O jovem acordou cercado de fogo e caos. Ouvia-se o choque de espadas em uma batalha violenta à sombra das montanhas. Os gritos agudos dos moribundos atravessavam a brisa fria da manhã. Ele podia sentir o odor acre de medo e ódio daqueles que lutavam pela própria vida. Sentiu o amargor metálico do sangue que era absorvido pelo solo. Foi o gosto do sangue que o acordou. Ele pressionou as mãos contra a terra seca, onde labaredas lambiam sua pele descoberta, e tentou se levantar. Não conseguiu, e seu corpo gritou de dor com o esforço. Quando sua visão clareou, olhou em volta mais uma vez. Estava no limite de um campo que, naquele momento, estava cercado. A uns cinquenta passos à esquerda, havia uma floresta. Era seca, esparsa e decadente, mas oferecia mais proteção do que a posição vulnerável em que se encontrava, perto da batalha. Dois homens — um baixo e um alto, ambos usando o uniforme vermelho da guarda —aproximaram-se dele com as espadas na mão. — O que temos aqui? — perguntou o mais baixo. — Um escravo achando que pode escapar? — Não sou escravo — a voz dele falhou, e a garganta pareceu tão seca e frágil quanto o solo aos seus pés. O guarda mais alto baixou a lâmina com força, mas o jovem conseguiu desviar do golpe rolando a tempo. Ele levantou, as pernas fracas como as de um potro. Com os músculos gritando de dor, ele cambaleou na direção da floresta. — Não temos tempo para perseguir um escravo fugitivo — disse o guarda mais alto, em umvolume elevado o suficiente para se fazer ouvir entre os ruídos da batalha. — Prefere ter sua garganta cortada por um rebelde na batalha? — perguntou o mais baixo. — O rei preferiria que… — Não dou a mínima para a preferência do rei. Vamos. A floresta era esparsa, mas o jovem encontrou um arbusto ressecado para se esconder. Os galhos arranhavam sua pele sensível, mas ele ficou em silêncio e imóvel. Os guardas se aproximavam, golpeando a escassa folhagem com as espadas.
Ele olhou para as mãos e se encolheu. Quanto tempo demoraria até recobrar as forças? Já havia esperado uma eternidade para se libertar. Acordei antes do tempo. — Talvez seja melhor deixá-lo ir — disse o guarda mais baixo, perdendo a coragem de antes enquanto o medo tomava conta de sua voz. — Talvez tenha sido ele quem ateou fogo lá atrás. Pode ser perigoso. — Não seja covarde. Fugitivos podem causar mais problemas e gerar mais fugitivos. Quero seu sangue em minha lâmina antes de mais nada. Eles se aproximaram mais, e o jovem saiu cambaleando do esconderijo. Na fuga, tropeçou nas raízes entrelaçadas de um grande carvalho e caiu com tudo no chão. Os guardas logo o encontraram, e ele se arrastou para trás até encontrar o tronco grosso da árvore. — Deve se sentir tão patético agora — o guarda alto o ridicularizou. — Escondido numa floresta, implorando por sua vida. Ele de fato se sentia patético. Não era uma emoção que apreciava. — Não estou implorando. — Ah, mas logo estará. Tenho certeza. — O guarda abriu um sorriso que revelou o quanto gostava de provocar dor e sofrimento em indivíduos menores e mais fracos do que ele. — O que você acha? — O guarda alto perguntou ao companheiro. — Devemos cortar as mãos dele antes de matá-lo? Ou os pés, para não tentar fugir de novo? — Talvez seja melhor o levarmos para o calabouço, para apodrecer com os outros rebeldes. — Isso não teria graça. — O guarda encostou a ponta da espada no queixo do jovem, forçando-o a encarar seus olhos cruéis. — Quem é você, rapaz? Um escravo que se curvava ao meu chicote na construção da estrada do rei? Ou um rebelde equivocado que acredita poder mudar o destino deste reino? — Nenhum dos dois.
— Seus lábios estavam ressecados, e a respiração, curta. A espada levantou mais sua cabeça, perfurando um pouco a pele. — Então quem é você? — o guarda perguntou. — Eu… — ele começou a responder, bem devagar. — … sou um deus. — Um deus? É mesmo? — O guarda bufou, achando graça. — Estou curioso… os deuses sangrammuito? — Espere. — A voz do guarda mais baixo estava trêmula. — Os olhos dele. Veja os olhos dele! O guarda alto afastou a espada e deu um passo trêmulo para trás. — O quê…? O jovem abriu o punho e olhou para a mão direita. Gravado na palma, havia um triângulo. As bordas brilhavam com a mesma luz azul que agora emanava de seus olhos. — Você é um demônio — o guarda sussurrou. — É isso o que você é. — Eu já disse o que sou. Mas acho que você não prestou atenção. — Ele se levantou. O símbolo em sua mão ficou mais brilhante quando ele a estendeu para o guarda. — Será que é melhor eu mostrar? De repente, uma única labareda surgiu no chão árido diante deles. Ela tremeluziu, depois cresceu e lambeu a bota do guarda. Em uma linha fina, o fogo serpenteou ao redor do calcanhar e começou a envolver sua panturrilha e coxa. Ele tentou abafar as chamas com as mãos, o que só as fez aumentar. A labareda subiu até seu pulso e se retorceu em volta do braço como uma pulseira. — O que está acontecendo? — O guarda procurou ajuda, mas seu amigo se afastou.
— Já está doendo? — o jovem perguntou com calma. — Se não, espere só mais um pouco. Vai doer. O fogo se espalhou até que as pernas do guarda, seu torso, seus braços e, por fim, seu rosto confuso e assustado estivessem em chamas. O fogo então passou de laranja a azul. Foi quando o guarda começou a gritar. O outro ficou paralisado, horrorizado, observando o amigo queimar como uma tocha em plena luz da manhã. De repente, as chamas ficaram mais intensas, subindo a quase dez metros no ar e levando o guarda junto. Finalmente, ele parou de gritar. Como uma escultura de vidro caindo num chão de mármore, seu corpo se estilhaçou em um milhão de pedaços. O jovem se virou para o guarda que havia poupado. — Corra. Com os olhos arregalados de terror, o guarda se virou e fugiu. Com o pouco de energia que lhe restava, ele caiu de joelhos. O símbolo em sua mão arrefeceu, tornando-se apenas um traço, uma marca que se assemelhava a uma cicatriz antiga. O chão ainda ardia no ponto onde o guarda alto estivera, embora não restasse mais nada dele além de uma vaga lembrança. Finalmente, a dor diminuiu. Seus pensamentos ficaram mais claros, e um sorrisinho curvou os cantos de sua boca. — É apenas o começo — ele sussurrou enquanto a escuridão se erguia para cobri-lo como ummanto grosso. Logo ele faria todos arderem em chamas pelo que haviam feito. 1 JONAS PAELSIA — Estou com um pressentimento ruim. A voz de Rufus perturbava tanto quanto um mosquito persistente. Jonas lançou um olhar impaciente ao companheiro rebelde em meio à escuridão. — Sério? Em relação a quê, exatamente? — Tudo. Precisamos sair daqui enquanto ainda é possível.
— Rufus inclinou o pescoço grosso e suado para analisar as árvores que os cercavam, guiado apenas pela luz da única tocha que os dois haviam cravado na terra solta. — Ele disse que os amigos chegariam a qualquer momento. Rufus se referia ao guarda limeriano que haviam capturado depois de encontrá-lo vagando perto demais do limite da floresta. No momento, ele estava amarrado a uma árvore, inconsciente. Mas um guarda inconsciente não tinha utilidade nenhuma para Jonas. Ele precisava de respostas. No entanto, concordava com Rufus em um aspecto: o tempo estava se esgotando, já que se encontravam muito perto de uma vila infestada de seguidores do rei em seus uniformes vermelhos. — É claro que ele disse — Jonas afirmou. — Isso se chama blefe. — Ah… — Rufus levantou as sobrancelhas, como se aquilo não tivesse lhe ocorrido. — Você acha? Uma semana se passara desde o ataque rebelde ao campo de trabalho da estrada, no leste de Paelsia, sob as Montanhas Proibidas. Uma semana desde que o plano mais recente de Jonas para derrotar o rei Gaius dera terrivelmente errado. De madrugada, quarenta e sete rebeldes haviam descido para o campo de trabalho ainda adormecido, na tentativa de capturar o engenheiro da estrada, Xanthus, e o herdeiro limeriano, o príncipe Magnus, tornando-os reféns contra o rei Gaius. E fracassaram. Um fogo repentino de chamas azuis queimou tudo pelo caminho, e Jonas quase não conseguiu escapar dali com vida. Além dele, Rufus foi o único rebelde que apareceu no ponto de encontro naquela manhã. Jonas o encontrara ali parado, com lágrimas escorrendo pelo rosto sujo, tremendo de medo e divagando sobre fogo mágico, bruxas e feitiçaria. Apenas dois, de quarenta e sete, restaram. Tinha sido uma derrota avassaladora em diversos aspectos, e, se Jonas pensasse muito sobre isso, ficava cego e paralisado pelos sentimentos de culpa e luto. Seu plano. Suas ordens. Sua culpa. De novo. Tentando desesperadamente afastar a própria dor, Jonas logo começou a coletar informações sobre outros possíveis sobreviventes — qualquer um que pudesse ter sido capturado e levado comvida. O guarda que haviam encontrado usava vermelho.
Era o inimigo. Ele devia ter respostas que pudessem ajudar Jonas. Precisava ter. Finalmente, o guarda abriu os olhos. Era mais velho do que a maioria dos outros, com cabelos grisalhos na região das têmporas. Também andava mancando, o que facilitou sua captura. — Você… Eu conheço você — o guarda murmurou, os olhos brilhando à luz fraca da tocha. — Você é Jonas Agallon, assassino da rainha Althea. Ele proferiu as palavras como armas. Jonas hesitou, mas não demonstrou nenhum sinal de que a mentira mais odiosa já contada a seu respeito o ofendia. — Não matei a rainha — ele resmungou. — Por que eu acreditaria em você? Ignorando a expressão escandalizada de Rufus, Jonas caminhou em círculos ao redor do guarda amarrado, tentando determinar a dificuldade que teria para fazê-lo falar. — Você não acredita em mim. — Ele se aproximou mais. — Mas vai responder algumas perguntas. O guarda pareceu rosnar. — Não vou dizer nada. Jonas já esperava por isso, é claro. Nada vinha fácil. Ele sacou a adaga incrustada de joias da bainha do cinto. Sua lâmina prateada e ondulada refletiu a luz da lua, chamando a atenção do guarda de imediato. Era a mesma arma que havia levado seu irmão mais velho daquele mundo. Aquele lorde auraniano vaidoso e empolado a deixara para trás, fincada na garganta de Tomas. A adaga se tornara um símbolo para Jonas, representando a linha que havia traçado entre seu passado como filho de umpobre comerciante de vinhos, que trabalhava todos os dias no vinhedo do pai, e seu futuro como rebelde, certo de que morreria lutando pelo que mais acreditava: libertar aqueles que amava da tirania. E também aqueles que não conhecia.
Um mundo sem as mãos do rei Gaius apertando o pescoço dos fracos e indefesos. Jonas pressionou a adaga junto à garganta do guarda. — Sugiro que responda minhas perguntas se não quiser que seu sangue seja derramado hoje. — Se o rei souber que o ajudei, será muito pior. Ele estava certo — o crime de auxiliar um rebelde sem dúvida seria punido com tortura ou execução. Provavelmente ambos. Ainda que o rei gostasse de fazer belos discursos sobre os reinos unidos de Mítica com um sorriso largo em seu lindo rosto, não era chamado de “Rei Sanguinário” por ser justo e gentil. — Uma semana atrás, houve um ataque rebelde ao campo de trabalho da estrada, a leste daqui. Você ficou sabendo? O guarda fixou o olhar nele, sem hesitar. — Ouvi dizer que os rebeldes morreram gritando. O coração de Jonas se apertou. Sua mão se fechou num punho, ansiando por fazer o guarda sofrer. Ele sentiu um tremor ao lembrar da semana anterior, mas tentou se concentrar em sua tarefa. Apenas na tarefa. Rufus passou a mão no cabelo desgrenhado e ficou andando de um lado para o outro, nervoso. — Preciso saber se algum rebelde foi capturado com vida — Jonas continuou. — E preciso saber onde o rei os prendeu. — Não faço ideia. — Não acredito em você. Comece a falar, ou juro que corto sua garganta. Não havia medo nos olhos do guarda, apenas um quê de zombaria. — Ouvi tantos rumores terríveis sobre o líder dos rebeldes paelsianos. Mas rumores não são fatos, não é? Talvez você não passe de um camponês… Nem chega a ser cruel o bastante para matar alguém a sangue-frio. Nem mesmo um inimigo. Jonas já matara antes — o suficiente para perder a conta.
Numa guerra tola em que os paelsianos foram enganados e se aliaram aos limerianos contra Auranos. E também na batalha no campo de trabalho da estrada. Ele lutara para derrubar os inimigos e levar justiça a seus amigos, sua família e seus companheiros paelsianos. E para se proteger. Havia um sentido por trás daquelas mortes, mesmo que fosse confuso e incerto. Ele lutava emnome de uma causa, acreditava em algo. Não sentia prazer nenhum em tirar vidas e esperava nunca sentir. — Vamos, Jonas. Ele é inútil — Rufus disse, com a voz tomada pela ansiedade. — Vamos embora enquanto ainda é possível. Mas Jonas não se mexeu, obrigando-se a se concentrar em sua tarefa. Ele não tinha chegado tão longe para desistir agora. — Uma garota chamada Lysandra Barbas lutou na batalha. Preciso saber se ainda está viva. Os lábios do guarda formaram um sorriso cruel. — Ah, então é por isso que está tão determinado a encontrar respostas. Essa garota pertence a você? Jonas demorou um instante para entender o que ele estava dizendo. — Ela é como uma irmã para mim. — Jonas — Rufus choramingou. — Lysandra se foi. Ela está morta. Ficar obcecado por ela só vai nos levar à morte também! Jonas olhou feio para Rufus, e o garoto recuou. Foi o suficiente para fazê-lo calar aquela boca idiota. Lysandra não estava morta. Não podia estar.
Era uma combatente incrível — mais habilidosa com arco e flecha do que qualquer um que Jonas já tivesse visto. Lysandra também se mostrara obstinada, exigente e incrivelmente irritante desde o primeiro momento em que se conheceram. E, se ainda estivesse viva, Jonas faria de tudo para encontrá-la. Precisava dela — tanto como companheira rebelde quanto como amiga. — Você deve saber alguma coisa. — Jonas pressionou mais a adaga na garganta do guarda. — E vai me dizer agora mesmo. Não importava o que estivesse em jogo, Jonas não ia desistir. Não até seu último suspiro. — Essa garota… — o guarda disse por entre os dentes. — Ela vale sua vida? Jonas nem precisou pensar duas vezes. — Sim. — Então não tenho dúvidas de que está tão morta quanto você. — O guarda sorriu, apesar do filete de sangue que escorria por sua garganta. Ele levantou a voz: — Aqui! Passos na terra e o estalo de galhos os alertaram de que meia dúzia de guardas limerianos invadia a pequena clareira na floresta, empunhando espadas. Dois deles levavam tochas. — Largue as armas, rebelde! Rufus tentou golpear um guarda que se aproximava, mas errou feio. — Jonas, faça alguma coisa! Em vez de soltar a adaga, Jonas a guardou no cinto e sacou a espada que havia roubado do príncipe Magnus na semana anterior, antes de escapar. Ele a empunhou bem a tempo de interceptar um golpe vindo diretamente contra seu peito. Rufus tentou se defender, distribuindo socos e chutes, mas não demorou muito para um guarda agarrar seus cabelos, puxá-lo para trás e pressionar uma lâmina em sua garganta. — Eu disse — o guarda resmungou — para largar a arma. Ou seu amigo morre. O mundo parou de repente quando a lembrança do assassinato de Tomas voltou a Jonas. Tudo aconteceu tão rápido — não houve tempo para salvá-lo, para lutar, nem ao menos para implorar por sua vida. E então Jonas se lembrou de outra coisa que estava gravada em sua alma para sempre: seu melhor amigo, Brion, morto pelo mesmo assassino enquanto Jonas assistia, sem poder fazer nada.
Com Jonas momentaneamente distraído, um guarda aproveitou para desferir um soco em seu rosto. Enquanto o sangue quente escorria do nariz, outro guarda arrancou a espada de sua mão, quase quebrando seus dedos. Outro chutou a parte de trás de seus joelhos e o derrubou no chão. O mundo girava e piscava diante de seus olhos, e ele se esforçou para permanecer consciente. Sabia que tudo terminaria naquele momento, que estava fazendo hora extra desde seu último encontro com a morte. Não havia magia para salvá-lo dessa vez. A morte não o assustava mais, mas o momento era impróprio. Ele ainda tinha muito que fazer. No mesmo instante, outra figura entrou na clareira iluminada pelas tochas, fazendo os guardas se virarem. — Estou interrompendo alguma coisa? — perguntou o jovem. Ele parecia alguns anos mais velho que Jonas e tinha cabelo e olhos escuros. Usava um manto também escuro com o capuz abaixado, deixando à mostra a pele muito bronzeada, e abriu um sorriso que revelou dentes retos e brancos, assim como uma aparente indiferença por ter aparecido no meio de uma batalha. Ele analisou a área, começando por um dos lados, onde Rufus estava imobilizado, indo até Jonas, que se apoiava no chão coberto de musgo, com duas espadas apontadas para a garganta. — Saia daqui — um guarda ordenou. — A menos que esteja em busca de encrenca.
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