De todos os poetas, Ovídio foi quem desvendou os mais belos segredos da natureza. Ele ensinou aos homens soltar o suspiro adequado e às mulheres recebê-lo, aos homens, saber o momento propício aos amantes, e às mulheres, oferecê-lo. Como era um homem mundano que sabia amar o melhor e que amava a todos, ele humanizou tanto a virtude que o pudor se harmonizou com a galanteria. Montesquieu A arte de amar é um surpreendente título que seduz por sua simplicidade e inquieta por sua ingenuidade. Pode-se perguntar se é necessário, útil ou conveniente ensinar esta arte, que parece evidente, fazendo parte dessas coisas tão compartilhadas e tão comuns a todos sem que seja preciso ensiná-las. Mas Ovídio não ensina o sentimento, mas a habilidade; não o amor, mas a sedução. Reconcilia os dois sexos e dá à mulher sua participação e sua iniciativa neste jogo sério e leviano do qual séculos de “civilização” a excluíram. Ovídio é um escritor da felicidade, uma espécie de utopista feliz. Quando falamos numa arte de amar, entramos – aparentemente – no domínio das perversões: substituímos o artificial pelo natural, o engano pela verdade; introduzimos regras num lugar onde não deveriam haver; jogamos o que, evidentemente, não é um jogo. Mas não há proibições em Ovídio, tampouco monstros. O autor de uma “arte do amor” subentende que o ato de amor tem por fim o prazer, não mais unicamente a procriação, e, ao mesmo tempo, ei-lo de uma vez por todas à mercê de leis frias, libertino… O Imperador Augusto que não se enganava, tomou como pretexto A arte de amar para mandar ao exílio Ovídio, o poeta – mesmo sendo política, neste caso, a verdadeira razão desta pena. O poema de Ovídio imagina que os homens e as mulheres, desta Roma pacificada do tempo de Augusto, são livres, livres de corpo e de sentimentos. Ele inventa uma arte sutil, feita de nuances e de uma incontestável disponibilidade, que não tem outra finalidade senão a satisfação e o bem-estar do corpo. A sociedade imperial está pouco disposta a receber, tão diretamente, esta mensagem: o que aconteceria se os sentidos fossem autorizados a falar mais alto que a razão e mais alto que a razão de Estado? Um poder forte necessita de uma moral rigorosa. O potentado prega a liberdade, mas limita o seu exercício. Ovídio é um homem raro, mas com dificuldades; muito afinado com sua época: ele nasce com a paz romana; empreende, sem muito entusiasmo e sem a menor convicção, a carreira que levava às honras e que se apoiava inteiramente no exercício e na prática da palavra; mas para nos primeiros graus, consciente de fazer versos sem querer, quando faz um discurso em prosa. Poeta, ele não inova. Ao contrário: ele está feliz, parece, de herdar e de perpetuar. Rabisca suas obras sobre obras premiadas e reconhecidas e as continua. É um homem gentil cuja natureza evita tumultos. Achamos até que esse libertino modelo só ama uma mulher: a sua! Ele só fala de uma coisa: o amor. É certo que Ovídio, rapaz, convenientemente sustentado pela sua família, foi fazer as loucuras da mocidade, durante alguns anos, na Grécia, como era costume na época, e, em vez de permanecer em algum lugar de prazer e de consumo na cidade, foi visitar as ilhas e conhecer as lendas que eram contadas lá. Esta experiência lhe propicia inúmeros episódios de sua grande obra da maturidade. Ovídio era homem de sentimento. Porque, enfim, a artimanha que ele descreve no primeiro livro de A arte de amar, aquela da sedução da mulher pelo homem, deixa aparecer, sob o discurso dos sentidos alertas, o poema mais secreto do coração à procura: e a genialidade, sem nenhuma dúvida, do poeta latino é não ferir nem um nem outro.
Suas ideias atravessarão os tempos e irão atingir em cheio a Idade Média e o Renascimento. A fama do poema, sua repercussão nos corações e mentes, a adoração popular fazem com que Ovídio seja banido pela Reforma e pela Contrarreforma. Só o humanismo renascentista não o ignorou, dando na verdade passagem a Metamorfoses nas estrofes de A arte de amar. Era a intenção de Montaigne, nos Ensaios, ao escrever: “A primeira alegria que encontrei nos livros me foi dada pelo prazer das fábulas de Metamorfoses de Ovídio”. Mais tarde, os românticos irão preferir, por conseguinte, o proscrito de Ponto Euxino; sua tristeza e o langor presumido que assenta admiravelmente nas cenas do gênero. Essas diversas reaparições de Ovídio – um modo mais ou menos travestido de Ovídio, que veio se inscrever tanto na paródia escrita como na moldura do Museu – tratam quase sempre da paixão amorosa, se bem que o poema de A arte de amar, apesar de ser considerado como menor em relação a Metamorfoses, é todavia a chave do edifício. Outro fato deve chamar a atenção: Ovídio louva resoluta e unicamente a mulher. Esta forma de ortodoxia não é única na literatura latina, mas é rara num autor que tem como propósito somente o amor, iniciando na carreira literária com elegias, um romance de libertinagem em verso, cartas em verso atribuídas a personagens célebres, e terminando com os gritos de Os Tristes, no meio dos quais, em filigrana, o amor, ainda o amor, aparece. Sua tragédia foi perdida, mas ao menos é bom lembrar que ela tinha Medeia como tema, e que só esse título nos remete ao nosso objetivo; de fato seria falso descobrir no amável Ovídio um escritor apenas amável. A arte de amar se divide em três livros. O primeiro tem como tema a sedução, sendo a mulher umanimal de caça consentida de antemão, e o homem, um caçador facilmente enganado, é extraordinário ver o autor conferir à mulher, concebida como objeto, uma sensualidade verídica, verdadeira, pelo menos igual à do homem: esse direito ao prazer vai, durante séculos, ser esquecido. O segundo livro trata do amante, e procura ensiná-lo não somente a maneira de conquistar sua amante, mas principalmente como mantê-la, e eis aí, como dizer o essencial, a forma de transformar o furor físico em ternura contínua e segura. Não é a qualquer arte do prazer que Ovídio dirige sua atenção, mas a uma prática da constância e do respeito. No terceiro livro, ele é mais surpreendente ainda: falando da mulher, ele se dirige à mulher: fez dela uma “pessoa”. Não a admoesta, a destaca. Subitamente ela tem direito à palavra e às brasas do sexo. Claro, é esse terceiro livro que os avatares e as duplicidades da História vão desconhecer e renegar. Evidentemente, esta “arte do amor” preocupa-se com a permanência do amor: despreza os fulgores do instante em proveito das satisfações e alegrias da duração. Nessa medida, é um livro de sabedoria. Mas por se dirigir ao indivíduo mais profano, e que carrega com ele as “partes corporais inferiores”; por não parar de se referir aos deuses, sempre se prendendo ao terrestre e ao cotidiano – é, ao mesmo tempo, uma obra cuja vocação principal é profana (e humana). Mais tarde, no reinado católico, a Igreja vai proscrever o poeta no mesmo instante em que o povo, entretido pela seriedade grotesca da Festa dos Loucos, o recupera: isto foi dar-lhe a sua verdadeira importância. Ao mesmo tempo, como se surpreender que ele encontre, atualmente, tantos leitores entusiastas? Poeta do corpo, eis o que ele é. Quem sabe não fosse isto que descontentasse tanto Augusto? Não sabemos o que aconteceu, é verdade, e o método de Augusto, que consiste em fingir reger os costumes para melhor reduzir o espaço da palavra se revelou, com o tempo, exemplar, eficaz e muito útil: ele é aplicável atualmente. Não vemos a qual facção perigosa poderia pertencer Ovídio, nemqual doutrina perniciosa teria podido favorecer o poeta de Fastos, esse calendário respeitoso – mas é pedir muito querer perguntar ao homem que reina sobre o Estado as razões de seu capricho: é provável que Ovídio tenha sido perseguido por ter pregado uma tolerância que não era praticada e que incomodava o absolutismo. Qualquer que seja o motivo, as lições do mestre Ovídio a seu aluno de A arte de amar são baseadas na existência da mulher como pessoa humana – mesmo que se trate, durante o primeiro canto, de considerá-la como objeto de conquista, praça forte a invadir, presa fácil.
Nesta disputa dos sexos, nem todos os golpes são permitidos. Ovídio ensina a aproximação civilizada, senão respeitosa. É preciso fingir e enganar mas dentro de certos limites que mostram, para além da arte do amor, uma arte de viver em sociedade. O universo de Ovídio é totalmente desprovido da noção de pecado. Nada, aqui, encarna mais o mal do que o dano causado ao outro, do que o constrangimento. O jogo do amor é cheio de ciladas, de armadilhas, de enganos – mas é um jogo cujo prêmio, no final, é o prazer; depois, passado o prazer, a serenidade do coração. Quando ele diz – em A arte de amar – que o poeta é habitado por um deus, e que faz comércios com o céu, entenda que este céu é terrestre, e saiba que este deus é sensível: o deus habita a árvore das Dríades, e a árvore sustenta o céu com os braços estendidos. Da mesma forma, e é aí que se mede o gênio de Ovídio, a mulher é a flecha e o poema é o alvo.
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