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A Cacada – Anna Carey

OEMBARQUE PARA O TREM COM destino a Chicago começará em cinco minutos – diz um anúncio. Poucas pessoas se levantam, algumas arrastando malas. Do outro lado do corredor, você nota um sem-teto encolhido, dormindo debaixo de três assentos. – O que está fazendo aí? Está atrapalhando a passagem! – O homem se curva e recolhe a mala, resmungando alguma coisa. O sem-teto sai de baixo dos assentos, pegando um pacote que estava ao seu lado no chão. Ele sacode a roupa e se levanta. Tira uma passagem do bolso. Então olha para cima, tentando ver o painel. O olhar dele cruza com o seu, e, de repente, vocês são as duas únicas pessoas ali. São os olhos dele: castanhos, claros e reconfortantes. As duas pintas na bochecha direita. O cabelo está mais comprido, cobrindo as sobrancelhas, mas você o reconheceria em qualquer lugar. A barra da camiseta está rasgada. As calças, cobertas de sujeira. Você olha para o pulso direito dele e consegue ver, despontando atrás de um relógio de plástico: a tatuagem. Um símbolo e uma série de números. Exatamente como a sua. Você puxa a pulseira de couro, mostrando-lhe a pele macia do seu próprio pulso. E logo cobre com a mão para que ninguém mais veja. – Você – ele finalmente diz. – É você. Ele então sorri. Você tem tantos sentimentos por essa pessoa que mal consegue respirar. Esse estranho, o garoto dos seus sonhos. – Você está aqui – você diz, enquanto ele caminha na sua direção.


– Você é real. – Achei que você estivesse morta. Quando não apareceu… – Não apareci onde? Ele fica surpreso e olha nos seus olhos. As íris dos olhos dele têm manchas douradas. Nas suas lembranças da ilha, a cabeça dele estava raspada. Mas agora os cabelos grossos e pretos haviamcrescido. Ele dá um passo para trás. – Sua memória não voltou? Você fica tensa com ele te encarando. – Está voltando – você responde. – Mas aos poucos. Sonhos… vislumbres… Você consegue se lembrar de tudo? Mesmo de antes? – Começou assim pra mim – ele diz. – Depois as lembranças começaram a se combinar. Ficou mais fácil conectar as coisas. Você quer saber mais, porém não consegue deixar de prestar atenção na estação de trem. Dois homens de quarenta e poucos anos estão do outro lado do corredor principal, analisando o painel com o número das plataformas. Só leva um segundo para um dos dois notar que você os está observando. – Não deveríamos ficar conversando aqui. Não é seguro. Não podemos nem ser vistos juntos. O garoto se vira para o painel. – Qual o horário do seu trem? – Sai em cinco minutos. – Nova York? – Chicago. – É o mesmo trem. A última parada é Nova York. Você deveria ficar no trem… é para onde eu estou indo.

Você olha para o garoto, sem saber se pode confiar nele. Instintivamente, sente que sim, mas não tem muita certeza disso depois das últimas duas semanas. Confiara em Ben, o cara que te ajudou no dia em que acordou nos trilhos, sem a mínima ideia de quem era ou como havia chegado lá. Vocês ficaram amigos, e depois até um pouco mais que isso. Ele estava disposto a fugir com você. Só que era tudo mentira. O tempo todo, ele estava apenas preparando uma armadilha. Metade da sua atenção ainda está voltada para a multidão. Você ajeita a mochila, certificando-se de que a pulseira cobre a tatuagem, de que a echarpe esconde a cicatriz na lateral do seu pescoço. – Vamos conversar no trem. – Certo. Estou no vagão cinco. Você acena com a cabeça e segue para a plataforma. Há uma fila formada, na qual um funcionário verifica as passagens. Você entrega a sua e olha para o lado, fingindo estar distraída com uma garotinha que brinca na área de espera. De canto de olho, você percebe que aqueles dois homens entraram na fila. O funcionário escaneia o código de barras e você se apressa em direção ao trem. Você não olha para trás para ver se o garoto está lá. Continua em frente, perdendo-se no meio de um grande grupo de adolescentes, notando que alguns usam camisetas vermelhas com a inscrição COLÉGIO JEFFERSON. Você espera os dois homens passarem. Não parece que estão procurando por você, mas é impossível ter certeza. Há menos de duas semanas, você acordou nos trilhos do metrô no meio de Los Angeles, sem lembrança de quem era ou como chegara lá. Quase imediatamente, já estava fugindo de pessoas que queriam te matar. Pouco a pouco, fragmentos de sua memória começaram a voltar, e você tentou compreender o que podia a respeito das pessoas que estavam te perseguindo. Agora, sabe sobre o Grupo A&A – GAA –, a organização que perpetrou um jogo doentio, permitindo que seus membros, secretamente, caçassem seres humanos, a presa suprema.

Você é um alvo. Está marcada com um código, o único jeito de te identificarem. Foi caçada primeiro em uma ilha, em um lugar remoto; depois abandonada no meio de Los Angeles, onde o jogo continuou, com seu caçador seguindo seu rastro pelas ruas da cidade. Já se passaram algumas horas desde que você deixou evidências para Celia, seu contato na polícia. Esperava ter repassado informações suficientes para que ela investigasse o caso. A essa altura, torce para que ela já tenha prendido Goss, o caçador que estava atrás de você. Só que eles podem ter designado outra pessoa para te perseguir, e esse alguém já pode estar te rastreando. Até onde você sabe, o jogo só termina quando você morrer. Depois de encontrar o vagão número cinco, você segue por um longo corredor repleto de portas. Comprou sua passagem com dinheiro vivo, sacado com os cartões do Ben: 450 dólares por um lugar no trem para Chicago. O vagão número cinco está repleto de cabines com camas dobráveis e pias. Os passageiros parecem ricos. Uma senhora está sentada na primeira cabine pela qual você passa, comuma bolsa de couro no colo, óculos de sol de armação dourada sobre cabelos bem arrumados. O homem sentado à frente dela usa uma camisa engomada. O garoto deu um jeito de chegar à cabine antes de você. Ele desaparece algumas portas adiante. Você se demora um pouco, observando os passageiros guardarem o restante de suas bagagens, e passa pelas portas corrediças. Nada parece estranho. Ninguém te seguiu. O trem começa a se movimentar. No vagão-leito, o garoto coloca a mochila debaixo de um dos assentos. Você entra atrás dele, fechando a porta. Há duas poltronas, uma de frente para a outra, e uma cama no alto. Você fica perto da pia estreita e olha pela janela. A plataforma vai ficando para trás.

– Essa suíte inteira é sua? – você pergunta. – É. Comprei as duas passagens só pra garantir. – Assim que você coloca sua mochila no chão, ele se aproxima da janela, fechando a cortina. A cabine fica escura. – Gosta de gastar, não é? – Sou bom em várias coisas… – Ele dá um passo à frente, chocando-se com você por um instante, com a cabeça baixa. Quando você se vira, ele está segurando o maço de dinheiro que você levava no bolso da frente. – Mas sou muito bom em conseguir o que preciso. Ele te devolve o dinheiro com um sorriso. Você nota que os ossinhos da mão direita dele estão feridos. Acomodando-se nas poltronas, vocês ficam um de frente para o outro, joelhos a poucos centímetros de distância. – Me dê um motivo pra confiar em você. – Sua voz está mais aguda, irregular. Você odeia parecer nervosa. Ele se inclina para a frente, com os cotovelos sobre os joelhos. – Você acha que não pode confiar em mim? Quer que eu prove? – Se você puder… Ele levanta os olhos, aponta para o lado direito do seu pescoço, onde a echarpe cobre a cicatriz. – Isso vai da parte de trás da sua orelha direita até um pouco abaixo do ombro. Faz uma pequena curva para a esquerda, no centro. Você tem uma marca de nascença nas costas, bem acima do lado esquerdo do quadril. Tem a forma parecida com a de um carro. Ele espera que você se vire e olhe. Você não precisa fazer isso. Conhece bem suas marcas de nascença e cicatrizes: seu corpo é a única evidência que tem sobre quem era antes. – O que mais? – Você não gosta de abrir a boca quando sorri. Seu cabelo fica todo arrepiado quando chove.

Quando está com medo, você cutuca a cutícula dos dedões. É meio nojento. Sem conseguir se conter, você dá uma gargalhada. – Você consegue correr mais rápido do que eu, mais rápido do qualquer pessoa que eu conheça – ele continua falando. – Sua tatuagem diz FNV02198. Você… – Pode parar… tudo bem. Acredito em você. Ele volta a sorrir, mas não desvia os olhos escuros dos seus. – Ótimo. É bom mesmo. Você havia imaginado as coisas de outra forma. Chegaria perto dele e se sentiria à vontade, confortável, como nos sonhos. Porém ele continua sendo um estranho. Você ainda está se acostumando com a cadência grave e irregular daquela voz. Ao levantar uma sobrancelha, ele repuxa o mesmo lado dos lábios para cima. É uma expressão que você não reconhece. – Quando combinamos de nos encontrar? – Na ilha. – Assim que diz isso, ele muda de expressão, abaixa a cabeça e desvia o olhar. – Era para eu me encontrar com você? – Em São Francisco, na sexta-feira da segunda semana… se nós dois sobrevivêssemos até lá. Eu me lembrei a tempo. Você não. – Ele puxa uma das pernas na direção do peito, aumentando a distância entre vocês. Os bíceps movimentam-se sob a camiseta conforme ele mexe na pulseira do relógio, expondo a tatuagem. Você pensa naquela manhã em que esteve na rodoviária Greyhound e observou a tabela de horários no painel eletrônico sobre o balcão. Chicago, Nova York, Austin, Las Vegas.

São Francisco se destacou. Será que soube, mesmo antes de se lembrar? Será que estava tentando voltar para ele? – Onde em São Francisco? Por que lá? Ele fica olhando para você, esperando alguma coisa… mas o quê? Quando finalmente desvia o olhar, ele apoia a cabeça nas mãos e, praticamente sussurrando, diz: – Lena… – Lena? Seu corpo fica gelado. O nome. Seu nome. Houve um tempo em que quis saber seu nome mais do que qualquer outra coisa, e agora você sabe. Mas ele não te desperta nada. Não há nenhuma associação, nenhuma sensação. Você repete para si mesma: Lena, Lena, Lena, mas soa como qualquer outra palavra. Ele fica em silêncio, vendo você aprender esse fato básico sobre si mesma. – Como já aconteceu com você e não comigo? Como sua memória já voltou? – você questiona. A pergunta fica no ar, mas ele não tem uma resposta. Depois de alguns minutos, ele levanta a cabeça e puxa a cortina. O trem deixou a cidade para trás, as colinas cobrem os edifícios. – Você não se lembra de nada – ele afirma em voz baixa. – Sinto muito… – É tudo o que você consegue dizer. – Você vai ter que me explicar tudo. Desde o início. O que você sabe? O que eu te contei? A expressão dele fica mais suave, e o princípio de um sorriso surge em seu rosto. – Bem, pra começar… – Ele estende a mão. – Eu sou Rafe. – Finalmente. – Você pega na mão dele, deixando-o segurar a sua por alguns segundos antes de puxá-la. – Um nome. – Dois, já que estamos contando… – Então eu me chamo Lena. – Estávamos juntos na ilha.

– Isso eu sei. – Você não menciona os sonhos, que agora sabe que são lembranças, voltando aos poucos desde que acordou. O rosto dele sobre o seu, a voz em seu ouvido, o corpo junto ao seu. Já sabia das duas pintas bem abaixo do olho direito. O arranhão na testa, que agora já está desaparecendo e não passa de uma marca rosada sob a linha do cabelo. Você estava com ele. Estava apaixonada por ele. Ele olha para suas pernas descobertas, para os elegantes sapatos que encontrou. Não é algo que usaria normalmente. Você tira a echarpe, de repente se dando conta do quanto deve parecer idiota. Rafe veste um moletom de capuz e jeans. – Você… de vestido. – Ele sorri. – O que isso quer dizer? – Nunca pensei que veria isso. Eu gostei, é só isso. Você não quer, mas sorri. CAPÍTULO DOIS UMA HORA SE PASSOU, o movimento do trem está te acalmando. Você vê as montanhas se movendo pela janela; sente-se segura naquele espaço pequeno e silencioso. – Você ainda não me respondeu. Por que São Francisco? Por que deveríamos ter nos encontrado lá? Rafe faz uma pausa antes de responder. – Você conhecia umas pessoas lá. Depois que saiu da casa da sua tia, morou lá por quatro meses, antes de voltar para o deserto… – Cabazon? É lá que moram minha mãe e meu irmão? – É, eles moravam. Bem perto da cidade. – Ele se mexe no assento, olhando para o teto. – O que aconteceu com eles? – Você tenta manter a voz firme ao perguntar aquilo, mas é impossível.

Está perto demais de saber algo sobre sua família. Sobre alguma coisa real. Ele respira fundo, prendendo a respiração por alguns segundos. – Depois que seu pai faleceu, um dia você voltou da escola e sua mãe não estava lá. Então esperou por ela. Tentou cuidar do seu irmão pelo tempo que foi possível. Após algumas semanas acreditando que ela voltaria, você ficou sem dinheiro e sem comida. Precisou levar seu irmão para a casa de uma tia que você mal conhecia, que tinha um namorado nojento que você detestava. Você volta a pensar na lembrança do funeral. A mulher ao seu lado cobre o rosto. A pele das mãos dela é tão fina que dá para ver as veias. Seu irmão aparece com mais nitidez, mas apenas como uma criança. As lembranças não vão muito além da risada dele. – Eu disse o nome do meu irmão? – Chris. Chris Marcus. Esse é o seu sobrenome também. – Lena Marcus. – Lena Marcus – ele repete, vestindo o capuz, cruzando os braços e te observando. Você sabe que obrigá-lo a te contar tudo isso é colocá-lo em uma situação esquisita. Odeia que tenha de ser assim. Mas precisa saber. – Onde meu irmão está agora? Você tem ideia? – você pergunta. – Você não sabia ao certo. – Como meu pai morreu? Quando? – Você tinha quinze anos. Foi um ataque cardíaco.

Você o encontrou no carro dele. Você espera sentir aquele puxão forte, a sensação de uma lembrança chegando. Quer se lembrar do que viu, sentir o que sentiu, por mais terrível que possa ter sido. Mas nada acontece. Você não consegue se conectar com nada do que Rafe está dizendo. Ele poderia estar falando sobre qualquer pessoa. – Veja só, Lena… – Rafe fica olhando para você. – Não precisamos falar sobre isso. – Talvez não devêssemos. Talvez seja melhor não saber. Neste exato momento, alguém bate na porta da cabine e ela se abre. Um homem de uniforme azul fica parado, com uma mão apoiada no batente. A barba branca está aparada perto da linha do maxilar. – Passagens, por favor. Ele olha para as roupas sujas de Rafe. Quando o garoto entrega a ele duas passagens de primeira classe para Nova York, ele as analisa com cuidado. Depois as perfura e segue para a cabine seguinte. Sua passagem de classe econômica para Chicago ainda está em seu bolso. Você se inclina para a frente, diminuindo o espaço entre vocês. – Sabe, eu não disse que ia com você. Pode ser mais perigoso se ficarmos juntos. E por que Nova York? Rafe dobra as passagens e as guarda no bolso. – Quero encontrar outros alvos. Outro alvos. Você sabia que existiam outros por aí, é claro.

Naquela casa abandonada – uma espécie de centro de operações – em que viu os membros do GAA, você notou imagens na parede com codinomes como o seu: um falcão, uma cobra, um tubarão. Junto a eles, diferentes cidades: Nova York, Los Angeles, Miami. Mas, na verdade, você não tinha pensado muito nos outros. – Como vai encontrar essas pessoas? Ele ajusta a pulseira do relógio. Agora você consegue ver o quadrado preto. Um animal que parece um alce está gravado no interior, seguido pelo código KLP0211. – Quando eu estava procurando por você em São Francisco, comecei a pesquisar em alguns sites, sabendo que deviam existir outros alvos por aí. – E você encontrou? – Encontrei um. Um garoto que se referia a si mesmo como Connor. Ele colocou um anúncio nos classificados, e acabamos conversando uma vez por videoconferência, apenas por alguns minutos. Ele me falou que já tinha encontrado um alvo e estava procurando outros. Disse que havia locais emNova York em que ele se encontrava com ela. Nossa conversa foi breve, mas ouvi o bastante para me convencer. – E se for uma armadilha? E se ele estiver apenas te atraindo para fora do esconderijo?

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