NO ANO DA GRAÇA de 1150, quando os hereges sarracenos, a escória da terra e a guarda avançada do Anticristo infligiam aos nossos muitas derrotas na Terra Santa, o Espírito Santo desceu sobre a senhora Sigrid e deu a ela uma revelação que mudou sua vida. Talvez se possa dizer, também, que essa revelação conduziu a uma situação que encurtou sua vida. Com certeza sabemos que ela jamais voltou a ser a mesma. Menos certo é aquilo que o monge Thibaud escreveu muito mais tarde, de que, no momento em que o Espírito Santo apareceu diante de Sigrid, surgiu na realidade o que seria o início de um novo reino na Escandinávia, ao norte da Europa, reino que mais tarde viria a se chamar Suécia. Tudo aconteceu durante a Festa de São Tibúrcio, em meados de abril, num dia que passou a ser considerado como o primeiro dia de verão e em que o gelo começava a derreter na província de Götaland Ocidental. Nunca antes se juntou tanta gente num dia como esse em Skara, isso porque a missa não era uma missa comum, mas a que iria assinalar, finalmente, a inauguração da nova catedral. As cerimônias já decorriam na sua segunda hora. A procissão já dera três voltas à igreja, num ritmo infinitamente lento, pelo fato de o bispo õdgrim ser muito velho e se arrastar, como se cada passo fosse o seu último. Além disso, ele parecia um pouco confuso, pois leu a primeira oração em linguagem popular em vez de em latim: “Meu Deus, Tu que invisivelmente cuidas de tudo, mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível, assume esta Tua casa e domina neste templo, assim, todos aqueles que se reúnem aqui para rezar vão poder receber o Teu conforto e ajuda.” E naquele momento, sem dúvida, Deus fez visível Seu poder, quer tenha sido para gáudio das gentes ou por qualquer outro motivo. Foi um espetáculo que ninguém jamais vira em toda a Götaland Ocidental, foram as cores brilhantes da roupagem dos bispos, em seda vermelho-escura, com listras douradas e azul-claras, foram os aromas estonteantes dos incensórios à volta dos quais os cachorros giravam, e como eles balançavam, e foi a música tão celestial que nenhum ser na Götaland Ocidental podia ter ouvido antes coisa semelhante. E ao olhar para cima era como se a gente visse o céu, se bem que estávamos sob o teto da igreja. Era incompreensível que até mesmo os construtores borgonheses e ingleses pudessem ter erguido claustros tão elevados sem que tudo não caísse de uma vez, se não por outro motivo, por Deus ter ficado zangado diante da pretensão de tentar construir qualquer coisa até lá em cima, até Ele. A senhora Sigrid era uma mulher prática. Alguns, por isso mesmo, achavam que ela era durona. Ela não teve nem um pouco de vontade de se meter a caminho e fazer a difícil viagem para Skara, porque a primavera chegara cedo e os caminhos ficaram um lamaçal só e ela se preocupou diante da ideia de se sentar numa carruagem, balançando de um lado para o outro, no abençoado estado em que estava. Mais do que qualquer outra coisa na vida terrena, ela receava o nascimento para breve da sua segunda criança. E sabia muito bem que, tratando-se da inauguração de uma catedral, isso significaria ficar de pé no chão de pedra e, de vez em quando, ajoelhar-se para rezar, o que para ela, no seu estado, seria uma tortura. Ela era bem versada, certamente melhor do que a maioria dos fidalgos e das filhas deles à sua volta nesse momento, no que dizia respeito às muitas regras da vida religiosa. Essa capacidade ela não tinha obtido pela fé ou por vontade própria. Mas, quando tinha dezesseis anos, seu pai, não sem uma boa razão, chegou à conclusão de que ela nutria um interesse exagerado por um parente da Noruega, de berço excessivamente menor, um interesse que só poderia resultar em casamento. Foi assim que, severamente, seu pai encarou o problema. E assim ela foi mandada durante cinco anos para um mosteiro na Noruega, e teria ficado por lá para sempre se não tivesse recebido de uma tia sem filhos uma herança na província de Götaland Oriental e, por essa razão, ter se transformado em alguém que podia casar, não importando com quem, de preferência a ficar enclausurada num convento. Ela sabia, portanto, quando devia ficar em pé e quando devia ajoelhar-se, quando devia balbuciar com os outros o padre-nosso e a ave-maria, sempre que algum dos bispos, lá na frente, indicava e quando as pessoas deviam fazer suas próprias orações. Todas as vezes que ela fazia suas orações silenciosamente, pedia por sua vida.
Deus lhe dera um filho três anos antes. E ela demorara dois dias para dar à luz esse filho. Por duas vezes o sol nasceu e se pôs, enquanto ela ficava banhada em suor, em angústia e em dores. Foi então que soube que iria morrer, e todas as boas mulheres que a ajudaram, no final, também sabiam que isso iria acontecer. Foram elas que mandaram chamar o padre lá em Forshem, e foi ele que lhe deu a absolvição por todos os pecados e a extrema-unção. Nunca mais, esperava ela. Nunca mais aquela dor, nunca mais aquele pânico da morte, pediu ela em sua oração. Mas essa era uma maneira egoísta de pensar, isso ela sabia muito bem. Era bem comum as mulheres morrerem na cama ao dar à luz. E ela sabia que os seres humanos teriam que nascer na dor. Mas cometeu o erro de rezar para a Virgem Maria para que a poupasse, justo ela, e ela tentaria cumprir seus deveres matrimoniais de forma que isso não conduzisse a uma nova gravidez. O filho deles, Eskil, sobrevivera e era uma criancinha bem constituída e esperta, com todas as qualidades que qualquer criança deve ter. A Virgem Maria, certamente, a havia punido. O dever das pessoas era encher o planeta, portanto, como é que se poderia esperar que a sua prece fosse atendida quando ela pretendia escapar dessa responsabilidade? E, assim, ela esperava novas dores, isso era certo. E ainda, mais uma vez, muitas vezes, ela pediu para que mais uma vez sobrevivesse sem graves consequências. Para escapar, pelo menos, à tortura muito menor, mas incômoda, de, por muitas horas, ficar em pé e se ajoelhar, levantar-se e logo se ajoelhar novamente, ela deixou que Sot, a sua criada, fosse batizada para que pudesse ir com ela e entrar na casa de Deus, ficar com ela a seu lado para lhe dar apoio na hora de abaixar-se e levantar-se. Os olhos grandes e negros de Sot ficaram paralisados, como se fossem os olhos amedrontados de um cavalo, por tudo o que ela pôde ver, e se ela antes não era cristã de verdade, então, agora, devia passar a ser. Três metros à frente de Sigrid, estavam o rei Sverker e a rainha Ulvhild. Ambos eram muito pesados pela idade e, assim, tinham muito mais dificuldades para, sem excessivos gemidos ou ruídos impróprios saídos pelo traseiro, levantar-se e cair de joelhos. No entanto, foi por eles e não por Deus que Sigrid se encontrava na catedral. O rei Sverker não considerava muito bem os ancestrais noruegueses ou da Götaland Ocidental dela, nem os do seu marido. E, agora, já bastante idoso, o rei ficou tão desconfiado quanto preocupado com sua vida depois da morte. Deixar de comparecer à grande inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar malentendidos. Se o homem ou a mulher desagrada a Deus, eventualmente a coisa pode ser resolvida direto com Ele. Já contrariar o rei seria para Sigrid muito pior.
Mas, lá pela terceira hora, começaram as tonturas na cabeça de Sigrid, e cada vez a situação piorava, na decorrência do eterno exercício de cair de joelhos e levantar-se, com a criança dentro dela, chutando-a e se mexendo cada vez mais, como se quisesse protestar. Ela teve a sensação de que o chão de lajes amarelo-claras e polidas começava a balançar sob seus pés, e que começava a rachar, como se quisesse abrir-se e, de repente, sugá-la. Foi então que ela fez algo nunca visto nem contado. Partiu resoluta, com as sedas farfalhando, e sentou-se em um pequeno banco lá longe na nave lateral. Todos viram o acontecido, o rei também. Justo no momento em que ela, aliviada, se deixou cair no pequeno banco de pedra junto da parede da igreja, entraram em procissão na igreja os monges de Lurõ. Sigrid enxugou o suor na testa e no rosto com um lencinho de linho e fez para seu filho, que estava lá longe com Sot, um aceno estimulante. Então, os monges começaram a cantar. Tinham avançado por toda a nave central, de cabeça baixa, como se estivessem em oração, e foram colocar-se bem lá na frente junto ao altar, de onde os bispos e seus ajudantes estavam se retirando. Primeiro, escutou-se apenas algo como um murmúrio, fraco e surdo, e depois, de repente, vozes agudas juvenis; isso mesmo, uma parte dos monges de Lurõ tinha capas marrons e não brancas, e era claramente bem entendido que se tratava de rapazes de pouca idade e suas vozes subiam como se fossem pássaros brancos esvoaçando em direção ao enorme teto da nave, e quando as vozes alcançaram seu ponto mais elevado, enchendo toda a grande nave surgiram as vozes graves e adultas dos próprios monges que cantavam ora em compasso ora emdescompasso. Sigrid já tinha escutado cantos em duas ou três vozes, mas neste caso o canto estava sendo apresentado em pelo menos oito vozes. Parecia um milagre, uma coisa que não poderia acontecer, uma vez que três vozes já era muito difícil de conceber. Sigrid olhava fixa e exaustivamente, de olhos arregalados, para o lugar onde acontecia o milagre, e escutava com todo o seu ser, com todo o seu corpo, de tal maneira que entrou em transe, estremecendo de tensão, e então ficou tudo escuro diante dos seus olhos e ela não mais podia ver, apenas escutar, como se os ouvidos tirassem dos olhos a potência toda para só escutar. Era como se ela tivesse desaparecido, como se tivesse se transformado em sons e em parte de toda a música sagrada, mais bonita do que qualquer outra melodia apresentada nesta vida. Um momento depois, ela voltou aos seus sentidos normais pelo fato de algo ter tocado sua mão, e quando levantou os olhos descobriu que era o próprio rei Sverker. Este dava uns tapinhas delicados na sua mão e agradecia a ela, ironicamente, porque ele, de fato, era bem idoso, e bem precisado estava que uma mulher em estado interessante se antecipasse a ele e se sentasse. Se uma mulher abençoada podia sentar-se, também o rei podia, queria ele dizer. Mas, se a ordem dos acontecimentos fosse inversa, isso, claro, já não iria parecer tão bem. Sigrid conteve decididamente a intenção de contar aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou, se contasse a história, poderia parecer que ela estava se fazendo de importante. Os reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém corta a cabeça deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira rápida a conclusão a que tinha chegado. Era a respeito, como certamente o rei já sabia, da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. Sua parente Kristina, que acabara de se casar com um tal de Erik Jedvardsson, um homem ambicioso, reclamara metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ precisavam de um lugar com invernos menos rigorosos.
Uma grande parte do que plantavam acabava se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à grande generosidade do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela, Sigrid, desse agora Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a dádiva e declará-la legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido. Todos iriam ganhar com a solução. Ela havia falado rápido e em voz baixa e ficou ofegante, o coração continuando a bater forte, tal como no momento em que escutava a música celestial e a escuridão se transformou em luz. O rei, primeiro, pareceu ficar surpreso. Ele mal estava acostumado a que os homens à sua volta falassem com ele direto e sem os cerimoniosos rodeios habituais. Muito menos as mulheres. — Você é uma mulher abençoada em muitos aspectos, minha cara Sigrid — disse ele, finalmente, com palavras lentas e pegando de novo a mão dela. — Amanhã, quando já tivermos dormido no castelo depois do banquete de hoje, irei chamar o padre Henri e aí vamos resolver toda essa história. Amanhã, mas não hoje. Também não ficará bem continuarmos aqui nós dois, sentados durante muito mais tempo a sussurrar. De um momento para o outro, ela tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher, poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei, assim como o rei jamais poderia quebrar a sua palavra. Aquilo que ela fizera ninguém jamais poderia desfazer. Mas foi também uma atitude prática, entendeu ela, quando se recuperou um pouco. O Espírito Sinto podia, portanto, ser prático, e os caminhos do Senhor nem sempre eram tortuosos. Varnhem e Arnäs distavam uma da outra quase dois dias de marcha a cavalo. Varnhem estava situada perto de Skara, não muito longe da residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na margem leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava o de Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais nova e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar lá o tempo mais frio, emespecial quando as terríveis dores do parto estivessem para chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca conseguiram chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do problema com a calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher. Arnäs precisava ser reequipada e reconstruída.
Mas estava localizada numa área-limite, ao longo da floresta, sem donos, onde havia muitos terrenos livres e outros pertencentes ao rei, compossibilidades de negociação ou compra. Nessa propriedade muita coisa poderia ser mudada para melhor, em especial se servos e ferramentas fossem transferidos de Varnhem. Não foi exatamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o assunto quando fez Sua aparição perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava bem clara, uma manada de cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que lembravam a madrepérola. Os cavalos haviam chegado, correndo na sua direção, perto de uma lagoinha com muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as caudas desdenhosamente levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis como gatos. Era um prazer vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos selvagens nem cavalos sem dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por trás dos cavalos brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando num cavalo prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente levantada. Ela conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele portava escudo, mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer como sendo de qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo era totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais. O jovem refreou o seu cavalo bem junto dela e falou com ela, e ela ouviu todas as palavras, entendeu tudo, mas ao mesmo tempo não entendeu nada. Mas Sigrid sabia que o que ele disse significava que ela teria de dar a Deus um presente, que, no momento, era a atitude mais necessária, neste condado, onde o rei Sverker reinava, isto é, dar um bom lugar para os monges de Lurõ. Mais tarde, ela observou bem os monges, à medida que saíam lentamente, após a sua longa apresentação. Não pareciam nem um pouco perturbados pelo milagre que tinham acabado de provocar. Parecia mais como se eles tivessem terminado um turno de trabalho, de quebrar pedra, um entre tantos outros turnos na Götaland Ocidental, como se eles, agora, estivessem pensando mais na ceia do que em qualquer outra coisa. Tinham conversado por um momento, coçado por um momento as manchas vermelhas que muitos deles exibiam nas carecas grosseiramente raspadas. Em muitos a pele era enrugada no rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ, qualquer um podia ver isso, e o inverno, certamente, não lhes fora muito benigno. Portanto, a vontade de Deus não era difícil de entender, aqueles que conseguiam cantar milagres precisavam receber um lugar melhor para viver e para trabalhar. E Varnhem era um lugar muito bom. Quando saiu pela escada da catedral, sua mente clareou por efeito do vento fresco que soprava, e ela entendeu, num golpe repentino de inspiração, quase como se estivesse ainda possuída pelo Espírito Santo, o que e como devia dizer para o marido que vinha na sua direção naquela confusão toda, com os mantos no braço. Ela examinou-o, com um sorriso meio discreto, mas totalmente seguro. Ela mantinha essa relação porque ele era um marido tranquilo e um pai extremoso, embora não fosse o tipo de homem para ser venerado ou admirado.
Era difícil acreditar que ele, de fato, fosse neto de um homem totalmente diferente, o fortíssimo Folke, o Gordo. Magnus era um homem magro e, se não fossem as roupas estrangeiras que no momento ele vestia, as pessoas poderiam dizer que se tratava de um qualquer no meio da multidão. Quando chegou à sua frente, ele fez uma vênia e pediu a ela para pegar seu manto enquanto ele envolvia o próprio corpo com o seu grande manto azul-celeste, forrado com pele de marta, prendendo-o ao pescoço com uma fivela norueguesa de prata. Depois, ajudou-a, ensaiando uma carícia com suas mãos delicadas, que não eram as mãos de um guerreiro, e perguntou como é que tinha podido aguentar por tanto tempo as louvações ao Senhor no seu bem-aventurado estado. Ela respondeu que não tinha passado por nenhuma dificuldade, já que, em parte, tinha trazido Sot para ampará-la e, por outro lado, o Espírito Santo dignou-se aparecer para ela. Disse isso de uma maneira que costumava usar quando dava a entender que não falava a sério. Ele sorriu da sua esposa, acreditando que se tratava de mais uma das habituais brincadeiras, e procurou em seguida pelo escudeiro que vinha na sua direção com a espada trazida da sala de armas. Quando meteu a espada por baixo do manto e começou a colocá-la no cinturão, seus cotovelos ficaram por baixo do manto, o que fez com que seu corpo parecesse largo e forte, coisa que ele não era. Então, ofereceu à mulher seu braço e perguntou se ela queria dar uma voltinha pela praça diante deles e ver o espetáculo ou queria ir imediatamente descansar. Sigrid respondeu logo que gostaria de esticar um pouco as pernas, sem precisar cair de joelhos a toda hora, e ele sorriu timidamente de mais essa piada atrevida dela e comentou que seria até divertido ver todos esses jogos para os quais o rei os convidou. No centro da praça atuavamacrobatas franceses e um homem que vomitava fogo, tocavam-se flautas e gaitas e, mais além, de uma das grandes barracas de cerveja escutava-se o som surdo de tambores. Os dois avançaram cuidadosamente entre a multidão onde os mais conceituados visitantes da igreja agora se misturavam com o povo e os servos. Depois de um curto momento, ela inspirou profundamente e disse tudo de uma vez, sem desvios: — Magnus, meu querido marido, espero que você possa se manter superiormente calmo e digno, ao escutar agora aquilo que acabo de fazer — começou ela e, fazendo nova inspiração, continuou rápido, antes que ele tivesse tempo de responder: — Dei a minha palavra ao rei Sverker de que ofereceria de presente aos monges cistercienses de Lurõ a nossa propriedade de Varnhem. Jamais poderei retirar a minha palavra dada ao rei, é irrevogável. Vamos nos encontrar com ele amanhã no castelo, para que isso seja escrito e ratificado com o sigilo real. Tal como havia previsto, ele parou de repente e olhou primeiro para o rosto dela, inquiridor, procurando por aquele sorriso que ela exibia ao falar brincando, à sua maneira toda especial. Mas ele entendeu logo que ela falava sério e, então, a raiva se apossou dele com tal intensidade que por pouco não lhe deu uma bofetada, que seria a primeira, se eles não estivessem entre amigos e inimigos e todo aquele povão. — Você está fora de si, mulher! Se não fosse pelo fato de ter herdado Varnhem, ainda hoje estaria apodrecendo no mosteiro. E foi por causa de Varnhem que nos casamos. Foi no último momento que ele se conteve e acabou falando baixo, mas entre dentes, os lábios fortemente contraídos. — Sim, isso é verdade, meu querido marido — respondeu ela, com o olhar virtuosamente abaixado. — Se eu não tivesse herdado Varnhem, os seus pais teriam escolhido outra pretendente. Nesse caso, é verdade, eu seria agora uma freira, mas é verdade também que nem Eskil nem essa nova vida que carrego abaixo do meu coração existiriam se não fosse por Varnhem. Magnus não respondeu. Parecia estar pensando na escolha das palavras certas para expressar a sua raiva.
E, nesse momento, chegou Sot, trazendo pela mão Eskil, que imediatamente correu na frente e pegou a mão de sua mãe e começou a falar rápido e alto de tudo o que tinha visto lá dentro na catedral. Depois de ter sido obrigado a ficar calado e quieto por tanto tempo, ele falava agora como se as palavras jorrassem como a água de uma represa quando é aberta na primavera, impossível de conter. Magnus pegou seu filho nos braços, acariciou seus cabelos com amor, ao mesmo tempo que encarava a esposa com hostilidade. Mas, de repente, ele largou o menino no chão e ordenou a Sot, quase que de maneira desagradável, que levasse Eskil para ver as brincadeiras e que logo emseguida se veriam de novo. Sot, surpresa, pegou o menino pela mão e puxou-o para longe, enquanto este, contrariado, choramingava e resistia. — Mas, como você sabe, meu caro marido — continuou Sigrid, rápido, para que fosse ela a conduzir a conversa e não deixando que ele prosseguisse, encolerizado, antes voltasse ao bom senso e à calma. — Sempre desejei receber Varnhem de presente de casamento, embora tenha sido eu que herdei a propriedade, e que consegui que a herança ficasse registrada com o sigilo real, e ainda que, para mim, bastem o manto que trago sobre meus ombros agora e apenas um pouco de ouro para me enfeitar. — É, isso também é verdade — respondeu Magnus, ainda mal-humorado. — Mas, ao mesmo tempo, Varnhem representa um terço do nosso patrimônio em comum, um terço que agora você acaba de tirar de Eskil. O que não consigo entender é como você foi capaz de fazer uma coisa dessas, mesmo que tivesse direito a fazê-lo. — Vamos andar devagar, na direção das brincadeiras, para não ficarmos aqui quietos, como se déssemos a entender que estamos zangados um com o outro. Eu vou explicar tudo — disse ela, oferecendo o braço para ele. Magnus olhou em volta preocupado, reconheceu que ela tinha razão, sorriu com esforço e pegou-a pelo braço. — Bem — disse ela, hesitante, após uns segundos. — Vamos começar pelas coisas terrenas, as que mais enchem a sua cabeça neste momento. Evidentemente, vou levar para Arnäs todos os animais e os servos. Varnhem tem, sem dúvida, as melhores construções, mas Arnäs, por isso mesmo, vai possibilitar que a gente construa a partir do terreno, especialmente agora, quando vamos receber tantas mãos para trabalhar mais. Dessa maneira, vamos ter um lugar melhor para morar, em especial durante o inverno. Mais animais significam mais barricas de carne salgada e mais peles, que agora já podemos mandar para Lõdõse de barco. Você sempre quis muito negociar com Lõdõse, e isso a gente poderá fazer a partir de Arnäs, com muito mais facilidade, tanto no inverno quanto no verão. Isso seria mais difícil de fazer a partir de Varnhem. Magnus andava ao seu lado, silencioso e inclinado para a frente, mas ela viu que ele se tinha acalmado e começava a escutar com interesse, e então concluiu que não era mais uma questão de guerra com palavras. Viu tudo bem claro diante de si, como se tivesse levado muito tempo para planejar as coisas, quando, na verdade, a ideia toda não tinha mais do que uma hora de vida. Mais peles e mais barricas com carne salgada para Lõdõse significavam mais moedas de prata, e mais moedas de prata significavam mais sementes. Mais sementes significavam que mais servos poderiam conquistar a sua liberdade através da preparação de novos campos para sementeira, de empréstimos em sementes pagas pelo dobro em centeio que, mandadas para Lõdõse, seriam trocadas por mais moedas de prata.
E, então, seria possível encomendar as muralhas que Magnus sempre havia pensado em erguer, já que Arnäs era difícil de defender, em especial durante o inverno, quando o gelo facilitava a passagem. Através da unificação de todos os esforços em Arnäs, em vez de os partilhar por dois lugares, seria possível para eles dois ficarem mais ricos, com todos os terrenos novos compondo uma propriedade maior, edificar um lar mais quente e seguro e deixar para Eskil uma herança maior do que se poderia imaginar antes. Quando chegaram bem na frente da multidão, tiveram que forçar a passagem, é claro, e, sem dar quaisquer sinais, Magnus se manteve silencioso e pensativo. Sot chegou aos pulos, trazendo Eskil nos braços, e levantou-o diante de si para que o povo pudesse ver as roupas dele e que, com ele nos braços, também ela, uma escrava, tinha direito a forçar a passagem, e aí o garoto pulou para o chão e colocou-se em frente da mãe que suavemente colocou suas mãos em seus ombros, acariciou sua face e corrigiu a posição do gorro cheio de penas. Os artistas diante deles estavam vestidos com roupas engraçadas, de cores fortes e com pequenas campainhas penduradas nas pernas e nos punhos, de modo que todos os seus movimentos se misturavam com o som das campainhas. Nesse momento estavam formando uma pirâmide humana, e, com um garoto muito pequeno, talvez um pouquinho mais velho do que Eskil, no final, lá bem no alto e sozinho no topo. O povo gritava alto, de terror e deslumbramento, e Eskil apontava o dedo insistentemente e dizia que queria ser artista, o que levou seu pai a explodir numa sonora e surpreendente gargalhada. Sigrid olhou disfarçadamente para ele e pensou que com aquela gargalhada o perigo já havia passado. Magnus descobriu que ela tinha olhado furtivamente e ainda sorria quando ele se inclinou para a frente e a beijou na face. — Você é, na realidade, uma mulher especial, Sigrid — sussurrou ele, sem sinal de raiva na voz. — Pensei no que falou e você tem razão em tudo. Se juntarmos todas as nossas forças em Arnäs, vamos ficar mais ricos. Como é que um mercador poderia conseguir uma esposa melhor e mais fiel do que você? Ela respondeu depressa e em voz baixa, com olhar submisso, que nenhuma esposa poderia ter umhomem mais bondoso e mais compreensivo do que ele. Mas levantou logo os olhos, encarou-o seriamente e acrescentou que, de fato, era verdade, ela tivera uma revelação lá dentro na igreja e que todos os seus pensamentos devem ter vindo direto do próprio Espírito Santo, até mesmo os mais sensatos e que diziam respeito aos negócios. Magnus mostrou-se um pouco mal-humorado, como que não acreditando realmente no que ela estava dizendo, quase como se ela estivesse zombando com o Espírito Santo. Ele era muito mais religioso do que ela, isso os dois sabiam muito bem. Os anos que ela passava no mosteiro não a tinham tornado mais maleável. Quando os artistas terminaram a apresentação e saíram na direção da tenda da cerveja, para receber sua dose grátis e os bifes que bem mereciam, Magnus levantou o filho nos braços e caminhou em direção ao portão da cidade, tendo Sigrid a seu lado e Sot, dez reverenciosos passos atrás. Do outro lado do cercado, esperava a carroça deles e os escudeiros. No caminho, Sigrid contou a respeito da revelação que ela teve. Relatou sensatamente, com muitas palavras, já que ela tambémdescreveu como se deve entender o conteúdo das santas mensagens. O primeiro parto quase provocara a sua morte e fora a Santa Mãe de Deus que a salvara, e tambéma Eskil, quando já estavam no limiar da morte. Era já bem conhecido que um parto difícil muitas vezes seria seguido de outro também difícil e agora estava novamente na hora. Mas através da dádiva de Varnhem ela tinha assegurado muitas preces favoráveis, mais ainda partindo de homens os mais competentes para fazê-las. Ela e a nova criança iriam sobreviver.
Mas, mais importante, evidentemente, era saber que as suas famílias reunidas iriam agora ficar mais poderosas quando Arnäs fosse reconstruída mais forte e mais rica. A única coisa sobre a qual ela estava insegura era a respeito de quem seria o jovem do cavalo prateado, com uma farta crina branca e uma cauda longa e vistosamente levantada, também branca. Que não fosse, pelo menos, o Santo, Jesus Cristo. Ele não poderia vir a cavalo naquele garanhão folgado e de escudo no braço. Magnus ficou refém do problema, cogitou por um momento e começou depois a se questionar a respeito do tamanho dos cavalos e da maneira como se movimentavam. Depois, objetou que tais cavalos certamente não existiam. E a seguir tentou imaginar o que ela quereria dizer com o fato de o escudo ter uma cruz de sangue. Nesse caso, certamente, era uma cruz vermelha, mas como é que ela poderia saber que era sangue e não apenas tinta vermelha? Ela respondeu que apenas sabia que era assim. A cruz era vermelha, mas de sangue. O escudo era totalmente branco. Ela não pôde reparar nas roupas do jovem, visto que seu escudo tapava o peito dele, mas, de qualquer maneira, de fato, as roupas eram brancas. Brancas como as dos cistercienses, mas monge ele não era absolutamente, visto que segurava o escudo de um guerreiro. E supostamente ele teria uma cota de malha por baixo da roupagem. Magnus, pensativo, perguntou sobre o formato e o tamanho do escudo, mas quando soube que o “formato era de um coração, não maior do que o peito defendido, abanou a cabeça, descrente, explicando jamais ter visto esse tipo de escudo. Os escudos eram ou grandes e redondos, como os que antigamente eram levados para a guerra, ou alongados e de base triangular, de forma que os guerreiros pudessem se movimentar melhor quando colocados em grupo. Um escudo tão pequeno como esse que ela tinha visto na revelação seria mais um contratempo do que uma defesa quando usado em combate. Mas, como simples mortal, não se podia entender tudo o que fora revelado. E à noite eles iriamrezar juntos em agradecimento pelo que a Mãe de Deus lhes mostrara como indulgência e sensatez. Sigrid respirou fundo e teve uma grande sensação de alívio e de paz. Agora, o pior já tinha passado. Restava apenas torcer o velho soberano para que ele não tirasse dela o presente e o desse apenas em seu próprio nome. Desde que chegara à velhice, o rei começara a se preocupar cada vez mais com o número de orações rezadas diariamente por sua alma e já tinha fundado dois mosteiros para assegurar sua salvação. Todos sabiam disso, tanto seus amigos quanto seus inimigos. O rei Sverker estava sofrendo de uma cruel ressaca e, mais ainda, furioso quando Sigrid e Magnus entraram no grande salão do castelo onde ele estava terminando um dia inteiro de decisões a respeito dos mais variados assuntos, desde se os gatunos apanhados no dia anterior no mercado deveriam ir para a guilhotina, ou se seriam enforcados ou torturados antes, até as questões de terras e heranças que não teriam sido solucionadas da maneira normal.
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