inclinado, usava traje de moto de neve, um enorme gorro de pele e um par de óculos alpinos amarelos. — Vim resgatá-los! Gritou no dialeto do lugar, descendo os óculos até o pescoço. — Mantenham a calma! O hotel é aqui ao lado! Não conseguia pensar o que podia fazer um só homem em um compartimento cheio de gente gemendo.

Mas, foi como se a sua mera presença tivesse um efeito tranquilizador em todos nós. Até o bebê de rosa parou de chorar. O jovem que proferia maldições sem parar desde o choque gritou a última: — Merda, já era hora de vir alguém! Cago na mãe que o pariu! E com isso se calou. Pode ser eu que tivesse adormecido. Talvez estivesse a ponto de morrer congelada. Ao menos o frio já não me irritava tanto. Tinha lido sobre isso. Ainda que não queira dizer que notara esse calor agradável e sonolento que segundo dizem inicia a morte por congelamento, o certo é que não os dentes já não tocavam castanholas. Era como se meu corpo tivesse decidido mudar de estratégia. Já não queria lutar e tremer. Notava como um músculo após outro cedia e relaxava. Ao menos na parte do corpo onde ainda tenho mobilidade. Não sei com certeza se adormeci. Mas existe algo que não lembro. Nosso salvador deve ter ajudado muitos feridos antes que eu despertasse sobressaltada. — Que diabos… Estava inclinado sobre mim. Sua respiração me queimava a face, e acho que sorri. No mesmo instante se pôs de joelhos e observou detidamente os meus joelhos. Ou na realidade foi a minha perna que olhou. — É paralítica? Tem as pernas paralisadas? De antes, quero dizer. Não tive vontade de lhe responder. — Johan! Gritou de repente, sem se levantar. Johan! Venha aqui! Isso significava que já não estava sozinho. Ouvi o motor de um carro através da ventania, e com as lufadas do vento vindo de fora entrou um suave aroma de gases de tubo de escape. O ruído ia e vinha, se ouvia cada vez mais forte, para em seguida desaparecer, o que me fez pensar que havia muitas motos de neve chegando.

O tal Johan se colocou de joelhos e coçou a barba ao ver o que o seu companheiro apontava. — Tem a perna atravessada por um bastão de esquiador, disse por fim. — O quê? — Tem um bastão de esquiador lhe atravessando a perna. Balançou a cabeça fascinado. — A rodinha se quebrou com o golpe e pressiona as pernas, mas é o próprio bastão… De repente não era capaz de lhe ver a cabeça. — Está saindo uns vinte centímetros do outro lado! Gritou. — Sangrou. Na realidade sangrou muito. Tem frio? Quero dizer… Tem mais frio que o normal…? Parece que o bastão está algo torcido, de modo que… — Não podemos arrancá-lo, disse o homem dos óculos alpinos em uma voz tão baixa que apenas podia ouvi-la. — Se fizermos isso ela morrerá, pois perderá sangue demais. Que idiota colocou aqui dentro um par de bastões? Olhou ao seu ao redor com gesto de reprovação. — Teremos que levá-la em seguida, Johan. Mas o quê faremos com o bastão? Não me lembro de mais nada. Das 269 pessoas que estavam no trem número 601 que vinha de Oslo e se destinava a Bergen, na quarta-feira 14 de fevereiro de 2007, só morreu uma. Era o maquinista que conduzia o trem, e seguramente não teve tempo de se dar conta do que estava acontecendo antes de morrer. Não chocamos contra a montanha em si. Ao pé da montanha de Finsenut, um tubo de concreto perfura a rocha, como se alguém tivesse pensado que o túnel de mais de dez quilômetros não fosse suficientemente longo e precisasse que adicionassem uns metros de feio cimento na bonita paisagem do lago de Finse. A investigação posterior mostraria que o descarrilamento aconteceu a uns dez metros da abertura do túnel. A causa foi uma extensa formação de gelo nas vias. Muitos tentaram me explicar como pôde acontecer algo assim. No transcurso da hora prévia ao acidente passaram dois trens cargueiros na direção contrária. Se eu entendi bem, haviam levado o ar mais quente do túnel ao de fora cada vez mais frio, mais ou menos como na bomba de uma bicicleta. Como o ar frio tem menos capacidade que o ar quente de conservar a umidade, a água condensada dentro se convertera em gotas que caíram no chão em forma de gelo. E mais gelo. Tanto gelo que nem sequer o peso de um trem consegue quebrálo a tempo.

A posteriori, pensei que o tubo de concreto, cuja finalidade então fui incapaz de entender, fora colocado ali para assegurar um esfriamento gradual do ar dentro do túnel. Até agora ninguém conseguiu me dizer se tenho razão ou não. Não entendo como um fenômeno meteorológico que é conhecido desde tempos imemoriais pode ocasionar o descarrilamento de um trem em uma via férrea que está funcionando desde 1909. Vivo em um país de incontáveis túneis. Os noruegueses deveriam ser doutores em assuntos de neve, gelo e ventanias na montanha. Mas neste milênio de alta tecnologia, comaviões e submarinos atômicos, colocação de veículos em Marte, clonagem de animais e cirurgia a laser de precisão nanométrica, algo tão simples e natural como o ar de um túnel unido a uma ventania invernal na montanha pode fazer descarrilar um trem e jogá-lo contra um enorme tubo de concreto. Não entendo. Mais tarde o acidente recebeu o nome de Catástrofe de Finse. Como de fato não se tratou de uma catástrofe, mas sim de um acidente importante, cheguei à conclusão de que essa denominação se deve a tudo o que aconteceu em e ao redor da estação ferroviária, a 1.222 metros sobre o nível do mar durante as horas e dias seguintes ao choque, enquanto o vendaval se convertia no pior de sua espécie em mais de cem anos. Quando voltei a mim jazia no chão de uma deteriorada recepção de hotel. Um desagradável e intenso aroma de lã úmida e ensopado de carne me entrava pelo nariz. Bem em cima do meu rosto, uma rena dissecada olhava para o vazio com olhos de vidro. Sem ver, intuí que a sala estava cheia de gente; gente chorando, gente muda ou falando com agitação. Tentei me levantar lentamente. — Não faça isso, disse uma voz que reconheci do trem. — Tenho que ir embora, disse ofuscada para a rena. O homem do traje azul de moto entrou de repente em meu campo visual. Pela maneira como se inclinava, com a cabeça entre o meu corpo e o animal, parecia ter chifres. — Ficará aqui um tempo, disse com um sorriso. — Como todos os demais. Meu nome é Geir Rugholmen. E o seu? Não respondi. Não tinha intenção alguma de fazer novas amizades nessa viagem. Certamente, Finse não estava ligada por estrada com o mundo exterior.

A histórica estrada de Rallar está fechada ao tráfico normal de automóveis inclusive no verão. No inverno é, no melhor dos casos e em dias de bom tempo, uma pista para as motos de neve. Ainda com os restos de um trem no meio da via de Bergen, e um vendaval que parecia que arrefecia, eu continuava pensando que era só uma questão de tempo que chegassem as enormes máquinas de tirar neve do Ferrocarril Nacional Norueguês vindas de Haugastrl ou Ustaoset, ao este da região. Eu não chegaria a Bergen no momento, mas tampouco ficaríamos muito tempo em Finse. Talvez umas horas. Nenhuma razão para fazer novos amigos. Entre os passageiros do trem acidentado, oito eram ser médicos, uma feliz superrepresentação dessa profissão devido a que sete deles iam participar de um congresso sobre tratamento de queimaduras no Hospital Universitário de Haukeland. Também eu me dirigia para lá quando o trem descarrilou. Não para participar do congresso de queimaduras, claro, mas para consultar um especialista norte-americano em sequelas de fraturas da coluna. Desde que em uma noite de Natal de 2002 levei um tiro nas costas que me deixou paralítica da cintura para baixo, o resto do corpo começou também a apresentar problemas. Demorei algum tempo em me dar conta de que não ouvia tão bem como antes. Quando o tiro me alcançou, caí no chão e bati a cabeça, e os médicos concluíram que com essa caída danifiquei o nervo auditivo. Não tem importância. Não dependo em absoluto de um aparelho de audição. Sobretudo porque raramente falo comoutras pessoas e porque os televisores têm um botão com o qual se pode subir ou abaixar o volume. Mas às vezes me custa respirar. De vez em quando noto uma pontada espasmódica na região lombar. Coisas assim. Pequenas, em minha opinião, mas me deixei convencer. Diziam que esse americano era fabuloso. Assim então, sete dos oito médicos do trem eram especialistas em um tipo de machucado que não nenhum de nós sofria. O oitavo, ou a oitava, uma mulher de sessenta e tantos anos, era ginecologista. A mim me tratou o anão. Não devia medir mais de um metro e quarenta de altura. Por outro lado, media tanto de largura quanto de altura, tinha uma cabeça demasiado grande para o corpo, e os braços mais curtos que jamais vi, inclusive em um anão.

Tentei não olhá-lo fixamente. Quase nunca saio de casa. Deve-se a muitas coisas, uma delas é que não suporto que as pessoas me olhem. Levando em conta que sou uma mulher de mediana idade e de aspecto normal numa cadeira de rodas, e que por tanto não deveria ser especialmente interessante a alguém, não me custava muito imaginar como devia passar esse homem. Pensei isso quando o homem veio até mim. Alguém havia me colocado uma almofada debaixo da cabeça e já não estava mais obrigada a ficar vendo o focinho da rena, onde a pele havia desaparecido e umas rudimentares costuras revelavam o trabalho pouco profissional do taxidermista. Quando o médico de curta estatura atravessou a habitação com um curioso balançar ao caminhar, se abriu um sulco como quando Moisés dividiu o Mar Vermelho. Todas as conversas silenciaram, inclusive os gemidos e os gritos de dor foram se apagando à sua passagem. Todos o olharam boquiabertos. Fechei os olhos. — Mmm, disse se ajoelhando junto a mim. — O que temos aqui? Sua voz era surpreendente grave. Dado que seria sumamente descortês não olhar ao médico quando ele estava falando comigo, e, com os olhos fechados poderia indicar, além disso, que me sentia pior do que estava, os abri. — Magnus Streng, disse, apertando a minha relutante mão direita com uma mão grande e redonda. Murmurei seu nome, e não pude evitar de pensar que os pais do médico deviam ter umsentido de humor algo peculiar. Magnus. O grande. Olhou-me um instante com os olhos entornados e levantou o dedo indicador. Em seguida seu rosto se dissolveu em um amplo sorriso. — A mulher policial, disse com grande entusiasmo. — Você é a que levou um tiro em Nordmarka há alguns anos, não é? Por aquele… De novo seu rosto mostrou uma expressão caricaturesca e pensativa. Desta vez colocou o dedo sobre a testa antes de sorrir ainda mais: — Por aquele chefe de policia corrupto, não é? Algo houve de… — Isso já faz muito tempo, interrompi. — Tem boa memória. Refreou o sorriso e se concentrou em minha perna. Até esse momento não havia notado que o onipresente Geir Rugholmen havia se sentado ao lado do doutor.

Já não usava o traje de moto. Seu casaco de lã devia de datar da guerra. Os cotovelos desnudos sobressaíam pelas mangas. A calça bombacha teria sido azul em outros tempos, mas estava tão gasta que tinha uma cor acinzentada escura. O homem cheirava a fumaça de fogueira. — Onde está a minha cadeira? Perguntei. — O bastão saiu por si só, explicou Geir Rugholmen ao médico, enquanto ajeitava bem o fumo que mascava com a língua. — Não queríamos tirá-lo, mas tivemos que cortá-lo ao longo da ferida antes de transportá-la até aqui. Então simplesmente… Simplesmente saiu por sua conta. Mas já não sangra muito. — Onde está a minha cadeira? Voltei a perguntar. — Sei que o bastão deveria ter ficado lá dentro, mas… Prosseguiu Rugholmen. — Onde está a cadeira dela? Perguntou o doutor Streng sem tirar o olho da ferida. Havia me rasgado a perna da calça e tive a sensação de que suas mãos eram rápidas e precisas, apesar do tamanho e da forma. — A cadeira? A cadeira de rodas? No trem. — Quero a minha cadeira, insisti. — Mas como vamos voltar lá e…? O doutor levantou os olhos. Apanhou do bolso do peito uns óculos enormes com armação de concha, os colocou e disse em voz baixa: — Agradeceria que alguém fosse apanhar a cadeira de rodas desta senhora. O quanto antes melhor. — Mas sabe o tempo que faz lá fora? Sabe que…? O dedo indicador, já não tão cômico, empurrou os óculos sobre o nariz antes que o doutor cravasse o seu olhar em nosso salvador. — Apanhe a cadeira. Agora mesmo. Creio que você também se sentiria muito incômodo se as suas pernas tivessem ficado no compartimento de um trem, enquanto era transportado para fora dali sem poder fazer nada. Já que vi você e os seus estupendos colegas trabalhar no vendaval, suponho que será relativamente fácil trazer aqui algo tão importante para nossa amiga. De novo aquele amplo sorriso.

Tive a sensação de que o homem o usava conscientemente. Quando no transcurso da conversa começava a esquecer dessa figura de circo, ele se ocupava em seguida de voltar a me recordar. Sua boca nem sequer precisava da tradicional pintura vermelha, pois os seus lábios eram muito grossos. Tudo era muito confuso. Geir Rugholmen se levantou de má vontade, murmurou algo e foi até o cabide, onde havia deixado a sua roupa de neve. — Um homem da montanha, disse o doutor Streng alegremente seguindo-o com o olhar. — E esta ferida tem um aspecto fabuloso. Teve sorte. Com uma boa dose de antibióticos, para maior segurança, tudo terminará muito bem. Ergui-me. Não demorei mais que uns segundos em ver a minha perna. — Tivemos muita sorte, disse em voz baixa, colocando de novo os óculos no bolso. — Isto poderia ter acabado muito pior. Não sabia bem se ele se referia à minha ferida ou ao acidente em si. Sacudiu as mãos como se eu estivesse cheia de pó. Em seguida foi se contorcendo até o paciente seguinte, um assustado garoto de uns oito anos, com o braço colocado numa tipoia provisória. Enquanto tentava ir até o mostrador da recepção com o fim de apoiar as costas, um homem se colocou com as pernas separadas no meio da grande sala. Vacilou uns instantes, antes de tomar impulso sobre uma cadeira e dar um salto até a mesa rústica, de uns cinco ou seis metros de comprimento, colocada sob as janelas que davam para o sudoeste. Devido ao seu considerável sobrepeso, esteve a ponto de cair. Quando recuperou o equilíbrio, vi quem era. Levava ao pescoço um lenço vermelho e branco do clube de futebol Brann. — Queridos amigos, disse com uma voz que parecia estar acostumada a falar em público, — Todos nós acabamos de passar por uma experiência traumática! Parecia realmente entusiasmado. — Claro, pensemos principalmente na família de Einar Holter. Einar Holter conduzia hoje nosso trem. Eu não o conhecia pessoalmente, mas chegou ao meus ouvidos que era um homemfamiliar, um homem querido… — Sua família ainda não foi informada de seu falecimento, interrompeu uma mulher em voz muito alta no outro lado da sala.

De meu lugar não podia vê-la, mas já gostava dela. — Não é muito apropriado fazer um discurso comemorativo nestas condições, prosseguiu a mulher. — Parece-me… — Está bem, disse o homem que havia subido à mesa levantando as mãos para a gente, emum exagerado gesto de bendição. — Simplesmente pensei que seria bom, agora que nos encontramos a salvo e não há ninguém ferido com gravidade, que… — O Brann é uma merda! Gritou alguém, e reconheci em seguida ao descarado rapaz do meu compartimento. O homem que subira à mesa sorriu e abriu a boca para dizer algo. — O Brann é uma merda, repetiu o jovem, e se colocou a entonar o hino de seu time futebolístico, o Vålerenga. — Ótimo, disse o homem do lenço do Brann com um gesto de satisfação. — Alegro-me em ver a juventude. No geral, parece que aqui dentro tudo está se ajeitando, e lá fora também, por certo. Apontou vagamente para a entrada. — Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo lá fora. O tipo quase me dava pena. A gente se ria entre dentes. Alguns assoviavam baixo, como se não se atrevessem de todo a se dar a conhecer, mas quisessem mostrar o seu desprezo. É provável que o homem se deixasse influir por eles. Ao menos quando tentou concluir suas palavras havia abandonado o tom alegre de aleluia. — … Para os que quiserem assistir, terá lugar um pequeno culto de um quarto de hora no salão da lareira. Se alguém precisar ajuda para descer as escadas, é só pedir. Não acho que seja o único… — Cale-se! O menino não desistia. Havia se levantado. Encontrava-se a só um par de metros de onde eu estava sentada, e havia colocado as mãos diante da boca em forma de megafone. — Escute, eu disse em tom severo. Escute! O jovem se virou para mim. Não devia de ter mais de quatorze anos. Seu olhar me foi dolorosamente familiar.

Talvez já saibam. Talvez por isso sempre tentem esconder os olhos, sob a franja ou entornando as pálpebras. Aquele menino cobria demasiado a testa com o gorro. — Escute, eu disse novamente, lhe fazendo um sinal com a mão para que se aproximasse. — Venha cá. Cale-se e venha cá. Ele não se moveu. — Quer que conte a todos os presentes por que está aqui, ou vai se aproximar mais? Para que possamos manter certa… Discrição? Deu um passo vacilante até mim e parou. — Venha aqui, disse em um tom um pouco mais amável desta vez. Um passo mais. Outro. — Sente-se. O menino apoiou as costas contra o mostrador da recepção, se deixando cair lentamente sobre o traseiro. Abraçou os joelhos e não me olhou. — Está fugindo, constatei em voz baixa, em lugar de perguntar. — Vive em uma instituição de proteção de menores. Já esteve em várias famílias de acolhimento, mas sempre jogou tudo à merda. — Besteiras, ele murmurou. — Na realidade, não pretendo discutir com um adolescente como você, que viaja só. Ou acaso faz parte de uma encantadora família que está dando uma volta pelo vendaval? Pode me apontar com quem viaja? — Não tenho catorze. — Treze, então. — Tenho quinze, merda, disse, e bufou. — Talvez dentro de um ou dois anos. — Em janeiro! Há um mês! Quer uma prova?

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