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A audacia dessa mulher – Ana Maria Machado

Por que eu? Desde o começo da reunião Virgílio estava fazendo essa pergunta a si mesmo. Só agora surgia a oportunidade de fazê-la em voz alta. Mas não teve resposta. Em vez disso, desencadeou duas frases quase simultâneas. — Desculpe, mas não entendi sua dúvida — disse o homem corpulento sentado à cabeceira da mesa comprida. — Tirou-me as palavras da boca — comentou em voz alta a moça magra de cabelo encaracolado, que chegara ainda mais atrasada do que Virgílio e se sentara numa cadeira extra, num cantinho. Diante disso, ele achou que convinha explicar melhor: — Bom, quando eu cheguei, todos já estavam em seus lugares, mas a reunião ainda não tinha começado. Quer dizer, eu acho que não perdi nada. Você se apresentou — o que foi muito bom, porque eu, por exemplo, só o conhecia de nome — e começou a dizer que estávamos todos aqui reunidos para discutir o projeto de uma próxima novela. Falou em prazos, recursos, cronogramas. Depois passou a palavra ao autor, ao diretor, ao pessoal da produção, a quem vai escolher o elenco. Ficamos sabendo que a história se passa no século XIX, no Rio de Janeiro, mas com certeza vai incluir também uma viagem dos personagens à Europa… Enfim, tudo o que nós todos ouvimos e eu não preciso ficar repetindo. Tenho certeza de que prestei atenção e não perdi nada. Mas não consigo deixar de achar que entrei na sala errada, ou vim no dia errado. Apesar de meu nome estar lá fora, com a recepcionista. Quer dizer, por que me chamaram? Eu não tenho nada a ver com isso. — Nem eu… — acrescentou novamente a moça do cabelo cacheado. — Você não é o Virgílio de Pádua Toledo? — perguntou o grandalhão, ignorando o comentário dela. — Exatamente. — Podia dizer aos outros o que faz? — Sou cozinheiro e dono de restaurante. Do Marco Polo, na Lagoa. — E arquiteto de profissão, creio. — De profissão, de paixão, de maldição, como queira… — confirmou ele. — Então é você mesmo que nós chamamos. — Confesso que continuo sem saber por quê.


Não vejo em que eu possa me encaixar na produção de um programa de televisão como esse. Pelas caras dos outros em volta da mesa, Virgílio ia percebendo que a curiosidade não era só sua. Com exceção da moça magra, todos pareciam à vontade ali, em seu ambiente. Eventualmente trocavam comentários em voz baixa, se conheciam. Dava para ver que eram do ramo. Já deviam estar acostumados a trabalhar juntos e não disfarçavam ocasionais olhares meio intrigados em direção a ele e à moça, que nesse momento confirmava com um gesto de cabeça a última frase de Virgílio. Sorrindo, o homem corpulento que comandava a reunião e se apresentara como José Egídio, diretor daquele núcleo, voltou-se então para ela e disse: — Pelo jeito, você está com a mesma dúvida. — Pode ter certeza de que estou. — Mas primeiro você não quer se apresentar, Bia? — convidou ele. Meio hesitante, ela começou: — Meu nome é Beatriz Bueno e eu sou jornalista e… bom, biscateira cultural. Sorrisinhos. — E escritora — acrescentou José Egídio. — Autora de livros de viagem de muito sucesso. E de muito boa qualidade, segundo me garante o Muniz, eu ainda não tive oportunidade de ler. Mas como todos os que conhecem o nosso autor aqui presente sabem de seu nível de exigência, não preciso insistir no valor decisivo que uma recomendação dessas teve em minha decisão de convidar você para estar hoje aqui conosco e se juntar a nós neste projeto que estamos começando. — Para fazer o quê? — perguntou ela, muito direta. Em vez de responder, José Egídio fez um sinal com a cabeça em direção ao Muniz, enquanto devolvia a pergunta: — Ele já vai lhes explicar. Mas antes eu gostaria de saber, por curiosidade: para que você acha que foi chamada? — Imagino que por alguma estratégia nova de divulgação, para fazer uma matéria sobre essa futura série — é série, não? Tenho a impressão de que era o que eu tinha entendido, mas ele acabou de falar em novela e eu fiquei na dúvida. Os gestos de assentimento em volta da mesa confirmaram que não era uma novela, mas uma série. Só que a moça nem se interrompeu e continuou falando: — E vou logo dizendo que é um equívoco, eu não tenho a menor condição, não trabalho no segundo caderno e lá no jornal é tudo muito compartimentado. Eu só escrevo sobre viagens, no caderno de turismo. E nem vou à redação, escrevo em casa ou num hotel quando estou fora, mando o texto pela internet. No fundo, sou só uma colaboradora fixa, não conheço quase ninguém lá, nem dá para pedir uma força numa cobertura… Hesitou um pouco e acrescentou: — Além disso, tem uma coisa meio delicada. Eu trabalho para o jornal. Quer dizer, não posso receber de uma empresa ou de um projeto como esse para trabalhar para vocês.

Não seria ético, entendem? Eu sei que é supercomum, muita gente faz, hoje em dia todo mundo aceita. Mas eu acho que sou meio antiquada nessas coisas. Não estou querendo julgar ninguém nem criticar colega, mas o caso é que eu não faço isso. Para mim, antes de mais nada, vem o interesse do leitor. Não posso ficar plantando elogios no jornal. Quer dizer, eu acho que isso tudo é um grande mal-entendido. Voltando-se para Virgílio, José Egídio repetiu a pergunta: — E você? O que imagina que vamos lhe pedir? — Não faço a menor ideia. Só se estiverem querendo fazer uma locação no restaurante, ou se houver uma cena de banquete como em A festa de Babette e vocês quiserem meus préstimos. — A ideia não está excluída, mas o Muniz lhes explica melhor. Olharam todos para o autor, um sujeito de barba branca bem aparada, que passara o tempo quase todo da reunião rabiscando com o lápis numas folhas de papel à sua frente e agora levantava os óculos para o alto da testa e começava a falar: — Bom, é que eu pensei em trabalhar de uma forma um pouco diferente desta vez. Além do pessoal da pesquisa e dos meus assistentes na pedreira diária de escrever os capítulos (um tremendo trabalho braçal, como ninguém aqui ignora), achei que era bom ter um contato regular, provavelmente uma vez por semana, com uma espécie de consultoria bem informal, e foi por isso que sugeri os nomes de vocês. Antes de mais nada, eu queria alguém com sensibilidade para a linguagem, gente que estivesse acostumada a escrever, e vocês dois já publicaram livros. — Livro de receitas também conta? — brincou Virgílio. — Você sabe tão bem quanto seus leitores que escreveu uma obra que é muito mais que um simples livro de receitas. É uma conversa deliciosa sobre os prazeres da mesa, uma viagem pelos sentidos… Uma obra que nos transporta sensorialmente a um universo tentador. — Obrigado. — Não tem o que agradecer, é isso mesmo. Além do mais, lendo seu livro eu pude ver que, além de gostar de cozinhar, você conhece muito bem o final do século XIX e a virada deste século. Sabe o que se comia na época, como as pessoas moravam, como era a cidade, o jeito das casas por dentro… — Bom… trabalhei um tempo para o Serviço do Patrimônio, tive que conhecer. — Exatamente. Juntando essas duas coisas, já deve estar dando para entender perfeitamente como você pode nos ajudar. Apontou para o bigodudo sentado do outro lado da mesa e prosseguiu: — O Ribamar ali é macaco velho, já dirigiu todo tipo de história, passada em tudo que é cenário e momento. A gente conversou muito, eu estava cheio de dúvidas para escrever um texto com uma história acontecida antigamente, num tempo que eu não vivi. Ele me deu uns toques bons, falou na importância dos detalhes pequenos e do clima geral, uma coisa que passe uma verdade. Eu nunca escrevi uma novela de época… “Mas afinal, é novela ou série?”, pensou Virgílio sem interromper, enquanto Muniz prosseguia.

— … e fiquei achando que além da pesquisa mais formal, cheia de dados concretos, que o próprio pessoal da casa vai me trazer, pode ser muito útil contar com um molho extra, digamos assim. Por isso, para criar essa atmosfera mais total, seria muito bom se você fizesse parte da equipe e nós pudéssemos de vez em quando ter uns encontros, trocar ideias, e discutir essas coisas. — Quer dizer que vocês me querem então para uma consultoria de casa e comida? — De certo modo, mas não só isso… Depois explico melhor a outra ideia. Porque ela está ligada também ao que a gente espera da Bia, que, aliás, não tem nada a ver com divulgação, fique tranquila — acrescentou ele, virando-se para ela, no que foi acompanhado pelos olhares de todos os que se reuniam em volta da mesa. — Ninguém vai lhe criar problemas éticos, nem de dupla lealdade… Mas achei uma maravilha você ter levantado essa questão. Fez uma pausa, levantou-se ligeiramente, puxou para perto a bandeja com a garrafa térmica, serviu-se de café num minúsculo copinho de plástico, pingou duas gotas de adoçante. Enquanto vários outros copinhos foram também se enchendo e começando a circular de mão em mão em volta da mesa, Muniz mexeu com um bastãozinho de plástico o líquido escuro e fumegante e prosseguiu, voltado para a moça: — Aliás, Bia, como eu estava dizendo, só o fato de você ter levantado essa questão já mostra o acerto de minha escolha. Porque a inclusão do Virgílio é mais óbvia, ele quase pode ser classificado como um especialista numa equipe de consultores. Com você é diferente, tudo mais vago, difícil até de explicar. Mas eu tenho certeza de que sua presença é justamente o que eu queria e vai ser uma contribuição valiosíssima para todos nós que vamos trabalhar na série. Bia deu o primeiro gole no café que acabara de receber e quase pelou o céu da boca, de tão quente que estava. Preferia que não estivesse todo mundo olhando para ela. Tinha vindo só para ver o que era, certa de que não ia poder fazer nada. Agora estava curiosa e agradavelmente surpreendida. Esse Muniz era um sujeito interessante, o tal Virgílio também tinha um certo charme. E qualquer tipo de consultoria num projeto desses podia render uma graninha muito bem-vinda para consertar aquele maldito vazamento no banheiro, de que a vizinha de baixo reclamava havia duas semanas. Olhou emvolta, deu um sorriso meio constrangido. Muniz continuou: — Eu já era seu leitor no jornal há algum tempo, Bia, como muitos outros aqui, mas só recentemente comecei a ver com outros olhos o que você escreve. Foi a partir de uma crônica sua, há uns dois meses, sobre viajar no tempo. Em linhas gerais, você defendia a ideia de que todo deslocamento no espaço para uma cultura diferente é também uma viagem para outro momento, outra época, outros tempos possíveis… Achei muito interessante. — Obrigada, mas não chego a acreditar que só porque eu fui a Viena ou a Paris e tenha escrito umas crônicas de viagem, isso me habilite a dar uma consultoria sobre a virada do século XIX para o XX… — interrompeu ela. — Também não acho. E se fosse só por isso, não a teria indicado. O que me interessou primeiro foi que você me fez pensar qualquer viagem de um ângulo novo. E me convenceu, com um texto que… bem, me transportou.

Me fez viajar, digamos. O mínimo que se pode esperar de quem escolhe escrever sobre um tema desses. Mas coisa que raramente se encontra por aí. Fui procurar seu livro, descobri que eram dois. Um sobre viajar sozinha, muito divertido. Outro que desmente o primeiro, de certo modo, porque é sobre nunca conseguir viajar sozinha. A opinião da Bia, para quem não leu e está curioso, é que no fundo ninguém viaja sozinho, porque a gente está sempre em companhia de autores e outros artistas, dos livros, filmes, quadros e músicas que estão sempre conosco, enfim, dos mitos culturais que povoam nossa memória. Deu um gole final no café e concluiu: — Seu livro me fez pensar, Bia. Deu vontade de ter você por perto para trocar ideias. Achei que podia ser muito útil se você pudesse nos ajudar a ver o passado com esses olhos de viajante. “Meio vago”, pensou ela. Mas não disse nada. Percebia que estava querendo fazer parte daquela equipe, tinha curiosidade em conhecer aquela realidade nova, entrar nos bastidores da televisão. Para não falar na tentação do pagamento. Não ia contra-argumentar e correr o risco de ser cortada do projeto. — Só não entendi o que você disse antes — lembrou Ribamar. — Aquela história de que ela levantou uma questão importante para confirmar sua escolha, quando disse que só escreve sobre turismo. — Não foi bem isso — esclareceu Muniz. — O que ela trouxe à discussão foi um ponto de vista ético, que não deixa de ter relação com o nosso tema. Ela disse que, trabalhando no jornal, não pode ser contratada por alguém para elogiar algo nesse mesmo jornal. Não disse exatamente por quê, mas deixou implícito: sua opinião crítica tem que ficar independente, só tem compromisso com o leitor, não pode servir a dois senhores. Não pode ter dupla lealdade. Em outras palavras, não deve quebrar a fidelidade aos leitores. E isso tem tudo a ver com um tema que a novela vai discutir, e de que ainda não falamos. Circulando o olhar por todos os que ali estavam, Muniz concluiu, meio bombástico: — Porque, senhores, como todos poderão ver em seguida quando receberem a sinopse, a fidelidade vai ser um de nossos temas.

Quer dizer, esta será uma história sobre o ciúme. Houve uma expectativa geral de que ele dissesse mais, mas não disse. Quem falou foi José Egídio: — Então, esperando que vocês dois realmente possam se juntar a nós, eu pediria que ficassemaqui mais um instante quando sairmos, porque o Hugo, meu assistente, vai conversar com vocês sobre remuneração, e discutir as nossas necessidades em termos de horários ou disponibilidade. E seria bom que, em seguida, fossem logo se entender com a dona Belmira, aí na saleta de entrada, sobre os detalhes burocráticos da documentação, para que ela possa encaminhá-los aos departamentos competentes. Levantou-se, todos foram fazendo o mesmo, mas Muniz interrompeu: — Só mais uma coisinha que acaba de me ocorrer e eu gostaria de registrar. Acho que pode ser umcontraponto muito interessante ter vocês dois conosco. Não só porque podem nos ajudar com o fimdo século XIX, mas também porque, de certo modo, os dois encarnam muito bem este fim do século XX. Não sei se todo mundo reparou, mas é muito divertido ter esta oportunidade. Vamos contemplar uma época, afinal de contas, não tão distante (talvez nossos bisavós ou os pais deles tenham vivido nela), numa cidade que todos conhecemos porque moramos aqui, e apesar de toda essa proximidade podemos constatar que, embora a paisagem urbana da época tenha se transformado muito, o que realmente mudou mais fomos nós, as pessoas que aqui vivemos. E o Virgílio e a Bia representam isso melhor do que ninguém. Deu um sorriso e explicou: — Um homem que adora ficar na cozinha e uma mulher que gosta de viajar sozinha… Não é só uma rima. É, isso sim, um sinal dos tempos. Papéis trocados. Duas ideias impensáveis no século XIX. Uma contribuição de nosso século para a história da humanidade.

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