A partir do advento da escrita fonológica, a tradução tem sido uma constante na história — como um dos germes de feiçoamento de uma humanidade só, que algum dia será realizada — bombinhas atômicas e afins à parte —, quando restarem cinco ou quatro ou três ou duas línguas de cultura, e os homens cultos, isto é, todos os homens, forem cinquilíngues, ou quadrilíngues, ou trilíngues, ou bilíngues, inter- e intratraduzindo as línguas dominantes, como preço de um psiquismo “naturalmente” universalista. Lá chegaremos. No meio-tempo, graças a traduções, mais de uma língua iliteratada ou de literatação incipiente se alçou à categoria de língua de cultura, pois o modelo do original propiciou soluções de como usar dos recursos linguísticos sem tradição escrita. A tradução tem sido, assim, fonte permanente de qualificação de muitas línguas, no se elevarem de instrumento de comunicação e expressão volantes — verba volant — a instrumento de comunicação e expressão manente — scripta manent. Mas houve e há traduções: as que, infiéis, são fiéis ao dito traduttore traditore, e as que, fiéis, são obras de amor. Que é, nas condições modernas, vale dizer, com a repetibilidade tipográfica, tradução de amor? A que se paga das penas do ato amoroso, mas não se paga venal, mercantil, monetariamente — em sociedades como as que vivemos, em que tudo tem seu preço, seja caráter, honra, dignidade, saber, pudor, generosidade, amor (pois que há amor comprável e pagável, e continua a havê-lo sem preço, para alguns, impagável). As traduções de amor aqui estão. Ivo Barroso — poeta e tradutor experimentado —, que já deu de si a medida de como ama os textos que se propõe traduzir, tais como Colas Breugnon, de Romain Rolland, Poesias, de Erik Axe Karfeldt, Demian e O lobo da estepe, de Herman Hesse, dá-nos agora 24 sonetos de Shakespeare, traduzidos ao longo de 15 anos de devoção, ensaios, erros e acertos. Contra a venalidade instaurada, haveria preço para isso? É claro que não, nem esse foi o alvo de Ivo. Pior ainda é que, não querendo aferir-se por um preço, não podia vir à luz por uma indústria que ora se eixa sobre o preço. De modo que, a virem, viriam nas condições em que vêm: um leitor privilegiado, porque também amador de Shakespeare, e de seus sonetos, e de sua língua nossa, estava também em posição privilegiada para poder patrocinar a publicação, de modo que esta fosse um ato de mecenato coletivo. Assim, temos um papa das letras universais através de uma amostragem amorosa de 24 sonetos — o que é pouco, quantitativa, e muito, qualitativamente. Qualitativamente: é o que se tenta agora provar. Uma tradução de amor é a que se consome na busca de uma estrutura de valores, elementos, pertinências e funções equivalentes aos da original. Dentre os vários espectros com que se podem extremar os usos da linguagem de base oral, isto é, das línguas, de cada língua, de uma língua, de um discurso, de um texto, um há que é relevante para o caso: é o que, num eixo representativo de um continuum, vê num polo a modalidade da comunicação por excelência — a que visa a atingir o ideal da inequivocidade, da univocidade, da biunivocidade, a cada signo correspondendo um e só valor, a cada significante correspondendo um e só significado —, enquanto vê no outro polo a modalidade da expressão por excelência — a que visa a atingir o ideal da multivocidade, por isso mesmo pejada de equívocos e polissemias, para que a forma verbal obtida consiga ser vetora de ideias, emoções, sensações, intuições, sentimentos, estados, trânsitos, fluências, frêmitos do autor. Enquanto a comunicação do primeiro polo atribui quase valor nenhum ao significante, pois que nele só importa o fato de que “porta” o significado buscado, a expressão do segundo polo atribui como que peso ponderal igual ao significante e ao significado, pois que essa unidade passa a ser mais rica daqueles conglomerados psíquicos individuais na medida em que, “portando” o significado, injeta graças à forma do significante algo mais nesse significado, algo muito mais, que às vezes atinge o nível do inefável, do que não pode ser dito, porque não há, para dizê-lo, nemconfiguração semântica, nem corpo fonológico codificado. Neste último caso, desde todos os tempos, o discurso se apresenta entrelaçado por um jogo mais ou menos rico do que, havia pouco, se podia chamar apoios fonéticos e, hoje, se pode chamar isotopias, palavra mais inclusiva, porque entrelaça também “lugares” mentais afins e não apenas fonemas ou combinações de fonemas afins. Trata-se, com efeito, no discurso expressivo, de “portar” todo o complexo mentado — de tal arte que em cada parelha, em cada jogo, em cada trama, em cada grade de isotopias pertinentes se possa perceber que algo além, aquém, ao lado, por sobre, com os significados é significado. E mesmo que um “gênero” ou “subgênero” fixo seja a convenção aceita como camisa de força ou regra do jogo, nos grandes poetas essa convenção é, em lugar de uma castração, um repto a mais para a busca da eficácia da expressão. Por isso, o soneto — para tomá-lo como exemplo —, nos seus algo como seis séculos de existência, tem morrido e ressuscitado várias vezes, devendo-se sua ressurreição algumas vezes a desafios como este que Ivo Barroso enfrenta. De fato, como deixar só em inglês alguns desses monstros ideais de expressão que o Bardo soube criar? O requinte gráfico, necessário, desta edição de alguns sonetos de Shakespeare deriva de que, no seu bilinguismo, não se quis apenas mostrar que o texto português, por cotejo, era significadamente fiel ao inglês. Quis-se mais: quis-se mostrar que o era a um tempo significada, significante, expressiva, isotopicamente — embora, no último caso, com recursos fatais e haloisotopias, quer dizer, isotopias “outras”, compensatórias das isotopias primeiras, pois que, de outro modo, traduzir seria operação impossível. E não é sem-razão, aliás, que a programação computatorial da tradução mecânica não vislumbra, na linha do seu horizonte imaginável, solução para o problema, quando se trate de texto do polo da expressão. O leitor se comprazerá, por certo, na leitura dos sonetos de Shakespeare na recriação de Ivo Barroso, pois verá que são criaturas — a palavra é perfeita para o caso — que vivem vida vital emlíngua portuguesa. Mas se comprazerá mais ainda quando se puser a observar os prodígios de correspondências ou compensações isotópicas que foram consumados na transfusão tradutora.
Os exemplos podem ser dados a cada soneto, a cada unidade isotópica qualquer — métrica, rítmica, rímica, anastrófica, homeotelêutica, aliterante, assonante, e quantos palavrões mais se quiserem. A mero título de amostragem, que se tome um verso só. Seja o primeiro do Soneto XII: When I do count the clock that tells the time Literalmente, seria algo como: Quando eu conto mesmo o relógio que diz o tempo Nessa pseudotradução, em que se perderiam, logo de início, metro e ritmo — que Ivo Barroso ousou em decassílabos, propondo-se uma enxutez de ascese, já que teorizantes lhe teriam dado a liberdade de recorrer ao expanso e lasso dodecassílabo —, perder-se-ia, em seguida, aquele “count” que repercute em “clock”, que, gerando um l, ressoa em “tells”, como se perderia toda uma série de dentais, oclusivas, aspiradas, surdas, sonoras: “do”, “count”, “the”, “that”, “tells”, “the”, “time”, vivência do tique-taque jâmbico de um relógio. Quando se vê tudo isso (e deve-se estar vendo apenas parte do todo) e se vê a solução de Ivo Barroso — numa lição da dialética do senhor e do escravo, que impõe, sendo imposto, que subordina, subordinando-se, que escraviza, escravizando-se —, vê-se que ela atingiu o cerne da expressão shakespeariana: Quando a hora dobra em triste e tardo toque Aí estão, refeitos compensatoriamente, a oclusiva gutural surda (“quando”, “toque”), a vibrante sucedânea da lateral original (“hora”, “dobra”, “triste”, “tardo”) e a dental, alternada em sonoras e surdas — fundamental, no verso, porque em Shakespeare como em Ivo Barroso, fonte da “harmonia imitativa” com o inglês tick-tack (já de 1549) e o português tique-taque, onomatopeico para o bater do relógio — “quando”, “dobra”, “triste”, “tardo”, “toque”. Após essa amostra introdutória, é como que dispensável, nestas palavrinhas prévias, ir além. Pois, de fato, foi isso, é isso que nos dá Ivo Barroso com os seus sonetos shakespearianos, aceitando o mais desigual dos desafios, que é o do tradutor por amor — já que ele sabe que a um só original podem corresponder mil soluções e que a sua deve ser, por amor, a mais pertinente. Quando a vida ameaça ser embrutecida por urgências desumanizadoras, é um bem dedicar algumas horas, ao longo de alguns meses, na comungação de arte-artifício-artesania tão belos como os que nos oferece Ivo Barroso com seus sonetos reinventados sobre a mais pura matéria-prima da poética universal. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1972. Sonetos I F r o m fa i r e s t c r e a tur e s w e d e s i r e i nc r e a s e , T ha t the r e b y b e a uty ’ s r o s e mi ght ne v e r d i e , B ut a s the r i p e r s ho ul d b y t i me d e c e a s e , H i s t e nd e r he i r mi ght b e a r hi s me mo r y: But thou, contracted to thine own bright e ye s , F e e d ’ s t thy l i ght ’ s fl a me w i th s e l fs ub s t a nt i a l fue l , M a ki ng a fa mi ne w he r e a b und a nc e l i e s , T hy s e l f thy fo e , t o thy s w e e t s e l f t o o c r ue l. Thou that art now the world’s fresh orname nt And o nl y he r a l d t o the g a ud y s p r i ng , Wi thi n thi ne o w n b ud b ur i e s t thy c o nt e nt And , t e nd e r c hur l , ma k ’ s t w a s t e i n ni gg a r d i ng. Pity the world, or else this glutton be, To eat the world’s due, by the grave and thee. 1 D o s s e r e s í mp a r e s a n s i a mo s p r o l e P a r a q ue a fl o r d o B e l o nã o s e e xt i ng a , E s e a r o s a ma dur a o T e mp o c o l he , F r e s c o b o t ã o s ua me mó r i a v i ng a. Mas tu, que só com os olhos teus c o ntr a i s , Nutr e s o a r d o r c o m a s p r ó p r i a s e ne r gi a s C a us a nd o fo me o nd e a a b und â nc i a j a z , C r ue l r i v a l , q ue o p r ó p r i o s e r c r uc i a s. Tu, que do mundo és hoje o galardão, Arauto da festiva Natureza, Matas o teu prazer inda em botão E, sovina, esperdiças na avareza. Piedade, senão ides, tu e o fundo Do chão, comer o que é devido ao mund o.
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