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A Ameaca do Fundo do Mar – John Wyndham

Sou uma testemunha digna de crédito, você é uma testemunha digna de crédito, todos os filhos de Deus são praticamente testemunhas dignas de crédito, na avaliação de cada um — por isso é que se torna engraçado surgirem tantas idéias diferentes sobre um mesmo caso. Acho que as únicas pessoas que concordam plenamente nos detalhes do que viram na noite de 15 de julho somos Phyllis e eu. E como Phyllis é minha esposa, as pessoas dizem, à sua maneira bondosa de falar pelas costas, que eu a “convenci”, um pensamento que só poderia passar pela cabeça de quem não conhece Phyllis. Mas vamos aos fatos. O tempo: 11:15 horas da noite. O local: latitude trinta e cinco graus, cerca de vinte e quatro graus a oeste de Greenwich. O navio: o Guinevere. A ocasião: nossa lua-de-mel. Estes fatos ninguém contesta. O cruzeiro levara-nos a diversos lugares, Madeira, Canárias, Ilhas de Cabo Verde, virando depois para o norte, a fim de que visitássemos os Açores na volta para casa. Phyllis e eu estávamos inclinados na amurada, respirando um pouco de ar marinho. Do salão vinha o som de uma orquestra de danças e a voz melosa de um cantor suspirando por alguém. O mar se estendia à nossa frente como uma planície sedosa ao luar. O navio navegava tão suavemente como se estivéssemos num rio. Em silêncio, contemplávamos a imensidão do mar e do céu. E o cantor insistia em seu lamento. — Fico satisfeita por não me sentir como ele — comentou Phyllis. — Deve ser terrível. Por que será que se continuam a produzir em massa esses gemidos lúgubres? Não tinha uma resposta pronta, mas foi-me poupado o trabalho de tentar encontrar uma, pois a atenção de Phyllis foi desviada para outra coisa. — Não acha que Marte está parecendo um pouco zangado esta noite? Só espero que não seja mau presságio. Olhei, surpreso, para o ponto vermelho que ela apontava e que se destacava entre miríades de pontos brancos. É claro que Marte sempre teve um aspecto avermelhado, mas nunca o vira tão vermelho quanto naquele momento. Por outro lado, é forçoso reconhecer, as estrelas, vistas da cidade, não eram tão brilhantes como ali. Talvez a causa fosse o fato de estarmos, praticamente, nos trópicos. — Está mesmo um pouco inflamado — admiti.


Ficamos olhando para o ponto vermelho e foi Phyllis quem rompeu o silêncio: — É engraçado. Parece que está aumentando de tamanho. Expliquei que se tratava certamente de uma distorção ótica causada pelo fato de estarmos olhando fixamente para aquele ponto. Continuamos a olhar e Marte foi ficando cada vez maior, não sendo mais possível atribuir o fenômeno a uma ilusão de ótica. E o mistério não era só esse, pois Phyllis logo observou: — Há outro ponto vermelho ao lado. E é fora de dúvida que só existe um planeta Marte. E havia mesmo um ponto vermelho menor, um pouco acima e à direita do primeiro. — E há mais outro. Ali à esquerda, está vendo? Phyllis estava certa outra vez. Quando observou o terceiro objeto vermelho, o primeiro já brilhava tanto que se tornara a coisa mais visível em todo o firmamento, sobressaindo-se entre tudo mais. —Devemos estar vendo os rastros luminosos de alguns jatos — sugeri. Ficamos observando os três objetos, cada vez mais brilhantes e baixando no firmamento, até pairarem no horizonte quase paralelos ao mar, projetando uma trilha avermelhada em nossa direção. — São cinco agora — disse Phyllis. Muitas vezes, desde então, pediram-nos que descrevêssemos os objetos, mas acho que não somos dotados da mesma precisão de vista que outras pessoas. O que dissemos na ocasião e em que ainda continuamos a insistir é que os objetos não possuíam uma forma visível. O centro era bem vermelho e ao redor havia uma espécie de felpa em tons mais claros. A melhor comparação que consigo fazer é a seguinte: em meio a um espesso nevoeiro, uma lanterna vermelha bem forte acesa, o halo difuso ao seu redor. O efeito era mais ou menos este. Outros passageiros estavam agora debruçados na amurada e devo dizer, para fazer justiça, que muitos viram objetos em forma de charutos, cilíndricos, ovais e, como era inevitável, de discos. Nós não vimos nada disso. E o que é mais, não vimos oito, nove ou dez objetos: vimos exatamente cinco. Talvez os pontos vermelhos brilhantes fossem os rastros de aviões a jato. Se fossem, porém, não deviam estar em grande velocidade, pois cresciam muito lentamente ao se aproximarem do navio. Tanto é assim que vários passageiros tiveram tempo de ir chamar os amigos no salão e logo a amurada ficou toda ocupada, as pessoas contemplando o misterioso fenômeno e fazendo suposições. Sem termos noção da escala, não podíamos julgar o tamanho e a distância.

Tudo o que podíamos ver é que desciam lentamente, descrevendo um arco longo que iria levá-los a um ponto qualquer na esteira do nosso navio. Quando o primeiro objeto bateu no mar, uma grande coluna de água elevou-se ao céu, num vermelho forte. Imediatamente surgiu em seu lugar uma cortina de vapor que perdera a coloração vermelha, pairando como uma nuvem branca ao luar. Estava começando a se dissipar quando o silvo agudo nos alcançou. No local do impacto a água borbulhou, ferveu, ficou cheia de espuma. Quando a nuvem de vapor finalmente se dissolveu, nada havia para se ver além de uma mancha de turbulência rapidamente diminuindo. E então o segundo objeto caiu no mar, do mesmo jeito, quase no mesmo lugar. Um a um os outros objetos foram caindo no mar, espalhando água e levantando uma cortina de vapor. E quando o vapor finalmente se dispersou, só restavam no mar alguns pontos de águas agitadas. A bordo do Guinevere a atividade era intensa: os sinos tocavam, as máquinas roncavam na súbita mudança de curso, a tripulação ia encaminhando os passageiros para os escaleres, distribuíam-se cintos salva-vidas. Por quatro vezes navegamos lentamente de um lado para o outro na área em que os objetos haviamcaído, procurando alguma coisa. Não havia vestígio de nada. Em nossa esteira o mar estava tranqüilo, banhado pelo luar, vazio, sem nada a perturbá-lo… Na manhã seguinte enviei meu cartão ao comandante do navio. Naquela ocasião eu trabalhava na E.B.C. e informei que gostaria de entrevistá-lo a respeito do incidente da noite anterior. O comandante deu a resposta usual: — Como? B.B.C.? A E.B.C. era então relativamente nova. As pessoas, acostumadas ao longo monopólio do ar inglês pela B.

B.C., acham difícil aceitar a idéia de uma rede eletrônica de comunicação concorrente. Talvez as coisas fossem mais simples, se no início das nossas atividades um gênio qualquer não tivesse pensado em estabelecer propositadamente a confusão, batizando-nos com o nome de “English Broadcasting Corporation”. À medida que o tempo passa é mais difícil desfazer um erro inicial e por isso sempre tenho que explicar, como fiz aquele dia ao comandante, que a nossa rede não é a do governo e sim particular, a maior, por sinal, que havia no país. — A grande preocupação da nossa rede — declarei após as explicações iniciais — é a precisão nas notícias. Como cada passageiro possui uma versão diferente do acontecimento de ontem, gostaria de cotejar a minha versão pessoal com a que o senhor apresentará oficialmente. — Muito bem, comece contando a sua versão dos acontecimentos. Quando acabei, ele mostrou-me o registro que fizera no diário de bordo. Concordávamos em quase tudo, no número de objetos (cinco) e na impossibilidade de atribuir-lhes uma forma definida. Os cálculos que fizera sobre o tamanho, velocidade e posição eram altamente técnicos, além do meu alcance. Observei que os objetos haviam sido assinalados pelas telas de radar e eram descritos, a título precário, como aeronaves de um tipo desconhecido. — E qual a sua opinião pessoal? Já tinha visto antes algo semelhante? — Não, esta foi a primeira vez. O comandante pareceu hesitar e fiquei esperando. Ele então acrescentou: — Mas em caráter não oficial posso informar que ouvi falar em duas ocorrências praticamente iguais no ano passado. Na primeira eram três os objetos e caíram à noite. Da outra vez eram seis e caíramde dia. Apesar da luz do sol, a descrição foi a mesma, uma espécie de clarão vermelho. As duas aconteceram no outro lado do mundo, no Pacífico. — Mas por que é uma informação não oficial? — Porque nos dois casos havia apenas duas ou três testemunhas. Conhece muito bem a fama dos homens do mar e não seria bom para a minha reputação falar de coisas estranhas que não tenhamconfirmação plena. Por isso essas histórias são divulgadas apenas entre nós, pois não somos tão céticos quanto as pessoas que vivem em terra. Aqui, em alto mar, de vez em quando ainda acontecem coisas bem estranhas. — Poderia sugerir alguma explicação? — Preferiria não fazê-lo, atendo-me exclusivamente ao registro no diário de bordo. Desta vez não há problema algum em informar a ocorrência do incidente, porque houve mais de cem testemunhas.

— Acha que vale a pena fazer uma busca mais intensa? O local em que os objetos caíram está devidamente registrado e os mergulhadores poderiam investigar… — A profundidade aqui é muito grande, mais de quatro mil metros. — Nos outros casos também não houve o menor vestígio de destroços? — Não. Bastariam algumas evidências para que se procedesse a uma investigação, mas infelizmente não houve nenhuma. Conversamos mais um pouco, mas não consegui fazer com que formulasse nenhuma teoria. Finalmente me retirei e escrevi a reportagem, entrando depois em contato com Londres e ditando-a para um gravador da E.B.C. Foi transmitida na mesma noite, à falta de outra notícia mais importante, apenas como um fato singular. Não se esperava que pudesse despertar a atenção maior de ninguém. Foi assim, por mero acaso, que me tornei testemunha dos acontecimentos desde o início — apesar de todas as minhas investigações, não encontrei outros fenômenos idênticos anteriores, a não ser os dois a que o comandante aludira. Mesmo hoje, anos depois, embora tenha certeza absoluta de que este foi o começo de tudo, não posso apresentar provas concretas de que aquele acontecimento estivesse relacionado com os outros semelhantes e com o que aconteceu a seguir. Prefiro não pensar muito sobre o desenlace final. Não gosto nem de sonhar a respeito, embora os sonhos estejam fora do meu controle. Mas tudo começou de forma irreconhecível. Teria sido diferente se as coisas fossem mais óbvias — e mesmo assim é difícil imaginar o que poderíamos efetivamente ter feito se reconhecêssemos o perigo imediatamente. O reconhecimento do perigo e sua prevenção nem sempre caminham juntos. Reconhecemos imediatamente o perigo potencial da fissão atômica — e pouco pudemos fazer a respeito. Se tivéssemos atacado imediatamente, talvez as coisas pudessem ser diferentes. Mas até que o perigo fosse identificado, não tínhamos meios de saber que devíamos atacar logo de uma vez. E, quando o fizemos, já era tarde demais. Não adianta, porém, chorar as oportunidades perdidas. Meu objetivo, aqui, é fazer um breve relato dos acontecimentos que levaram à situação atual. Os fatos iniciais foram esparsos, fragmentados… No prazo esperado, o Guinevere atracou em Southampton, sem que seus passageiros assistissem a outros fenômenos estranhos. O incidente fora memorável. Era como se, algum dia, pudéssemos contar aos nossos netos que víramos uma serpente marinha em nossa viagem de lua-de-mel.

Sob todos os pontos de vista, fora uma lua-de-mel maravilhosa, como eu nunca pudera imaginar. Contemplávamos o burburinho no cais, debruçados na amurada, quando Phyllis expressou a mesma opinião, acrescentando porém: — Só que não vejo razão para não termos de vez em quando outra lua-de-mel igual. Desembarcamos e fomos direto para a nossa casa em Chelsea. Na segunda-feira de manhã apresentei-me nos escritórios da E.B.C. e descobri que, in absentia, fora rebatizado com o nome de Watson “Bola-de-Fogo”, por causa da reportagem que enviara de bordo do navio. Entregaram-me um envelope cheio de cartas — como eu as provocara com a minha notícia, o assunto era todo meu. Uma das cartas aludia a um incidente nas Filipinas, que identifiquei como sendo um dos que o comandante do Guinevere me contara. Mais umas duas pareciam merecer uma investigação — especialmente a carta bastante cautelosa em que o autor me convidava a encontrá-lo no La Plume d’Or, onde pelo menos valeria a pena pelo almoço excelente que servem. Compareci ao encontro uma semana depois. Ele era apenas dois ou três anos mais velho do que eu e confessou logo de saída que escrevera a carta sob um nome falso, pois na verdade era TenenteAviador da R.A.F. — Devo admitir que minha atitude não é inteiramente desprendida. No momento consideram que sofri espécie de alucinação, mas, se surgirem provas suficientes que indiquem que os pontos vermelhos que vi não se tratam de alucinação, é quase certo que passarão a tratar de tudo como umsegredo oficial. Reconheço que os caminhos oficiais são complicados, mas é assim que são e nada se pode fazer. Concordei em que não havia outro jeito de escapar ao emaranhado do pensamento oficial e ele continuou: — Independente disso, porém, a coisa me preocupa bastante. E, se está reunindo provas a respeito do mistério, gostaria de fornecer-lhe as informações que tenho… embora não para uso oficial, pois não gostaria de que meu nome entrasse em cena. Aceitei a condição e ele começou a contar-me o incidente de que fora protagonista: — Aconteceu há cerca de três meses. Eu estava realizando uma das nossas patrulhas aéreas regulares a cerca de trezentos quilômetros a leste de Formosa… — Não sabia que nós… — Há muitas coisas que não são divulgadas, embora não sejam particularmente secretas. Mas deixeme continuar. Durante o vôo, o radar registrou a presença desses estranhos objetos, quando ainda estavam longe do meu campo de visão, mas aproximando-se rapidamente a oeste. Ele resolveu investigar e subiu para interceptar os objetos. O radar continuou a registrar a presença de objetos voadores, num curso em linha reta atrás e acima dele.

Ele tentou entrar em contato pelo rádio, mas não obteve resposta alguma. Quando chegou à altitude máxima que o avião comportava, os objetos finalmente surgiram à sua frente. Eram três pontos vermelhos, bastante brilhantes até mesmo à luz do dia, em alta velocidade, que pôde medir porque seu avião se deslocava a quase oitocentos quilômetros por hora. Tentou novamente entrar em contato pelo rádio, outra vez sem sucesso. Os objetos continuaram em seu caminho, alcançando-o em pouco tempo. — Ora, eu estava ali para patrulhar. Disse à base que eram aparelhos de um tipo inteiramente desconhecido (se é que eram mesmo aparelhos) e que achava que devia atacá-los, já que não haviamrespondido às minhas comunicações pelo rádio. Ou assim agia ou os deixava ir embora. Neste caso tinha que perguntar que tipo de patrulha era aquela. A base concordou com a minha sugestão, embora me aconselhando a que fosse cauteloso. “Tentei outro contato pelo rádio, mas eles não deram a menor atenção, parecendo também que não se interessavam pelo meu avião. Quando se aproximaram mais, fiquei em dúvida se eram de fato aparelhos: eram exatamente como você os descreveu, uma mancha vermelha redonda, com um ponto mais intenso ao centro. Pelo que eu podia ver, poderiam perfeitamente passar por sóis em miniatura. De qualquer maneira, quanto mais os via, mais ficava preocupado, por isso liguei as armas ao controle do radar e fiquei esperando. “Os tais objetos deviam estar a uma velocidade superior a mil e duzentos quilômetros horários quando passaram por mim. Um segundo ou dois depois o radar fixou o que vinha à frente e as armas dispararam. “O objeto pareceu explodir quase no mesmo instante do disparo. Foi uma tremenda, explosão. O ponto vermelho ficou de tamanho descomunal, a cor mudando para rosa e logo depois para branco, embora ainda restassem alguns pequenos pontos vermelhos. Foi então que meu avião se chocou coma área de concussão, provavelmente sendo atingido também por alguns fragmentos do estranho objeto. Perdi a noção das coisas por alguns segundos. Tive muita sorte. Ao recuperar-me, descobri que estava perdendo altitude rapidamente. Alguma coisa arrancara três quartos da minha asa de estibordo e danificara a ponta da outra. Concluí que estava na hora de acionar o ejetor, o qual, para a minha surpresa, funcionou perfeitamente .

Ele fez uma pausa, pensativo. — Não sei se a minha história lhe traz alguma informação adicional, além de confirmar os outros relatos. Dois pontos, porém, podem ser destacados: os objetos podem viajar muito mais depressa do que aqueles que você viu e, o que quer que sejam, são altamente vulneráveis . Foram estas exatamente as informações adicionais que ele me prestou. Ao analisarmos o acontecimento em detalhes, ele declarou também que o objeto não se desintegrava em fragmentos. Explodia completamente ao ser atingido. Esse último detalhe deveria ter dado em que pensar na ocasião, mas ninguém deu a importância que merecia. Nas semanas seguintes chegaram diversas outras cartas relatando muitas ocorrências do fenômeno. Mas, à medida que o tempo passava, o caso parecia transformar-se numa repetição enfadonha do Monstro do Lago Ness. Todas as informações que chegavam eram encaminhadas a mim, porque na E.B.C. consideravam que histórias de bolas de fogo eram a minha especialidade. Diversos observatórios confirmaram terem visto pequenos corpos vermelhos viajando em alta velocidade, fenômeno que não conseguiam explicar e que os deixava surpresos. Eram, porém, muito reservados em suas declarações, cautelosos em excesso. Nenhum jornal tocava no assunto, achando o caso suspeito como o dos discos voadores, convencidos também de que os leitores preferiam outras novidades. Não obstante, informações e incidentes foram lentamente se acumulando — embora se passassem dois anos antes que despertassem a atenção e merecessem uma ampla divulgação.

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