Os termômetros em Washington marcavam –1 o Celsius quando Luiz Inácio Lula da Silva pisou o Salão Oval da Casa Branca pela primeira vez. Era dezembro de 2002 e ainda faltavam vinte dias para a cerimônia da posse em Brasília, mas George W. Bush o esperava de pé com a pompa reservada a chefes de Estado. Tudo naquele dia era incomum. “Um governo esquerdista do PT e um governo conservador do Partido Republicano podem tornarse uma combinação explosiva”, alertou o New York Times. 1 O protocolo dos Estados Unidos não prevê reuniões do presidente com lideranças estrangeiras antes da posse. Bush tampouco tinha o hábito de receber políticos de esquerda, muito menos se eles tivessem um histórico de denúncias contra a política externa americana, como era o caso de seu novo colega brasileiro. Lula conhecia pouco dos Estados Unidos, e seu partido não tinha relações próximas com nenhumcentro de poder norte-americano. Talvez por isso ele estivesse tão ansioso. Durante os últimos dias, ensaiara as respostas que daria às possíveis perguntas de Bush. Ajustara sua mensagem nos mínimos detalhes para evitar surpresas, treinando o conteúdo do que seria dito tanto quanto a linguagemcorporal utilizada para dizê-lo. “Eu era um recém-eleito indo para a Casa Branca”, lembra Lula. “Era tudo novidade.” Achava que o primeiro encontro com Bush, por força de sua simbologia, daria o tom ao início de seu governo. Quando começaram a conversar, o petista e o republicano falaram pausadamente para dar tempo aos intérpretes. Medindo palavras num vaivém coreografado, enfatizaram gentileza e boa vontade. “Senhor presidente”, disse Bush logo de entrada, “nesta cidade há quem diga que uma pessoa como o senhor não pode fazer negócios com uma pessoa como eu. Hoje estamos reunidos aqui para mostrar-lhes que estão equivocadas”. A mensagem era simples, mas Lula a recebeu como uma bênção. Enquanto sorria para as câmeras, ele sabia que o colega americano estava se esforçando para ajudá-lo. Quando se encontraram de novo seis meses depois, Lula e Bush presidiram a maior reunião de cúpula da história entre os dois países, e o relacionamento viveu seu período mais fértil. AO ABRIR AS portas da Casa Branca para o colega recém-eleito, Bush tentava apaziguar os ânimos que tomavam conta da capital americana em relação ao Brasil. O risco-país disparara dos 800 para 2.400 pontos. Uma agência de investimentos lançara umLulômetro para medir a desconfiança do mercado, alimentando as apostas dos agentes financeiros contra a moeda brasileira.
Em Wall Street, ninguém sabia ao certo se Lula honraria os compromissos que vinha assumindo com os grandes bancos. O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Paul O’Neill, chegara a dizer que Lula precisava “mostrar que não é louco”. 2 Algo semelhante ocorria no Congresso dos Estados Unidos. A direita do Partido Republicano tinha ojeriza a Lula. “Preocupa-nos saber”, afirmava uma carta assinada por doze deputados norte-americanos, “que o sr. da Silva, em cooperação com o regime comunista de Fidel Castro, estabeleceu um grupo esquerdista, antiglobalização, chamado Fórum de São Paulo”. 3 Henry Hyde, o presidente da poderosa Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados dos Estados Unidos, adotou um tom ainda mais preocupante: “Há uma chance real de que Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula da Silva possam constituir um eixo do mal nas Américas.” 4 Um periódico de extrema direita acusou a CIA de “negligência e perfídia” por ter permitido a ascensão de Lula. Um comentarista chamou a eleição do PT de “o maior fracasso da inteligência norte-americana desde o fim da Segunda Guerra”. Se os Estados Unidos não forem duros com o novo presidente brasileiro, vaticinou, “George W. Bush terá perdido a América do Sul”. 5 O hiato de dois meses entre a eleição, em outubro de 2002, e a posse, em janeiro de 2003, tinha tudo para ser turbulento. A transição precisava de guardiões. O APOIO pessoal de Bush ao presidente eleito do PT demandou um cuidadoso trabalho de bastidores. Lula despachou José Dirceu para os Estados Unidos e acionou grupos de mídia e banqueiros brasileiros que tinham negócios com a família Bush. Disciplinou as mensagens de sua tropa e abriu um canal reservado com a embaixada americana em Brasília. Lula não fez isso sozinho. Operando junto a ele estava o presidente brasileiro em função —Fernando Henrique Cardoso. FHC enviou seu ministro chefe da Casa Civil, Pedro Parente, em missão à Casa Branca para avalizar o futuro governo petista. O presidente também instruiu seu ministro da Fazenda, Pedro Malan, a construir uma mensagem comum junto ao homem forte de Lula, Antônio Palocci. Eles fizeram uma dobradinha para dialogar com o Tesouro dos Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional e Wall Street. Fernando Henrique ainda orientou Rubens Barbosa, seu embaixador nos Estados Unidos, a prestar todo o apoio a Lula. Em questão de poucas semanas, a embaixada brasileira em Washington tornouse mensageira da oposição recém-eleita. FHC não agiu por benevolência ou simpatia pessoal por Lula, mas puro cálculo político. A sobrevivência do real e do programa tucano de reformas sociais dependia da aceitação, nos mercados internacionais, de um governo brasileiro de esquerda.
FHC apelou para os Estados Unidos em nome de Lula porque a economia se encontrava na berlinda, e uma transição instável poderia destroçar seu maior legado: a moeda estável. FHC tinha um motivo adicional: durante seus oito anos no poder, sentira na pele quão difícil era lidar com os Estados Unidos. Embora tivesse mais acesso à Casa Branca do que qualquer antecessor, FHC aprendera que havia pouco espaço para a cooperação efetiva entre os dois países. Depois de dois mandatos consecutivos, sua relação com os americanos encontrava-se esgarçada. DURANTE A transição, a busca por apoio da Casa Branca fez a antiga rivalidade entre Lula e FHC amainar. Apesar de atritos recorrentes, petista e tucano coordenaram uma ofensiva diplomática comum para reverter a imagem negativa de Lula nos Estados Unidos. Juntos, os presidentes operaram para controlar a reação internacional à ascensão da esquerda brasileira. Fizeram-no cientes de que o núcleo mais hostil ao PT nos Estados Unidos era a direita do Partido Republicano, cuja influência era tão poderosa no Congresso quanto na Casa Branca. Os presidentes mantiveram controle pessoal da iniciativa, colocando homens de confiança no comando e impedindo que seus subordinados se engalfinhassem em conflitos dos quais os chefes poderiam sair perdendo. Nada disso produziu paz entre PT e PSDB. A cooperação para destravar as resistências norteamericanas conviveu com as desavenças e tensões de sempre. A velha agenda de atritos chegou até mesmo a crescer, transformando a política externa brasileira em um dos principais campos de batalha entre os dois partidos. No processo, contudo, os presidentes preservaram aquilo que era sua mensagem comum — a ideia de que, depois de tantas décadas, o Brasil era, finalmente, um país governável. Devido a esse novo ambiente, Bush precisava dar o benefício da dúvida ao PT. ESTE LIVRO revela que a iniciativa conjunta de Lula e FHC teve uma consequência inesperada: levou a diplomacia norte-americana a reexaminar seu relacionamento com o Brasil e elevá-lo ao status de “potência emergente” ainda em 2002, antes mesmo que a economia brasileira deslanchasse ou que a sigla Bric virasse moeda corrente. Pela primeira vez, a Casa Branca espalhou mundo afora a mensagem segundo a qual o Brasil era importante demais para ser ignorado. Não se tratava apenas das dimensões territoriais do país, de sua economia, nem de sua população. O ponto era mais profundo: o Brasil emergente tinha condições inéditas de facilitar ou atrapalhar os interesses dos Estados Unidos no mundo. A principal artífice do novo pensamento foi Condoleezza Rice, professora de Relações Internacionais da Universidade de Stanford e conselheira de segurança nacional do presidente Bush. Ela desenvolveu a tese após a vitória de Lula em outubro de 2002, enquanto sua equipe preparava o primeiro encontro do recém-eleito com o presidente Bush. O raciocínio era assim: em temas como finanças, meio ambiente, combate à AIDS e à pobreza, comércio, proliferação nuclear e estabilidade da América do Sul, o Brasil poderia ser um parceiro útil ou um estorvo sério. De uma forma ou de outra, o país estava fadado a afetar em cheio a política externa norte-americana. Essa lógica mudou a forma como o establishment norte-americano entendia o Brasil. Até então, a preocupação em Washington era se o Brasil abraçaria a concepção de mundo liberal ou não. Agora, o jogo era outro: todos sabiam que o Brasil adotaria um rumo próprio, sem seguir os Estados Unidos a reboque.
O desafio era manter o diálogo mesmo assim. Para Rice, o maior risco era a Casa Branca ficar sem interlocução com o Palácio do Planalto. Bush convenceu-se de imediato da necessidade de um canal de comunicação com Lula. Para ele, seu governo precisava disso porque a América do Sul fugia ao controle. Na Argentina, o povo derrubara quatro presidentes consecutivos com panelaços nas ruas. Na Venezuela, uma fracassada tentativa de golpe contra Hugo Chávez polarizara a sociedade ao ponto da ruptura. Na Bolívia, as eleições daquele ano quase deram vitória a Evo Morales, um líder indígena vinculado à economia cocalera. A Casa Branca sabia que Lula era simpático a muitas dessas transformações. Lula poderia até mesmo discordar dos Estados Unidos em numerosas instâncias. Naquela conjuntura, porém, ele era o único chefe de Estado da região capacitado para dar a Bush aquilo que o presidente norte-americano mais precisava: diálogo de alto nível para entender a região, evitar equívocos e reduzir danos a baixo custo. Em troca pela cooperação, Bush ofereceria a Lula acesso privilegiado e alguma deferência. A direita americana faria negócio com a esquerda brasileira, apesar das discordâncias e dos choques de interesse. ESTE LIVRO narra a empreitada de Lula e FHC para aproximar o PT ao governo Bush durante a transição de 2002. Também conta os bastidores ainda desconhecidos do conflito vivido entre os tucanos e o governo dos Estados Unidos. O resultado é uma história da diplomacia sutil e das táticas políticas brutais de pessoas que atuaram em condições de incerteza, informação escassa, tempo exíguo, interesses contraditórios e a ambição de deixar uma marca na História. No processo, conduziramuma delicada passagem de poder em meio à transição política e social mais dramática do Brasil contemporâneo. A história começa em 28 de outubro de 2002, com o primeiro telefonema de Bush a Lula, e prossegue durante dezessete dias consecutivos até 13 de novembro, data do convite americano para uma visita do petista à Casa Branca. O 18º, que encerra o livro, narra o encontro histórico de 10 de dezembro, quando os dois presidentes se reuniram no Salão Oval pela primeira vez. Dia 1 Segunda-feira 28 de outubro de 2002 Lula passou a noite em claro. A mistura de alegria e ansiedade o impedira de pregar os olhos. Da janela do hotel onde se hospedava em São Paulo, ele ainda ouvia a multidão que celebrava do lado de fora. A vitória custara mais de duas décadas de trabalho. Ao completar 57 anos no dia da eleição, o resultado das urnas parecia um presente de aniversário. “Uma onda vermelha toma conta do país”, repetia a cobertura dos telejornais. Lula tivera 53 milhões de eleitores.
Não se via comoção igual desde a morte de Tancredo Neves. Na história das democracias ocidentais, apenas Ronald Reagan conseguira mais votos. No entanto, qualquer estranho que chegasse ao andar do hotel reservado ao presidente eleito sentiria certo anticlímax. Em vez de celebrar, os assessores continuavam no corre-corre, como se nada tivesse acontecido. Depois da maratona para vencer o segundo turno contra José Serra, eles precisavam transformar a coalizão eleitoral em aliança governista, repartindo milhares de cargos, fatiando o ministério e as autarquias do poder federal, e tomando as rédeas da máquina de governo em Brasília. Eram apenas 10h e Lula já estava exausto. Mas embalado na disciplina adquirida durante os meses de campanha, seguiu o cronograma da jornada à risca. Nos próximos minutos, começaria a receber o chamado de chefes de governo estrangeiros. O ritual dos telefonemas não era mera liturgia diplomática. Na prática, funcionava como mecanismo para transformar o recém-eleito em chefe de governo. E dava a Lula uma oportunidade de investir na química pessoal com seus futuros interlocutores. Se funcionasse, a simpatia poderia facilitar a política externa de seu governo. 1. ATÉ A VÉSPERA, ninguém tinha certeza de que Bush ligaria. Mesmo se ligasse, ninguém sabia quando o faria. O contato da Casa Branca, fosse imediato, seria visto como um gesto de apoio; uma longa demora, como mau presságio. “Havia muita preocupação sobre o telefonema de Bush”, lembra Donna Hrinak, embaixadora norte-americana no Brasil. “Ninguém duvidava de que Bush ligaria para Serra se ele ganhasse, mas ele ligaria para Lula? O sentimento em Washington era o de que Bush não ligaria imediatamente, ele esperaria.” Como Lula era o principal líder de esquerda do mundo naquele momento, não seria estranho se Bush, expoente da direita, o deixasse um tempo na geladeira. Além disso, Bush estava às vésperas da eleição legislativa, e seu cronograma de comícios era frenético. “Vocês precisam ligar”, dizia Hrinak à equipe da Casa Branca. “Liguem assim que possível porque isso vai significar muito aqui.” A decisão final, contudo, cabia a Bush. Na realidade, nem sempre o timing da ligação era friamente calculado pela Casa Branca. Bush levara três dias inteiros antes de ligar para o recém-eleito Álvaro Uribe da Colômbia, seu principal aliado na América do Sul, devido a problemas de agenda.
Bush sabia pouco a respeito de Lula. A imagem que tinha do petista não era melhor nem pior do que aquela desenvolvida pelo establishment norte-americano ao longo dos anos. Acima de tudo, era ambígua. QUANDO LULA APARECEU em cena entre 1978 e 1979, as relações exteriores dos Estados Unidos atravessavamum momento péssimo. Na América Latina, o governo norte-americano estava envolvido em conflitos sangrentos em El Salvador, Nicarágua, Honduras, Panamá, Guatemala e Granada. No Irã, uma revolução havia derrubado o governo aliado a Washington. No Iraque, Saddam Hussein dera um golpe e, ao assumir as rédeas, suspendera relações com o Egito, um bom aliado dos norte-americanos na região. Na África do Sul, o regime colonialista branco, que gozava de apoio dos Estados Unidos, enfrentara mobilizações e focos de luta armada. Na Indonésia, o regime amigo do general Suharto ficara na defensiva diante da pressão popular. No Afeganistão, o governo americano treinara um movimento de resistência que tinha como um dos líderes um homem chamado Osama Bin Laden. Na China, Deng Xiaoping havia iniciado reformas que transformariam seu país em competidor dos Estados Unidos. No fim da década de 1970, a situação da economia americana não era melhor. Uma combinação de estagnação e inflação reduzira o crescimento e elevara o desemprego a seu ponto mais alto desde o fim da Segunda Guerra. O remédio aplicado pelas autoridades foi tão amargo que provocou algumas das maiores manifestações de rua da história do país. COM APENAS 34 anos, Lula começou a contagiar a política brasileira na dianteira de uma onda de greves — 328 delas entre maio e dezembro de 1978. Nos comícios, de pé sobre uma mesa que servia de palco, ele lançava palavras de ordem que a multidão repetia aos gritos, sem megafone nem aparelho de som. A cada avanço dos manifestantes, o regime militar respondia com cassetetes e gás lacrimogêneo. Em um país governado por senhores de uniforme, Lula se transformou em símbolo de denúncia ao autoritarismo. Em Washington, ninguém sentiu medo ou apreensão. O governo dos Estados Unidos já abandonara sua política de apoio aos militares brasileiros. Entre diplomatas norte-americanos, Lula era visto como um homem audacioso que se permitia falar aquilo que ninguém mais tinha a coragem de dizer. Segundo a CIA, tratava-se “mais de um político que de um líder trabalhista”. Sua agenda era moderada: as greves não tinham vínculo com grupos armados nem com vertentes soviéticas, chinesas ou trotskistas. Lula era contrário às táticas de guerrilha e nunca confiara no movimento estudantil. O movimento sindical americano, anticomunista, gostava dele e o avalizava.
2. A maioria dos observadores norte-americanos da época concordaria com o perfil de Lula publicado na edição brasileira da revista Playboy, em 1979. Referindo-se ao vinco na testa, ao olhar vago e à barba profética com uma brincadeira que enfatizava sua natureza benigna, afirmava tratar-se de um “aiatolula tropical”. 3. A grande dúvida daqueles que observavam o Brasil a partir da capital norte-americana era a respeito de como Lula resolveria a tensão entre as duas bandeiras que seu movimento empunhava ao mesmo tempo: socialismo e democracia. “ELEIÇÕES REPRESENTAM apenas uma parte de nosso objetivo de longo prazo, que é a construção de uma sociedade socialista”, disse Lula em 1982. Seu discurso no Primeiro Encontro Nacional do PT, um ano antes, continha quinze referências à palavra “socialismo”. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, no fim de 1985, ele afirmou que o partido tentaria alcançar o poder por meio de eleições, mas, caso isso não fosse possível: “Eu assumo a responsabilidade de dizer à classe trabalhadora que ela tem de procurar outra via.” 4. Lula não apoiou a eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência e como deputado constituinte recusou-se a assinar a nova Constituição democrática de 1988. O PT defendeu o cancelamento da dívida externa, a nacionalização dos bancos e da riqueza mineral e uma reforma agrária que suspendesse a propriedade privada. A campanha presidencial de 1989 contribuiu muito para consagrar a imagem de um Lula radical. Em uma visita aos Estados Unidos, prometeu a suspensão dos pagamentos da dívida externa com uma ameaça: “Ou dão os anéis, ou vão perder os dedos.” O então candidato Fernando Collor denunciou que, se eleito, o PT confiscaria as cadernetas de poupança e até mesmo os quartos das casas da classe média para albergar os sem-teto. Um líder empresarial previu 800 mil empresários deixando o país. 5. Mesmo depois de perder as eleições de 1989, Lula manteve essa mensagem intacta. Em junho de 1990, culpou o capitalismo por uma longa lista de males: escravização, crimes contra os direitos humanos, o genocídio de negros, as câmaras de tortura da ditadura brasileira e até mesmo os fornos de Hitler. 6. Em 1993, o PT falou em “tensionar e esgarçar os limites da ordem existente”. Condenou o “controle das classes dominantes sobre os modos de produção”, e sua plataforma para a eleição de 1994 era antimonopólio, antilatifúndio e anti-imperialista. 7. Só que, ao mesmo tempo, Lula construía pontes. Em março de 1993, pela primeira vez, teve umencontro privado com 25 banqueiros e industriais para mostrar que não era um agitador.
Nos Estados Unidos, muitos enxergavam o PT como uma força progressista, capaz de mobilizar a sociedade para acabar com o autoritarismo. Afinal, o partido participava de todas as eleições, ajudava a domesticar grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, na prática, não buscava revolucionar o sistema. Ao contrário, adaptava-se ao jogo democrático e, em poucos anos, virara um formidável competidor pelos votos do eleitor, seguindo sempre as regras do jogo. 8. Segundo a perspectiva que passou a ser dominante entre os comentaristas americanos interessados em Brasil, o socialismo do PT era mais uma aspiração moral do que um programa político ou econômico: ninguém no partido tinha admiração a Stalin nem planos reais para estatizar os meios de produção. Em um hipotético governo petista, haveria conselhos de trabalhadores em cada fábrica. Mas a propriedade privada continuaria sendo a base do sistema. A melhor prova era a capacidade do partido de conquistar o apoio da classe média urbana. 9. Essa imagem benigna ganhou força quando o PT se tornou o partido da ética, liderando a CPI contra a corrupção no governo Collor, que incriminou da ministra da Fazenda à primeira-dama. Na perspectiva dos setores da máquina governamental dos Estados Unidos que lidavam com o Brasil, Lula era uma promessa de superação do legado autoritário. Segundo essa perspectiva, o PT estava longe de ameaçar a jovem democracia brasileira: ao contrário, era a encarnação do experimento democrático no país. BASTA OLHAR QUALQUER ÁLBUM de fotos para perceber a transformação de Lula por volta de 1995. Com 50 anos de idade, ele abandonou o que lhe restava do tom desafiador. Após perder para FHC no primeiro turno das eleições de 1994 e sofrer uma derrota na disputa pelo controle de seu próprio partido, embarcou nas chamadas “Caravanas da Cidadania”, que o levariam a conhecer mais do Brasil do que qualquer outro político. O PT passou a aceitar o financiamento de grandes empreiteiras e, antes mesmo que Fernando Henrique iniciasse o processo de privatizações, prefeitos petistas como Antônio Palocci (Ribeirão Preto) e Luiz Eduardo Cheida (Londrina) venderam empresas municipais para a iniciativa privada. Em 1997, Lula comprometeu-se com a estabilidade de preços, a responsabilidade fiscal e o cumprimento de contratos e obrigações. Deixou de lado a expressão “socialismo” para propor uma “revolução democrática”. As campanhas petistas para a prefeitura de São Paulo passaram a empregar cabos eleitorais pagos e uma equipe de marketing profissional, apresentando um “PT cor-de-rosa” diferente da tradição classista do partido. Lula não precisou abandonar sua interpretação do mundo para dar essa guinada. Continuou denunciando o conluio das potências econômicas contra a emancipação de países como o Brasil e insistindo na visão de mundo segundo a qual as relações internacionais se organizam em torno ao embate entre Norte e Sul. Lula pôde fazer isso porque, depois de também perder a eleição de 1998 para FHC, uma reviravolta no sistema internacional o beneficiou de forma inesperada. Em novembro de 1999, durante um encontro da Organização Mundial do Comércio na cidade americana de Seattle, eclodiu um ciclo de manifestações como não se via em anos. O alvo era o “Consenso de Washington”, um conjunto de princípios como liberalização comercial, corte de gastos públicos, privatizações e afrouxamento das regras com vistas a beneficiar o capital. Segundo os defensores desse consenso, o Sul devia adaptar-se às regras do jogo ou perder.
Os protestos inaugurados em Seattle não eram revolucionários nem marxistas. Não se tratava de eliminar o capitalismo, mas apenas de fazê–lo mais “humano” e “solidário”. Os manifestantes estavam denunciando as reformas liberais que Bill Clinton e Tony Blair tentaram empacotar sob a alcunha de uma suposta “Terceira Via”. Também estavam criticando o tratamento técnico — e não político — da política econômica dos países. 10. Denunciando Fernando Henrique como neoliberal e entreguista, Lula passou a atrair tanto a esquerda que sempre o apoiara como parte do eleitorado que antes o rechaçara. A crítica ao neoliberalismo vinda de fora deu-lhe fôlego junto a grupos nacionalistas. A partir de Seattle, a estrela de FHC minguou e a de Lula não parou de ascender. No processo, Lula adotou um tom cada vez mais ufanista. Recuperou personagens como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, celebrando-os como grandes estadistas. Mais tarde, chegou a elogiar o general Ernesto Geisel, o chefe da ditadura militar que reprimira o movimento dos trabalhadores. Gente do PMDB, do empresariado nacional e da burocracia estatal que não votava no PT somouse a ele. Grandes capitães da indústria gostaram da promessa de restauração do repertório desenvolvimentista e passaram a apoiá-lo. Essa guinada não fez Lula abandonar sua autoidentificação como homem de esquerda. Seu programa continuou centrado em noções de solidariedade e igualdade, rejeitando a primazia do mercado. E o PT manteve a imagem de probidade, transparência e combate ao clientelismo, apesar do aparecimento das primeiras denúncias de corrupção vinculadas ao uso de “caixa 2” na gestão de fundos de campanha. No Departamento de Estado e na CIA ninguém tinha nada a temer.
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