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A Casa do Penhasco – Agatha Christie

Para mim, não existe nenhuma cidade litorânea no sul da Inglaterra mais bonita do que St. Loo. Com o merecido título de Rainha das Balneárias, ela lembra muito a Riviera. A meu ver, a costa da Cornualha é tão fascinante quanto o sul da França. Comentei isso com meu amigo, Hercule Poirot. – Mas isso era o que estava escrito nos nossos cardápios do vagão-restaurante ontem, mon ami. Seus comentários não são originais. – Mas você não concorda? Ele riu para si mesmo e não respondeu minha pergunta. Eu a repeti. – Mil perdões, Hastings. Estava pensando em outra coisa. Aliás, pensando nessa parte do mundo que você acabou de mencionar. – No sul da França? – Sim. Estava me lembrando do último inverno que passei lá e de tudo o que aconteceu. Eu me lembrava. Houve um assassinato no Trem Azul, um mistério – bastante confuso e complicado – que Poirot resolveu com sua infalível perspicácia de sempre. – Como eu queria estar lá com você – disse com grande pesar. – Eu também – disse Poirot. – Sua experiência teria sido inestimável. Lancei um olhar de lado para ele. Por força do hábito, sempre desconfio de seus elogios, mas ele parecia sincero. E, afinal, por que não seria? Tenho uma vasta experiência com os métodos que utiliza. – O que mais me fez falta foi sua imaginação fértil, Hastings – continuou ele, pensativo. – Todos precisam ter um pouco de bom humor. Meu criado, Georges, é um homem admirável com quem eu às vezes me permitia discutir algumas coisas, mas ele não tem o mínimo de imaginação.


Esse comentário me pareceu deveras irrelevante. – Diga-me, Poirot – indaguei. – Você nunca se vê tentado a voltar ao trabalho? Essa sua vida tranquila… – Agrada-me muito, meu amigo. O que poderia ser melhor do que ficar à toa? Quer gesto mais grandioso do que descer do pedestal no auge da fama? Todos vão dizer: “Aquele é Hercule Poirot! O grandioso, o único! Nunca existiu ninguém como ele e nunca existirá!”. Eh bien! Já me dou por satisfeito. Não preciso de mais nada. Sou um homem modesto. Eu mesmo não usaria a palavra “modesto”. A vaidade do meu caro amigo não parecia ter diminuído em nada ao longo dos anos. Ele se inclinou para trás na cadeira, acariciando seu bigode e quase ronronando de tanta autossatisfação. Estávamos sentados em um dos terraços do Hotel Majestic, que é o maior de St. Loo, situado emterreno próprio em um cabo com vista para o mar. Os jardins do hotel se estendiam abaixo de nós, com algumas palmeiras aqui e ali. O mar era de um azul lindo e profundo, o céu estava claro, e o sol brilhava com todo o sincero fervor que um sol de agosto deveria ter (embora muitas vezes se recusasse a isso na Inglaterra). Um zumbido forte de abelhas podia ser ouvido, um som até agradável – e, na verdade, nada poderia ser mais ideal. Nós tínhamos chegado na noite anterior, e aquela era a primeira manhã do que seria uma semana inteira de folga, conforme proposto. Se o tempo continuasse como estava, nossas férias tinham tudo para serem perfeitas. Peguei o jornal que tinha caído da minha mão e voltei a ler as notícias matinais. A situação política parecia insatisfatória, porém desinteressante, relatos de problemas na China, uma longa matéria sobre uma suposta fraude municipal, mas, no geral, não havia nada sobre qualquer assunto muito empolgante. – Mas que curiosa essa tal doença do papagaio – comentei, enquanto virava uma página. – Sim, muito curiosa. – Mais duas mortes em Leeds, acabei de ler. – Lastimável. Virei mais uma página. – E nada ainda sobre aquele piloto, Seton, que estava tentando dar a volta ao mundo.

Aquele avião anfíbio dele, o Albatross, deve ser um grande invento. Seria uma pena se ele morresse assim. Não que já tenham perdido as esperanças. Talvez ele possa ter conseguido chegar a alguma ilha do Pacífico. – Os nativos das Ilhas Salomão ainda são canibais, não são? – indagou Poirot com uma voz tranquila. – Ele deve ser um bom sujeito. Esse tipo de coisa até me faz pensar que talvez não seja mesmo nada mau ser inglês. – É um consolo pelas derrotas em Wimbledon – disse Poirot. – Não, não, digo… – comecei. Meu amigo rebateu essa tentativa de desculpas com um aceno gentil. – Eu… – anunciou ele. – Eu não sou um anfíbio, como a aeronave do pobre capitão Seton, mas sim um cosmopolita. E pelos ingleses, como você bem sabe, sempre nutri uma profunda admiração. Como pela forma cuidadosa com que leem o jornal, por exemplo. Minha atenção havia se desviado para a seção de política. – Parece que estão partindo para cima do ministro do Interior – comentei, soltando uma risada. – Pobre homem. Esse aí tem problemas. Ah, se tem! Tanto que até busca ajuda nos lugares mais improváveis. Olhei para ele. Abrindo um leve sorriso, Poirot sacou do bolso as correspondências do dia, amarradas comtodo esmero por um elástico de borracha. Ele escolheu uma das cartas e jogou-a para mim. – Acho que não vimos isso ontem – ele comentou. Li a carta com um delicioso sentimento de empolgação. – Mas, Poirot – gritei.

– Isto é uma grande honra! – Acha mesmo, meu amigo? – Ele fala das suas habilidades com a mais alta estima. – E ele tem razão – disse Poirot, desviando os olhos com modéstia. – Ele está implorando para que você investigue esse assunto… e até fala como se fosse um favor particular. – De fato. Você não precisa me repetir tudo isso. Sabe, meu caro Hastings, eu já li essa carta. – Mas que pena! – bradei. – Isso vai encerrar nossas férias. – Não, não, calmez vous… isso está fora de cogitação. – Mas o ministro do Interior disse que o assunto é urgente. – Talvez seja mesmo… ou talvez não. Esses políticos costumam se exaltar com muita facilidade. Já vi isso na Chambre des Deputés em Paris. – Sim, sim. Mas, Poirot, não seria melhor pensarmos nos preparativos? O expresso para Londres já saiu… o trem parte ao meio-dia. O próximo só… – Acalme-se, Hastings, acalme-se, por favor! Sempre todo esse alvoroço, toda essa agitação. Nós não vamos para Londres hoje… nem amanhã. – Mas esta convocação… – Não me diz respeito. Não faço parte da sua equipe policial, Hastings. Estou sendo convidado a assumir um caso como detetive particular. E vou recusar. – Você vai recusar? – É claro. Vou escrever uma carta com toda cortesia, expressando meu pesar, pedindo desculpas e explicando que estou completamente desolado… mas o que posso fazer? Estou aposentado. Já cheguei ao fim da linha. – Não chegou, não! – exclamei.

Poirot me deu um tapinha no joelho. – É o que diria um velho amigo, um cão fiel. E você tem razão também. Minha massa cinzenta ainda funciona, a ordem, o método, tudo ainda está lá. Mas, se digo que me aposentei, meu amigo, é porque me aposentei! Não sou nenhum artista famoso para me despedir uma dúzia de vezes do público. Com toda generosidade, eu digo: vamos dar uma chance aos jovens. Talvez eles consigam fazer algo decente. Duvido muito, mas é possível. De qualquer forma, creio que se virarão bem o bastante com esse tedioso caso do ministro do Interior. – Mas, Poirot, imagine a honra! – Estou acima de qualquer honra. Como o homem sensato que ele é, o ministro do Interior acredita que tudo será resolvido caso consiga contratar meus serviços. Mas o que posso fazer? Ele está sem sorte. Hercule Poirot não está mais na ativa. Olhei para ele. Do fundo do meu coração, achei aquela teimosia toda algo deplorável. A solução de um caso como aquele poderia dar ainda mais brilho ao renome de proporções globais de que ele já gozava. Ainda assim, era impossível não admirar sua postura tão firme. Uma ideia me veio à mente, e eu sorri. – Mas me diga, você não tem medo? – perguntei. – Uma declaração tão enfática assim comcerteza poderá provocar algumas reações. – Nada poderia abalar a decisão de Hercule Poirot – respondeu ele. – Nada, Poirot? – Você está certo, mon ami, não se deve usar essa palavra. Eh, ma foi, também não posso dizer que, se uma bala acertasse a parede ao lado da minha cabeça, eu não investigaria! Afinal, sou apenas humano! Abri um sorriso. Uma pedrinha tinha acabado de cair no terraço ao nosso lado, e o exagero na analogia de Poirot me pareceu engraçado. Ele se abaixou para pegar a pedrinha e continuou falando.

– Sim, sou apenas humano. Como um cão adormecido, tranquilo e calmo, mas um cão adormecido sempre pode ser acordado. Existe um ditado em inglês que diz isso. – Claro – disse eu. – Se você encontrar uma faca cravada no seu travesseiro amanhã de manhã, que o criminoso responsável trema de medo! Ele acenou a cabeça, mas de um jeito um tanto distante. De repente, para a minha surpresa, ele se levantou e desceu a pequena escada que dava para o jardim. Enquanto isso, uma moça apareceu e veio correndo até nós. Eu estava acabando de registrar a impressão de que aquela era de fato uma moça bonita quando minha atenção se voltou para Poirot que, sem olhar onde pisava, tinha tropeçado em uma raiz e caído com tudo no chão. Ele estava ao lado da moça, e então eu e ela o ajudamos a se levantar. Minha atenção estava naturalmente focada em meu amigo, mas também reparei naquela figura de cabelos escuros, rosto descontraído e enormes olhos azul-escuros. – Mil perdões – gaguejou Poirot. – Mademoiselle, é muito gentil. Sinto muito mesmo… ai! Estou com uma dor considerável no pé. Mas não, não é nada na verdade… apenas torci o tornozelo, só isso. Já vou ficar melhor em alguns minutos. Mas me ajude, por favor, Hastings… você e mademoiselle, por gentileza. Tenho vergonha de pedir isso a ela. Comigo de um lado e a moça do outro, levamos Poirot até uma cadeira no terraço. Então sugeri chamar um médico, mas meu amigo recusou enfaticamente. – Não foi nada, estou dizendo. Torci o tornozelo, só isso. Está doendo agora, mas já vai passar – ele fez uma careta. – Viu? Daqui um minuto já vou ter me esquecido de tudo. Mademoiselle, nem sei como agradecê-la. Foi muito gentil.

Sente-se, por favor. A moça puxou uma cadeira. – Não há de quê – disse ela. – Mas seria melhor dar uma olhada nisso. – Mademoiselle, eu garanto, foi apenas uma bagatelle! Só pelo prazer da sua companhia, a dor já passou. A moça riu. – Que bom. – Aceita um coquetel? – sugeri. – Já está quase na hora. – Bom… – hesitou ela. – Sim, muito obrigada. – Martíni? – Sim, por favor… um martíni seco. Eu me retirei. Ao voltar, depois de pedir as bebidas, encontrei Poirot e a moça no meio de uma animada conversa. – Veja só, Hastings – disse ele. – Aquela casa ali, aquela lá na ponta, que estávamos admirando tanto, pertence à mademoiselle aqui. – É mesmo? – respondi, ainda que não me lembrasse de ter expressado qualquer tipo de admiração. Na verdade, eu mal havia reparado naquela casa. – Ela me parece um tanto sinistra e imponente, despontando ali sozinha no meio do nada. – Eles a chamam de Casa do Penhasco – informou a moça. – Gosto muito de lá, mas o lugar está caindo aos pedaços. Parece estar prestes a desabar. – Você é a mais nova de alguma família tradicional, mademoiselle? – Ah, não somos nada importantes. Mas os Buckley já vivem por aqui há uns duzentos ou trezentos anos. Meu irmão morreu três anos atrás, então sou a mais nova da família, sim.

– Que pena. Mora lá sozinha, mademoiselle? – Ah, eu passo a maior parte do tempo fora e sempre recebo muitas visitas quando estou em casa. – Mas que moderno. Já a imaginei morando sozinha em uma mansão escura e misteriosa, assombrada por alguma maldição familiar. – Veja só! Que imaginação incrível o senhor deve ter. Mas não, a casa não é assombrada. Ou, se é, o fantasma não me incomoda. Escapei da morte três vezes nos três últimos dias, então devo ter algum anjo da guarda. Poirot endireitou-se na cadeira. – Escapou da morte? Isso me parece interessante, mademoiselle. – Ah, não foi nada de mais. Foram só acidentes, sabe – ela puxou a cabeça de lado em um gesto rápido para desviar de uma vespa. – Malditas vespas. Deve ter algum ninho aqui perto. – Não gosta de abelhas e vespas, mademoiselle? Já foi picada alguma vez? – Não, mas odeio quando elas passam voando perto do meu rosto. – “A abelha na boina”, uma ideia fixa – disse Poirot. – Mais uma expressão do inglês. Em seguida, os coquetéis chegaram. Erguemos nossos copos para brindar e fizemos comentários vazios, como de costume. – Na verdade, estou atrasada para um chá no hotel – disse a srta. Buckley. – Eles já devem estar se perguntando o que aconteceu comigo. Poirot limpou a garganta e tirou os óculos. – Ah, para uma bela xícara de chocolate quente – murmurou ele. – Mas não é o que vocês tomam na Inglaterra.

Ainda assim, vocês ingleses têm alguns costumes muito interessantes. As jovens, por exemplo, que vivem pondo e tirando seus chapéus, com tanta graça, com tanto desembaraço… A moça olhou para ele. – Como assim? O que há de especial nisso? – Você pergunta isso porque é jovem, tão jovem, mademoiselle. Mas, para mim, o natural seria ter um penteado alto e firme por baixo de um chapéu preso com vários alfinetes… là, là, là et là – disse ele, espetando o ar com toda força quatro vezes. – Mas que desconforto horrível isso seria! – Ah, imagino que sim! – redarguiu Poirot, com mais sentimento do que qualquer mulher sofrida conseguiria expressar. – Quando o vento soprava, era uma agonia… dava até enxaqueca. A srta. Buckley tirou o chapéu simples de feltro com abas largas que estava usando e o jogou no chão ao lado dela. – E agora nós fazemos isso – riu ela. – O que é sensato e encantador – disse Poirot, fazendo uma leve reverência. Olhei para ela cheio de interesse. Seus cabelos escuros estavam despenteados, dando-lhe uma aparência rebelde. Ela tinha um quê rebelde como um todo, aliás. Um rostinho cheio de vida, suave como um amor-perfeito, enormes olhos azul-escuros e algo a mais – algo melancólico e cativante. Seria um leve toque de imprudência? Seus olhos eram marcados por sombras escuras na parte de baixo. O terraço em que estávamos era pouco frequentado. A varanda principal, onde a maioria das pessoas se reunia, ficava do outro lado, pouco antes da borda do penhasco que então mergulhava direto rumo ao mar. Vindo desse lado, surgiu um homem, um sujeito de rosto corado, passo firme e que caminhava com os punhos semicerrados junto ao corpo. Ele tinha um ar alegre e despreocupado – um típico marinheiro. – Para onde essa menina foi? – dizia ele em um tom que chegava facilmente até onde estávamos sentados. – Nick, Nick! A srta. Buckley se levantou. – Eu sabia que eles ficariam preocupados. Calma, George. Eu estou aqui.

– Freddie está doida por uma bebida. Vamos lá, menina. Ele lançou um olhar sincero de curiosidade para Poirot, que com certeza deveria ser bemdiferente da maioria dos outros amigos de Nick. A moça fez um gesto para apresentá-lo. – Este é o comandante Challenger, e estes são… Para a minha surpresa, Poirot não se apresentou como ela esperava. Em vez disso, ele se levantou, fez uma reverência cerimoniosa e murmurou: – O senhor é da Marinha inglesa? Tenho um grande respeito pela Marinha inglesa. Esse tipo de comentário não era muito bem-recebido pelos ingleses. O rosto do comandante ficou ainda mais corado, e Nick Buckley assumiu o controle da situação. – Vamos, George. Não fique aí parado. Vamos encontrar Freddie e Jim – convidou ela, sorrindo para Poirot. – Obrigada pelo coquetel. Espero que seu tornozelo melhore logo. Enquanto acenava a cabeça para mim, ela pegou o marinheiro pelo braço, e os dois foramembora juntos em direção ao outro terraço. – Então esse é um dos amigos da mademoiselle – murmurou Poirot com um ar pensativo. – Umde seus bons amigos. O que achou dele? Quero ouvir a opinião de um especialista, Hastings. Você diria que ele é um bom homem? Depois de pensar por um instante no que exatamente Poirot poderia imaginar que eu entendia por um “bom homem”, acabei assentindo sem muita convicção. – Ele me pareceu ser um bom sujeito. Pelo menos à primeira vista. – Fiquei aqui pensando… – disse Poirot. A jovem tinha esquecido seu chapéu. Poirot se abaixou para pegá-lo e o girou na ponta do dedo com um ar distraído. – Teria ele algum tendresse por ela? O que você acha, Hastings? – Meu caro, Poirot! Como eu vou saber? Vamos, dê-me cá esse chapéu. Aquela moça vai querêlo de volta.

Vou entregá-lo a ela. Poirot ignorou meu pedido. Ele continuou girando o chapéu lentamente no dedo. – Pas encore. Ça m’amuse. [1] – Por favor, Poirot! – Pois é, meu amigo, estou ficando cada vez mais velho e infantil, não acha? – aquelas palavras resumiram com tanta perfeição o que eu estava sentindo que cheguei a ficar um tanto desconcertado. Poirot deu uma risadinha, inclinou-se para a frente e pôs um dedo ao lado do nariz. – Mas não, não sou tão idiota quanto você está pensando! Vamos devolver o chapéu, claro, mas depois! Vamos devolvê-lo na Casa do Penhasco para termos a oportunidade de rever a encantadora srta. Buckley. – Poirot… – disse. – Acho que você está apaixonado. – Ela é bonita, não é? – Bom, você a viu com seus próprios olhos. Por que me perguntar? – Porque, infelizmente, já não sei dizer. Hoje em dia, qualquer coisa jovem me parece linda. Ah, jeunesse, jeunesse… É a tragédia da minha idade. Então, recorro a você! Sua opinião não seria das mais atualizadas, é claro, depois de ter morado por tanto tempo na Argentina. A beleza que você admira é de cinco anos atrás, mas, mesmo assim, você é mais jovem do que eu. Ela é bonita, não é? Um encanto aos sexos, não? – Um só sexo já seria o bastante, Poirot. Mas devo dizer que a resposta é um sonoro sim. Mas por que está tão interessado nela? – Interessado, eu? – Bom, escute só o que você está dizendo. – Você me entendeu mal, mon ami. Posso estar interessado naquela jovem, sim, mas estou muito mais interessado no chapéu dela. Encarei-o por um instante, mas ele parecia estar falando sério. Ele me fez um aceno de cabeça. – Sim, Hastings, neste chapéu – ele o estendeu para mim.

– Está vendo o motivo do meu interesse? – Ele é bonito – disse eu, desconcertado. – Mas é um chapéu muito comum. Várias jovens usamchapéus parecidos. – Não como este. Eu olhei mais de perto. – Não está vendo, Hastings? – É um chapéu de feltro marrom simples. Com um estilo… – Não pedi para você descrever o chapéu. Está claro que você ainda não viu. É quase inacreditável como você quase nunca vê, meu pobre Hastings! Isso sempre me surpreendeu! Mas olhe, meu velho e querido imbecil, não é nem preciso usar a massa cinzenta, apenas os olhos. Olhe, olhe… E então eu finalmente vi o que ele estava tentando me mostrar. Poirot continuava girando o chapéu sem pressa no dedo que estava enfiado por entre um furo na aba. Ao perceber que eu tinha entendido, ele tirou o dedo e me entregou o chapéu. O furo era pequeno, perfeito e redondo, e eu não consegui imaginar qual seria o seu propósito, se é que ele tinha algum. – Você reparou no susto que mademoiselle Nick levou quando aquela abelha passou voando? “A abelha na boina”, o buraco no chapéu. – Mas uma abelha nunca conseguiria fazer um furo desses. – Exatamente, Hastings! Quanta perspicácia! Claro que não, mas uma bala sim, mon cher! – Uma bala? – Mai oui! Uma bala como esta. Ele me mostrou a mão com um pequeno objeto na palma. – Uma bala disparada, mon ami. Foi isso o que acabou de cair aqui no terraço enquanto conversávamos. Uma bala disparada! – Então você está dizendo… – Estou dizendo que, por alguns meros centímetros, esse furo poderia estar não no chapéu, mas na cabeça da mademoiselle. Entendeu agora por que estou interessado, Hastings? Você estava certo quando me repreendeu por dizer que “nada” abalaria minha decisão, meu amigo. Sim, sou apenas humano! Ah! Mas esse pretenso assassino cometeu um grave erro ao atacar sua vítima com Hercule Poirot por perto! Para ele, foi la mauvaise chance, sem dúvida. Mas entende agora por que nós precisamos visitar a Casa do Penhasco para falar com mademoiselle? Ela disse ter escapado da morte três vezes só nos últimos três dias. Temos que agir rápido, Hastings. O perigo é iminente.

CAPÍTULO 2 A CASA DO PENHASCO – Poirot… – disse eu. – Estive pensando. – É um excelente exercício, meu amigo. Continue. Estávamos sentados um de frente para o outro enquanto almoçávamos em uma pequena mesa perto da janela. – Esse tiro deve ter sido disparado muito perto de nós, mas não ouvimos nada. – E você imagina que, em meio ao silêncio do terraço, quebrado apenas pelo marulho das ondas no mar, nós deveríamos tê-lo ouvido? – Bom, é no mínimo estranho. – Não, não é nada estranho. Às vezes nos acostumamos tanto com alguns ruídos que nem os ouvimos mais depois de um tempo. Havia barcos a motor passando pela baía durante toda a manhã, meu amigo. Você pode ter se incomodado no começo com eles, mas logo depois já não estava mais nem reparando nisso. E agora, ma foi, alguém quase poderia atirar com uma metralhadora por aqui sem que você nem percebesse com todos aqueles barcos no mar. – Sim, é verdade. – Ah, voilà! – murmurou Poirot. – Se não é mademoiselle e seus amigos. Parece que vierampara almoçar. Terei que devolver o chapéu a ela agora mesmo. Mas não importa. Esse assunto é sério o bastante para justificar uma visita por si só. Poirot se levantou com toda agilidade, atravessou a sala às pressas e entregou o chapéu fazendo uma reverência, enquanto a srta. Buckley e seus amigos se sentavam à mesa. Eles estavam em quatro, Nick Buckley, o comandante Challenger, um homem e uma outra jovem. Do lugar onde estávamos, tínhamos uma visão perfeita da mesa onde eles se sentaram. De tempos emtempos, as gargalhadas do marinheiro irrompiam ao longe. Ele parecia ser um sujeito simples e agradável, e já havia me cativado.

Meu amigo ficou calado e distraído durante a refeição. Ele picou seu pão, soltou exclamações estranhas para si mesmo e arrumou tudo o que havia sobre a mesa. Tentei conversar, mas logo desisti ao ver que não teria sucesso. Ele continuou sentado à mesa por muito tempo, mesmo depois de terminar seu queijo. No entanto, assim que o outro grupo se levantou, ele fez o mesmo. Todos ainda estavam se acomodando em uma mesa na sala de estar quando Poirot foi marchando até eles com uma postura quase militar e falou diretamente com Nick. – Mademoiselle, gostaria de dar uma palavrinha com a senhorita. A jovem franziu a testa, e logo entendi sua reação. Ela achou que a presença daquele pequeno estrangeiro de jeito estranho poderia acabar sendo um incômodo. Era algo bastante compreensível, pois imaginava como aquilo deveria parecer aos seus olhos. Por impulso, ela deu alguns passos para o lado. Mas, logo em seguida, vi uma expressão de surpresa iluminar seu rosto ao ouvir as rápidas palavras sussurradas de Poirot. Eu, por minha vez, estava me sentindo um tanto desconfortável e constrangido. Com toda cortesia, Challenger veio em meu socorro, oferecendo-me um cigarro e fazendo algum comentário vago. Nós trocamos olhares, e a afeição que eu sentia por ele parecia ser recíproca. Acho que eu fazia mais o gênero dele do que o sujeito com quem ele tinha acabado de almoçar, sujeito esse que eu agora estava tendo a oportunidade de analisar melhor. Um jovem alto, bem-afeiçoado e elegante, comum nariz meio largo e uma beleza talvez até exagerada. Ele tinha um ar presunçoso e falava com uma voz arrastada. No entanto, o que mais me desagradou foi seu jeito pomposo demais. Olhei então para a mulher. Ela estava sentada com as costas retas de frente para mim em uma cadeira grande e tinha acabado de tirar seu chapéu. Era uma figura incomum – uma donzela exausta seria sua melhor descrição. Tinha belos cabelos quase sem cor repartidos ao meio que desciam sobre suas orelhas, amarrados na altura do pescoço. Seu rosto era pálido e magro como o de umcadáver, mas ainda assim curiosamente bonito. Seus olhos eram cinzentos, muito claros e tinham pupilas grandes.

Ela ostentava um intrigante ar de indiferença. De repente, ela olhou para mim e falou: – Por favor, sente-se enquanto seu amigo conversa com Nick. Ela tinha uma voz afetada, lânguida e artificial, mas encantadora por algum motivo, com uma espécie de beleza ressoante que permanecia no ar. Tive a impressão de que era a pessoa mais cansada que eu já tinha visto na vida. Mas era um cansaço mental, não físico, como se tivesse acabado de descobrir que tudo no mundo era vazio e inútil. – A srta. Buckley teve a gentileza de ajudar meu amigo hoje de manhã quando ele torceu o tornozelo – expliquei enquanto aceitava seu convite. – Ela nos contou – disse ela, olhando para mim, ainda indiferente. – Mas não me parece haver nada de errado com o tornozelo dele agora, não acha? Senti meu rosto ficando vermelho. – Foi só uma leve torção – expliquei. – Ah, sim! Fico feliz em saber que Nick não inventou essa história toda. Ela é a maior mentirosa que Deus já pôs neste mundo, sabia? Ela tem uma imaginação incrível, é um dom e tanto. Eu nem soube o que dizer, mas ela pareceu se divertir com o meu desconforto. – Ela é minha amiga há muito tempo – contou. – E sempre achei a lealdade uma virtude muito tediosa, não concorda? Ainda mais nos escoceses, todos tão austeros e preocupados com coisas como o Sabá. Mas Nick é uma bela mentirosa, não é mesmo, Jim? Ela inventou uma história fantástica sobre os freios do carro… mas Jim disse que não havia nada de errado com eles. O homem bem-apessoado respondeu com uma bela voz suave: – E olhe que entendo um pouco de carros. Ele virou a cabeça de lado. Estacionado lá fora, entre alguns outros, estava um carro comprido e vermelho, que parecia ser mais comprido e vermelho do que qualquer outro carro no mundo. O veículo tinha um enorme capô reluzente de metal polido. Um carrão! – Aquele carro é seu? – perguntei por um impulso repentino. Ele acenou a cabeça. – É, sim. Senti uma vontade imensa de dizer: “Só podia!” Poirot voltou à mesa. Eu me levantei, ele me pegou pelo braço, fez uma rápida reverência para o grupo e então me levou embora sem hesitar.

– Está tudo acertado, meu amigo. Iremos visitar mademoiselle na Casa do Penhasco às seis e meia. Ela já terá voltado de seu passeio a essa hora. Sim, sim, com certeza já terá voltado… e emsegurança. Seu rosto parecia ansioso; e seu tom, preocupado. – O que você disse a ela? – Pedi a ela para que tivéssemos uma conversa assim que possível. Ela relutou um pouco, mas isso é natural. Imagino perfeitamente o que ela pensou: “Quem é esse homenzinho? Um mero intrometido? Um novo rico? Um diretor de cinema?”. Ela teria recusado se pudesse, mas é difícil negar assim, no calor do momento, um pedido como esse. Ela me disse que estará lá às seis e meia. Ça y est! Comentei que tudo parecia estar resolvido, então, mas meu comentário não foi muito bemrecebido. Na verdade, Poirot estava mais agitado do que nunca. Ele passou a tarde inteira andando de um lado para o outro pela nossa sala, murmurando sozinho e reorganizando e endireitando tudo o que via pela frente. Sempre que eu tentava falar alguma coisa, ele apenas sacudia as mãos e balançava a cabeça. Nós por fim saímos do hotel quando ainda não eram nem seis horas. – Acho muito estranho que tentem atirar em alguém no jardim de um hotel – comentei enquanto descíamos a escada do terraço. – Só um louco faria algo assim. – Eu discordo. Dada uma condição específica, poderia ser uma escolha bastante adequada. Primeiro, aquele jardim é pouco frequentado. Os hóspedes de hotéis como este agem feito um bando de ovelhas. Como é costume ficar no terraço com vista para a baía, eh bien, a maioria se acomoda por lá. Apenas um sujeito singular como eu prefere descansar olhando para o jardim. E mesmo eu não vi nada. O lugar tem muitos pontos cegos, veja bem, árvores, grupos de palmeiras, canteiros de flores.

Qualquer um poderia se esconder com toda facilidade sem ser visto por ninguém e ficar apenas esperando até que mademoiselle passasse por ali. O que sem dúvida alguma iria acontecer. Vir da Casa do Penhasco pela estrada até o hotel seria muito mais demorado. Mademoiselle Nick Buckley é o tipo de pessoa que vive atrasada, sempre procurando algum atalho! – Mas, ao mesmo tempo, o risco era enorme. Alguém poderia vê-lo e, além do mais, seria impossível fazer com que uma morte a tiros parecesse um acidente. – Não, não um acidente. – O que você quer dizer? – Nada, é só uma ideia. Algo que pode ou não ter fundamento. Mas, deixando isso de lado por enquanto, o importante é o que acabei de mencionar, uma determinada condição específica. – Que seria qual? – Estou certo de que você mesmo pode responder isso, Hastings. – Não quero privá-lo do prazer de bancar o gênio às minhas custas! – Ah, quanto sarcasmo! Quanta ironia! Mas bem, o que me saltou aos olhos foi o seguinte: o motivo não pode ser evidente. Pois, se fosse, aí sim seria arriscado demais! As pessoas se perguntariam: “Será que foi fulano? Onde estava fulano quando o tiro foi disparado?” Mas não, o assassino, ou pretenso assassino, melhor dizendo, não pode ser alguém evidente. E é isso o que me assusta, Hastings! Sim, neste exato momento, estou assustado. Eu tento me confortar, pensando: “Eles andam sempre em quatro”, ou “Isso não faz sentido!”. Mas continuo assustado mesmo assim. Quero saber mais sobre esses “acidentes” dos quais ela falou! – em seguida, ele deu meia-volta de repente. – Ainda é cedo. Vamos subir pela estrada. Não há mais nada de novo para nós no jardim. Vamos investigar o caminho mais ortodoxo até a Casa do Penhasco. Saímos pelo portão principal do hotel e então subimos por uma íngreme colina à direita. No alto dela, ficava uma estradinha com uma placa onde se lia: “ROTA EXCLUSIVA PARA CASA DO PENHASCO”. Continuamos em frente por mais algumas centenas de metros até um ponto onde a estradinha fazia uma curva abrupta e acabava em frente a um portão duplo caindo de velho que parecia estar precisando urgentemente de uma pintura nova. Logo depois, à direita, ficava um pequeno chalé que contrastava muito com os portões e a grama alta que cobria o caminho da entrada. O pequeno jardim ali em volta era muito bem conservado, e as janelas de batentes pintados há pouco tempo tinham cortinas novas e limpas.

Curvado sobre um canteiro de flores, estava um homem de jaqueta desbotada. Ele se levantou ao ouvir o portão rangendo e olhou para nós. Com talvez seus sessenta anos, ele tinha pelo menos ummetro e oitenta de altura, um corpo forte e o rosto marcado pelo tempo. Ele era quase completamente careca. Seus olhos eram de um azul brilhante e reluziam sob o sol. Ele me pareceu ser um ótimo sujeito. – Boa tarde – falou ao nos ver. Retribuí o cumprimento e, enquanto seguíamos em frente, pude sentir seus olhos azuis cheios de curiosidade nos acompanhando pelas costas.

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