| Books | Libros | Livres | Bücher | Kitaplar | Livros |

A ARTE DE VIAJAR – ALAIN DE BOTTON

Era difícil dizer com exatidão quando o inverno chegou. O declínio foi gradual, como o de uma pessoa que alcança a velhice, imperceptível no dia a dia, até que a estação se tornou uma realidade certa e inexorável. Primeiro veio uma queda na temperatura noturna, seguida de dias de chuva constante, surpreendentes rajadas de vento do Atlântico, umidade, a queda das folhas e a mudança do horário — embora persistissem momentos eventuais de alívio, manhãs nas quais era possível sair de casa sem um casaco e o céu se mostrava límpido e claro. Mas eram como sinais enganosos de recuperação num paciente cuja morte fora decretada. Em dezembro, a nova estação já se instalara e a cidade era coberta, quase diariamente, por um sinistro céu de um cinza metálico, como numa pintura de Mantegna ou de Veronese, cenário perfeito para a crucificação de Cristo ou para um dia debaixo das cobertas. O parque da vizinhança transformou-se em um terreno desolado, tomado por água e lama, iluminado à noite por lâmpadas envoltas pelo halo da chuva. Passando por ali certa noite, durante um aguaceiro, lembrei-me de como, no calor intenso do verão anterior, eu me estendera no solo e descalçara os sapatos para deixar que a relva acariciasse meus pés e de como esse contato direto com a terra me dera uma sensação de liberdade e expansão, com o verão rompendo os limites habituais entre o ar livre e ambientes fechados e permitindo que eu me sentisse tão à vontade no mundo quanto em meu quarto. William Hodges, Taiti revisitado, 1776 Mas agora o parque era novamente inóspito, com a grama encharcada pela chuva incessante. Qualquer tristeza que eu acaso sentisse, qualquer desconfiança de que a felicidade ou a compreensão eram inalcançáveis, parecia encontrar encorajamento nos tijolos escuros e empapados dos prédios e no céu carregado tingido de laranja pela iluminação urbana. Tais circunstâncias climáticas, acompanhadas por uma sequência de acontecimentos ocorridos na época (que pareciam confirmar a máxima de Chamfort de que um homem deve engolir um sapo todas as manhãs para se certificar de que não encontrará nada mais repulsivo durante o resto do dia), conspiraram para me tornar fortemente suscetível à chegada inesperada, no fim de uma tarde, de umfolheto publicitário grande e repleto de ilustrações coloridas intitulado “Sol de Inverno”. Na capa, via-se uma fileira de palmeiras, muitas envergadas, numa praia de areia clara orlada por um mar azul-turquesa, contra um pano de fundo de colinas nas quais eu imaginava cachoeiras e alívio para o calor à sombra de árvores frutíferas perfumadas. As fotografias me lembraram as pinturas do Taiti trazidas por William Hodges após sua viagem com o capitão Cook, mostrando uma lagoa tropical à luz suave do entardecer, na qual mocinhas nativas e sorridentes brincavam despreocupadas (e descalças) em meio a uma vegetação exuberante, imagens que provocaram espanto e admiração ao serem exibidas na Royal Academy, em Londres, no rigoroso inverno de 1776 — e que continuaram a servir de modelo para cenas de idílio tropical, como aquelas nas páginas de “Sol de Inverno”. Os responsáveis pelo panfleto intuíram a facilidade com que os leitores se tornariam presas de fotografias cuja força insultava a inteligência e infringia qualquer pretensão de livre-arbítrio: imagens superexpostas de palmeiras, céus claros e praias ensolaradas. No contato com esses elementos, leitores que em outras áreas de suas vidas seriam capazes de ceticismo e de prudência regrediam ao otimismo e à inocência primordiais. Os anseios provocados pelo folheto eram umexemplo, ao mesmo tempo tocante e patético, de como projetos (e até vidas inteiras) podem ser influenciados pelas imagens de felicidade mais simples e casuais; de como uma viagem longa e proibitivamente cara poderia ser desencadeada apenas pela visão da fotografia de uma palmeira levemente inclinada por uma brisa tropical. Decidi viajar para a ilha de Barbados. 2. Se nossas vidas são dominadas pela busca da felicidade, talvez poucas atividades revelem tanto a respeito da dinâmica desse anseio — com toda a sua empolgação e seus paradoxos — quanto o ato de viajar. Ainda que de maneira desarticulada, ele expressa um entendimento de como a vida poderia ser fora das limitações do trabalho e da luta pela sobrevivência. Mas raramente se considera que as viagens apresentem problemas filosóficos — ou seja, questões convidando à reflexão além do nível prático. Somos inundados por recomendações sobre os lugares para onde viajar, mas pouco ouvimos sobre como e por que deveríamos ir — embora a arte de viajar pareça evocar naturalmente uma série de questionamentos nem tão simples ou triviais, cuja análise poderia contribuir, de forma modesta, para uma compreensão daquilo que os filósofos gregos chamavam lindamente de eudaimonia, ou desabrochar humano. 3. Uma questão gira em torno da relação entre a expectativa da viagem e sua realidade. Chegou às minhas mãos um exemplar do romance Às avessas, de J.-K.


Huysmans, publicado em 1884, cujo herói decadente e misantropo, o aristocrático Duque des Esseintes, antevia uma viagem a Londres, oferecendo, ao longo do processo, uma análise incrivelmente pessimista da diferença entre aquilo que imaginamos sobre um lugar e o que pode acontecer quando a ele chegamos. Huysmans conta que o Duque des Esseintes vivia sozinho numa enorme mansão nas imediações de Paris. Raramente saía de casa, para evitar o que considerava ser a feiura e a estupidez dos outros. Numa tarde, ainda na juventude, arriscara-se por algumas horas numa aldeia próxima e sentira sua aversão aos seres humanos se intensificar. Desde então, decidira passar os dias sozinho, na cama de seu gabinete, lendo os clássicos da literatura e cultivando pensamentos ácidos sobre a humanidade. Numa manhã, contudo, o duque se surpreendeu com um intenso desejo de viajar a Londres. A vontade se manifestou quando ele estava sentado à lareira, lendo um volume de Dickens. O livro evocava cenas da vida inglesa que ele contemplou longamente, sentindo crescer o desejo de vê-las. Incapaz de conter o entusiasmo, ordenou aos criados que lhe fizessem as malas, meteu-se num terno de tweed cinza, em botas baixas, num chapéu-coco e numa pelerine azul e tomou o primeiro trem para Paris. Como lhe sobrava tempo antes da partida do trem para Londres, foi à livraria inglesa Galignani, na Rue de Rivoli, onde comprou um exemplar do Guide to London [Guia de Londres], de Baedeker. Foi lançado em devaneios deliciosos pelas descrições sucintas das atrações londrinas. Rumou, então, para um bar próximo, frequentado por clientela eminentemente inglesa. O ambiente parecia saído de um romance de Dickens: lembrava-lhe cenas em que a pequena Dorrit, Dora Copperfield e Ruth, a irmã de Tom Pinch, conversavam, sentadas em recintos igualmente claros e aconchegantes. Um dos clientes tinha os cabelos brancos e a pele avermelhada do Sr. Wickfield, além dos traços rudes e inexpressivos e do olhar duro do Sr. Tulkinghorn. Com fome, Des Esseintes passou a uma taberna inglesa na Rue d’Amsterdam, perto da Gare Saint-Lazare. O lugar era escuro e enfumaçado, com alavancas de pressão para servir cervejas enfileiradas ao longo do balcão, coberto, por sua vez, de talhos de presunto tão marrons como violinos e de lagostas que tinham a cor de mínio. Ao redor de pequenas mesas de madeira estavam sentadas inglesas robustas, de rosto infantil, dentes do tamanho de espátulas, faces avermelhadas como maçãs, mãos e pés longos. Des Esseintes encontrou uma mesa e pediu sopa de rabo de touro, hadoque defumado, uma porção de rosbife com batatas, uma ou outra cerveja e um pedaço de queijo Stilton. Contudo, ao se aproximar o momento de pegar o trem e ter oportunidade de transformar emrealidade seus sonhos londrinos, Des Esseintes foi subitamente tomado pela lassidão. Imaginou como seria cansativo viajar de fato a Londres e que teria de correr para a estação, brigar por umcarregador, embarcar no trem, suportar uma cama estranha, enfrentar filas, sentir frio e mover seu frágil corpo pelas paisagens descritas de forma tão concisa por Baedeker — e assim conspurcar seus sonhos: “Qual é a necessidade de se locomover quando uma pessoa pode viajar tão maravilhosamente sentada numa cadeira? Já não estava em Londres, com seus cheiros, seu clima, seus cidadãos, sua comida e até seus talheres dispostos ao redor dele? O que poderia encontrar lá, senão novas decepções?” Ainda sentado à mesa, ele refletiu: “Eu devia estar sofrendo de alguma aberração mental ao rejeitar as visões de minha obediente imaginação e pensar, como qualquer velho tolo, que seria necessário, interessante e útil viajar ao exterior.” Então, Des Esseintes pagou a conta, deixou a taberna e tomou o primeiro trem de volta para sua mansão, com seus pacotes, malas, valises, mantas, guarda-chuvas e bengalas — e nunca mais saiu de casa. 4. Estamos familiarizados com a ideia de que a realidade das viagens não é o que antevemos.

A escola pessimista, da qual Des Esseintes poderia ser o presidente de honra, portanto, argumenta que a realidade será invariavelmente decepcionante. Talvez seja mais verdadeiro e gratificante sugerir que ela é, em essência, diferente. Após dois meses de expectativa, numa límpida tarde de fevereiro, desci no aeroporto Grantley Adams, em Barbados, com minha companheira de viagem, M. A caminhada do avião até o terminal foi breve mas suficiente para que eu registrasse uma revolução no clima. Em poucas horas, eu chegara a condições de calor e umidade que demorariam mais cinco meses para se manifestar emminha cidade de origem, sem nunca alcançar a mesma intensidade. Nada era como eu havia imaginado — o que só poderia ser surpreendente se considerarmos o que eu havia imaginado. Nas semanas anteriores, a ideia da ilha girara exclusivamente em torno de três imagens mentais, reunidas durante a leitura de um folheto publicitário e de um cronograma da companhia aérea. A primeira era uma praia com uma palmeira e o pôr do sol ao fundo. A segunda, um bangalô de hotel, em que se via, através das vidraças da varanda, um quarto decorado, comassoalho de madeira e roupas de cama brancas. E a terceira, um céu azul. Se pressionado, eu naturalmente teria reconhecido que haveria na ilha outros elementos, mas não precisei deles para montar minha impressão a respeito do lugar. Meu comportamento era semelhante ao dos espectadores de um teatro, que imaginam, sem dificuldade, que as ações no palco se passam na floresta de Sherwood ou na Roma antiga, uma vez que o pano de fundo foi pintado comum único galho de carvalho ou uma coluna dórica. Na chegada, porém, várias coisas insistiram que também mereciam ser incluídas no arquivo da palavra “Barbados”. Por exemplo, um grande posto de gasolina decorado com o logotipo verde e amarelo da British Petroleum e um cubículo de compensado de madeira em que um funcionário da alfândega, sentado e vestindo um imaculado terno marrom, contemplava com ar de curiosidade e de espanto, sem nenhuma pressa (como um erudito percorrendo as páginas de um manuscrito nas prateleiras de uma biblioteca), os passaportes de uma fila de turistas que se estendia para fora do terminal e já chegava perto da pista de pouso. Havia o anúncio de uma marca de rum acima da esteira de bagagens, o retrato do primeiro-ministro no corredor da alfândega, uma casa de câmbio no saguão de chegada e um pandemônio de motoristas de táxi e de guias turísticos em frente ao terminal. E, se havia algum problema com essa profusão de imagens, era que elas tornavam estranhamente mais difícil ver a Barbados que eu fora descobrir. Na minha expectativa, houvera simplesmente um vácuo entre o aeroporto e meu hotel. Não existira qualquer coisa em minha mente entre a última linha do itinerário (“Chegada BA 2155 às 15h35”, com sua bela cadência) e o quarto do hotel. Eu não havia pensado — e agora protestava interiormente por encontrar — em uma esteira de bagagens com a borracha puída, duas moscas dançando ao redor de um cinzeiro imundo, um ventilador gigantesco girando no saguão de chegada, um táxi branco com um painel de falsa pele de leopardo, um cão vira-lata no terreno baldio ao lado do aeroporto, um anúncio do “Condomínio Luxury” num trevo, uma fábrica chamada “Bardak Electronics”, uma fileira de prédios com telhados de zinco vermelho e verde, uma tira de borracha na coluna central do carro, na qual estava escrito em letras miúdas “Volkswagen, Wolfsburg”, um arbusto de cores vivas cujo nome eu não conhecia, uma recepção de hotel mostrando as horas em seis cidades diferentes e um cartão pregado à parede próxima em que se podia ler, com dois meses de atraso, “Feliz Natal”. Somente várias horas depois da chegada me vi no quarto imaginado, embora não tivesse, até então, uma imagem mental de seu enorme aparelho de ar-condicionado ou mesmo, apesar de bem-vinda, a visão de seu banheiro revestido em fórmica e com a severa recomendação para que os hóspedes evitassem o desperdício de água.

.

Baixar PDF

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Baixar Livros Grátis em PDF | Free Books PDF | PDF Kitap İndir | Telecharger Livre Gratuit PDF | PDF Kostenlose eBooks | Descargar Libros Gratis |