Quando criança, fiz capoeira por um período de tempo que não me recordo bem, mas que fora bastante o suficiente para que eu pudesse assimilar sua ginga. Recordo-me que, um bom tempo após ter parado de praticar, brinquei por alguns instantes numa roda de amigos e, para minha surpresa, ela ainda estava lá. Foi no terceiro ano da faculdade de psicologia quando resolvi retomar meu contato com a capoeira. Procurei uma academia que me pareceu típica dos moldes da tv, me apresentei ao mestre e pedi para assistir sua aula. Lá permaneci entristecido durante todo o treino: alguma coisa se perdera naquele espaço. Parecia atravessado de um modelo de consumo que encaixotava a capoeira num tipo de esporte ou de luta, negligenciando em muito sua pulsação original. Retornei, então, a academia de meu antigo mestre, Mestre Aranha, um negro azul, que também era percussionista de um grupo profissional de samba. O que vi lá? Gente, no sentido mais puro, gente humilde. Só haviam, comigo, dois homens brancos e um casal, de resto, eram todos jovens negros de minha idade, alguns morando no quartel militar e outros, em sua maioria, inclusive o mestre, no morro do Cavalão, favela da lateral esquerda de Icaraí (Niterói, RJ), bairro onde residia. Decidi, portanto, que se fosse para aprender capoeira, o faria no meio dos negros. Decidi bem. Embora me incomodasse a maneira frouxa, ‘pouco profissional’, com que o mestre conduzisse a aula, os alunos, em torno de quinze, iam se acomodando no espaço limitado e a aula acontecia. Fico imaginando que, fosse eu um consumidor exigente – e fora este o motivo pelo qual não procurei Aranha diretamente –, teria argumentos para reclamar da sala lotada, da pouca atenção que me era dispensada, do plano de aula precário, veleidades do insatisfeito cotidiano burguês; mas não, era justamente essa a sedução daquele lugar, não havia posição correta do joelho na base, nem postura técnica, havia gingar. E não foi nada fácil retomar a ginga e os golpes. Aquilo que supunha ter pareceu-me ínfimo perto da desenvoltura dos demais. Era como se recomeçasse do zero. De início, não me ocorrera nenhum paralelo daquilo com o zen, tampouco a ideia desse trabalho, exceto pela figura indispensável do mestre, única referência de centro capaz de dar ordem ao curso da aula. Era essa, com certeza, a primeira conexão entre as duas artes: a figura do mestre, a quemfica incumbido presentificar, em si mesmo, o caminho a ser seguido. Pela maneira como joga, arrasta consigo todos os olhares em sua direção, sua graça e sua leveza, em específico a de Aranha, parecem-me até hoje extremamente difíceis de alcançar. O halo de respeito e compromisso em torno dessa relação, mestre-discípulo, é a chave do percurso da aprendizagem. Acredito que esse tipo de relação, valiosa, tenha se perdido nas salas de aula do mundo urbano, onde apenas se consome informação apropriando-se dela para qualquer fim. Não existe no mastigado dispositivo contemporâneo um espaço de cumplicidade dos sujeitos com o que é passado; e que viria junto, necessariamente, de um envolvimento integral sobre quem são e o que acreditamsobre aquilo que desejam realizar. A relação mestre-discípulo, em suas raízes remotas, está longe de um vínculo contratual ou empregatício, livre de zelo pela pessoado outro. Como é possível prosperar na dureza dos ensinamentos do sensei de outra forma senão pela admiração e fidelidade à sua pessoa? Não se trata, portanto, de consumi-lo. Trata-se de ser seu cúmplice e acatar-lhe com obediência e respeito, o que também nos impede de lhe dirigir cobranças a servir de desculpa nos sucessivos fracassos de nossa parte.
É fato que no método japonês tal ética de relação nos noticie uma face um tanto rígida e dogmática, quando qualquer vacilo do aluno pode servir para que o mestre não mais o aceite como seu discípulo. Aqui no Brasil, a coisa tem outro tom; no entanto, não deixa de ser por isso. Pequenas normas como não cumprimentar ninguém na hora de chegar antes de cumprimentar o mestre é prova disso – e fui chamado atenção duas vezes por esta causa, por pessoas diferentes. Aprender, ainda mais contando somente com a própria disposição, é muito duro. Depois de certo tempo treinando você começa a perceber que terá de dar mais de si mesmo, que ninguém o fará por você, sem contar com os longos períodos em que você acha que não progrediu nada. No começo você aprende a gingar, depois alguns golpes simples e algumas evasivas, que em capoeira chamamse ‘negativas’; aos poucos se emenda uma coisa na outra até parecerem contínuas, e se permanece nisso durante um bom tempo. Certa vez, Aranha desligou o som do toca-fitas – que não para um só minuto com músicas de capoeira –, pegou o pandeiro, dispôs os alunos pela sala em frente ao espelho e começou a puxar um ritmo que me encantou em surpresa: rápido e preciso; começou a andar levemente pela sala e, com voz de comando, disse alto “gingando”. Todos começamos a gingar no mesmo passo, como num desfile militar. Ele foi passando por entre nós de forma vagarosa, percebendo como cada um fazia, conduzindo um ritmo em seu pandeiro que era simplesmente uma delícia de se ouvir. Olhei para ele e nos observava com os olhos atentos, de cima a baixo. Sua cabeça e seus ombros se moviamrapidamente para frente e para trás enquanto batucava, como se todo ele marcasse o compasso. Foi quando percebi que, se me entregasse para aquele som, minha ginga relaxaria e fluiria melhor, ganhando a continuidade que buscava. Tive um arrepio e, num insight, percebi que havia parado de me cobrar a continuidade do movimento, que agora parecia ir por si só. Ginguei continuamente, semesforçar minha atenção sobre mim mesmo. Sentia que apenas marcava, com todo o corpo, como se dançasse, o ritmo do pandeiro. Sem querer, abri um sorriso. Using ePub Maker, be an easy ebookwriter. This bookis generated by a trial version of ePub Maker. Please visit www.epingsoft.com O medo da roda Nada do que foi passado e repassado durante o treino parece funcionar quando seentra na roda. Aliás, que difícil momento de apreensão é o instante em que se fica agachado ao pé do berimbau, esperando sua vez de jogar. Quem não sabe nadar, pode ficar horas ensaiando movimentos de natação fora da água até que decida entrar na piscina, mas nenhum deles lhe parecerá tão útil no instante em que mergulhar nela – ou melhor, no instante em que for atirado nela, pois sempre nos será possível adiar esse momento em favor de mais treino. E é o que o mestre faz com você, ele lhe atira na roda e lhe diz “jogue”, e você vai. Medo é a palavra que melhor descreve meu estado diante da roda.
Chegava a ficar comfrio no estômago sempre que sua hora estava próxima. Tive de conviver com isso durante várias aulas, vários meses, sem nunca relaxar. É geralmente nesse ponto onde decidimos se iremos continuar ou não. Nesse ponto, passava as aulas num intenso diálogo interno sobre ‘devo’ ou ‘não devo’ continuar. Cada vez que entrava na roda, começava a lançar golpes desconexos que ignoravamtotalmente o que o outro fazia, como se estivesse jogando comigo mesmo. Me aperceber disso fazia com que os movimentos perdessem a continuidade e me paralisava por um instante, como se eu precisasse de um tempo para encontrar o fio da meada. Notava, então, a pessoa com quem eu jogava: tão leve e descontraída, de um lado para o outro, como se estivesse sempre me convidando para entrar no jogo. Um segundo problema: entrar na roda com medo consome rapidamente o fôlego. Fazia então mais alguns golpes, mas logo o cansaço me abatia e eu a abandonava, sempre frustrado, com a sensação de não ter jogado, de estar confuso e com raiva. Nem sequer me confortava o ritmo dos instrumentos; pelo contrário, aquele som frenético parecia me embaralhar, assustar e repelir. Começava a bater palmas para acompanhar o ritmo, no intuito de relaxar marcando o som, mas a roda acabava antes mesmo de eu criar coragem para entrar de novo. A essa altura, decidi fazer um fraudulento acordo comigo mesmo. Iria permanecer ali, sem me importar com a roda, apenas pelo treino físico – que era ótimo e além de tudo dava-me o tônus muscular que obteria em qualquer academia de ginástica – sendo que, já que havia se tornado difícil fazê-lo, me proporia agora a compreendê-lo. Não sabia, mas estava cumprindo ali o mito do que chamo hoje homem contemporâneo, devoto da própria razão, pragmático e mental. Já que não podia brincar de roda, iria formular algumpensamento banal que me preservasse na qualidade de estar isento do mero fazer. Foi quando tive a ideia de escrever sobre capoeira. Tornara-me, pois, mais um observador participante, nos moldes da antropologia, do que um legítimo membro da tribo. Perdi a identificação com ser um capoeirista. Observava agora o comportamento das pessoas. Desinteressei-me também por meu próprio aprimoramento, parando de fazer força para aprender – aqui jazia oculta uma jóia que só poderia entender mais tarde. Descobri, também nesse tempo, que parte de meu medo devia-se ao ramo ao qual meu grupo pertencia: Capoeira Regional, criada por Mestre Bimba, nos tempos nacionalistas da era Vargas, para ser “nossa”. Uma capoeira de luta, jogada em pé, enxertada de marcialidade e técnica, na tentativa de lhe conferir uma unidade que a fizesse brasileira. A capoeira em sua raiz, é proveniente da África, tem um apelo muito mais ritualístico do que marcial. Foi quando tive conhecimento de outro ramo cultivado no Brasil, a Capoeira Angola, fundada por Mestre Pastinha, com o intuito de preservar essa origem. De fato, a roda da Capoeira Regional se inicia com o ‘jogo de angola’, um jogo mais lento e melindroso, jogado primordialmente no chão, sutil e interativo, ao compasso de instrumentos bemmenos frenéticos que, em seguida, na roda da Regional, se agitam a esquentar o sangue do grupo, tornando-a, quando não exibicionista, hostil e sujeita ao contato pesado.
Eram então, na verdade, dois medos. Um sobre a própria dificuldade de incorporar o jogo, outro de não tomar um belíssimo calcanhar na têmpora.
.