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A Cidade dos Espelhos – Justin Cronin

O chão cedia com facilidade sob a faca, liberando um cheiro negro de terra. O ar estava quente e úmido; pássaros cantavam nas árvores. De joelhos, apoiando as mãos no chão, ela golpeava o solo, soltando-o. Um punhado de cada vez, e jogava de lado. Parte da fraqueza havia sumido, mas não toda. Seu corpo parecia frouxo, desorganizado, exaurido. Havia a dor e a lembrança da dor. Três dias tinham se passado, ou seriam quatro? O suor formava gotas em seu rosto; ela lambeu os lábios e sentiu gosto de sal. Cavava e cavava. O suor escorria, caindo na terra. É para onde tudo vai, no fimdas contas, pensou Alicia. Para a terra. O monte ao seu lado crescia. Que profundidade seria suficiente? A um metro o solo começou a mudar. Ficou mais frio, com odor de argila. Parecia um sinal. Jogou o corpo para trás, sentando-se sobre as botas, e tomou um longo gole do cantil. Suas mãos estavam em carne viva; a pele na base do polegar tinha se soltado quase inteira. Levou o dedo à boca e usou os dentes para cortar o pedaço de pele, que cuspiu na terra. Soldado a esperava nos limites da clareira, a mandíbula trabalhando ruidosa num trecho de capim que ia até a cintura. A graça de suas ancas, a crina brilhosa, a magnificência dos cascos, dos dentes e dos grandes olhos negros: uma aura de esplendor o cercava. Quando queria, ele era dono de uma calma absoluta; depois, no instante seguinte, podia realizar feitos notáveis. Seu rosto sábio se levantou ao ouvi-la se aproximar. Sei. Estamos prontos.


Ele se virou num arco lento, o pescoço abaixado, e a acompanhou na direção das árvores, até o lugar onde ela havia montado sua lona. No chão, junto ao saco de dormir ensanguentado, estava a trouxa menor, feita de um cobertor cheio de manchas. Sua filha tinha vivido menos de uma hora, mas naquela hora Alicia havia se tornado mãe. Soldado observou enquanto ela saía de baixo da lona. O rosto do bebê estava coberto; Alicia puxou o pano para trás. Soldado baixou a cara para o rosto da criança, as narinas se abrindo, sentindo o cheiro. Nariz e olhos minúsculos, a boca um botão de rosa, espantosos em sua humanidade; a cabeça coberta por uma touca de cabelos ruivos e macios. Mas não existia vida, não existia respiração. Alicia tinha se perguntado se seria capaz de amá-la – aquela criança concebida em terror e dor, gerada por um monstro. Um homem que a havia espancado, estuprado, xingado depois de acabar. Como tinha sido idiota! Voltou à clareira. O sol estava a pino; insetos zumbiam no capim, uma pulsação rítmica. Soldado ficou junto enquanto ela colocava a filha na sepultura. Quando o trabalho de parto havia começado, Alicia rezara. Que ela esteja bem. Enquanto as horas de agonia se dissolviam uma na outra, sentiu a presença fria da morte por dentro. A dor a golpeava, um vento de aço que ecoava nas células como um trovão. Algo estava errado. Por favor, Deus, proteja-a, proteja-nos. Mas suas orações tinham caído no vazio. O primeiro punhado de terra foi o mais difícil. Como seria possível fazer isso? Alicia tinha enterrado muitos homens. Alguns ela conhecera, outros não; apenas um ela havia amado. O garoto, Cano Longo. Tão divertido, tão vivo, e se fora.

Deixou a terra escorrer por entre os dedos. Os torrões bateram no pano com um som de tapinhas, como as primeiras gotas de chuva caindo sobre folhas. Pouco a pouco sua filha desapareceu. Adeus, pensou. Adeus, minha querida, meu amor. Voltou à tenda. Sua alma estava despedaçada, como um milhão de cacos de vidro dentro do corpo. Os ossos eram canos de chumbo. Precisava de água, comida; o estoque havia acabado. Mas caçar estava fora de questão, e o riacho, uma caminhada de cinco minutos colina abaixo, parecia a quilômetros de distância. As necessidades do corpo: o que importam? Nada importava. Deitou-se no saco de dormir, fechou os olhos e logo adormeceu. Sonhou com um rio. Um rio largo e escuro, sobre o qual brilhava a lua. Ele espalhava a luz sobre a água como uma estrada de ouro. Alicia não sabia o que estava adiante, só que precisava atravessar esse rio. Deu o primeiro passo, cautelosa, na superfície luzidia. Sua mente estava dividida: metade se maravilhava com a estrada improvável, metade, não. Quando a lua tocou a sombra oposta, ela percebeu que fora enganada. O caminho estava se dissolvendo. Em pânico, começou a correr, desesperada para chegar à outra margem antes que o rio a engolisse. Mas a distância era grande demais; a cada passo o horizonte saltava mais para longe. A água borbulhava ao redor dos tornozelos, dos joelhos, da cintura. Não tinha forças para lutar contra a correnteza. Venha a mim, Alicia.

Venha a mim, venha a mim, venha a mim. Ela estava afundando, tomada pelo rio, mergulhando na escuridão… Acordou com uma luz fraca, alaranjada; o dia estava quase acabando. Ela permaneceu imóvel, juntando os pensamentos. Tinha se acostumado com esses pesadelos; as peças mudavam, mas jamais a sensação – a inutilidade, o medo. Mas desta vez havia algo diferente. Um aspecto do sonho tinha passado para a vida; sua camisa estava encharcada. Olhou para baixo e viu manchas se alargando. Seu leite havia chegado. Ficar ali não tinha sido uma decisão consciente; a vontade de continuar simplesmente desaparecera. Então sua força retornou. Veio com passos pequenos e, depois, como uma visita há muito esperada, chegou de repente. Ela construiu um abrigo com galhos secos e trepadeiras, usando a lona como cobertura. A floresta era cheia de vida: esquilos e coelhos, perdizes e pombos, cervos. Alguns eram rápidos demais para ela, mas não todos. Alicia montava armadilhas e esperava para recolher a caça ou usava sua besta: um disparo, uma morte limpa, depois o jantar, cru e quente. No fim de cada dia, quando a luz se esvaía, tomava banho no riacho. A água era límpida e de um frio atroz. Foi numa dessas excursões que viu os ursos. Um farfalhar 10 metros rio acima, algo pesado movendo-se no mato baixo, e depois eles apareceram à beira do rio, mãe e dois filhotes. Alicia nunca vira esse tipo de criatura em carne e osso, apenas nos livros. Eles entraram juntos na água rasa, empurrando a lama com o focinho. Havia algo frouxo e malformado em sua anatomia, como se os músculos não estivessem presos com firmeza à pele sob os pelos pesados e emaranhados com gravetos. Uma nuvem de insetos cintilava ao redor deles, captando as últimas luzes. Mas os ursos não a notaram, ou, se notaram, não acharam que ela fosse importante. O verão foi sumindo.

Num dia, o bosque era um mundo de folhas verdes e volumosas, denso de sombras; em seguida, explodia em cores vibrantes. De manhã, o chão da floresta estalava com a geada. O frio do inverno baixara com um sentimento de pureza. A neve era pesada na terra. As linhas pretas das árvores, as pequenas pegadas dos pássaros, o céu caiado, descorado: tudo fora reduzido à essência. Que mês seria? Que dia? À medida que o tempo passava, a comida se tornava umproblema. Durante horas, até mesmo dias inteiros, ela mal se movia, conservando as forças; não falava com ninguém havia quase um ano. Aos poucos percebeu que já não pensava com palavras; era como se tivesse se tornado uma criatura da floresta. Imaginou se estaria enlouquecendo. Começou a falar com Soldado, como se ele fosse uma pessoa. Soldado, dizia, o que vamos jantar? Soldado, você acha que é hora de catar lenha para o fogo? Soldado, parece que vai nevar? Uma noite acordou no abrigo e percebeu que estivera escutando trovões durante algum tempo. Um vento úmido de primavera chegava em sopros sem direção, lançando-se contra o topo das árvores. Sem se afetar pelo que ouvia, Alicia escutou a aproximação da tempestade; e subitamente ela estava ali. Um clarão de raio se bifurcou no céu, congelando a cena em seus olhos, seguido por um estrondo capaz de rachar os ouvidos. Ela deixou Soldado entrar enquanto o céu se rasgava, lançando gotas de chuva pesadas como balas de revólver. O cavalo tremia de terror. Alicia precisou acalmá-lo; bastaria um movimento em pânico no espaço minúsculo e o corpo enorme despedaçaria o abrigo. Meu bom garoto, murmurou, acariciando o flanco do animal. Com a mão livre, passou a corda em volta do pescoço de Soldado. Meu bom garoto. O que acha? Quer fazer companhia a uma garota numa noite de chuva? O corpo dele estava tenso de medo, uma parede de músculos contraídos, no entanto, quando ela lentamente o puxou para baixo, ele permitiu. Do lado de fora das paredes do abrigo os relâmpagos brilhavam no céu. Soldado se ajoelhou com um suspiro portentoso, virou-se de lado junto ao saco de dormir; e foi assim que ambos caíram no sono enquanto a chuva se derramava durante toda a noite, lavando o inverno. Ela viveu dois anos naquele lugar. Ir embora não era fácil; a floresta havia se tornado um refúgio, um conforto.

Alicia tinha assumido os ritmos dela como se fossem seus. Mas quando o terceiro verão começou, um novo sentimento surgiu: era hora de partir. De terminar o que havia começado. Ela passou o resto do verão se preparando. Isso implicava fabricar uma arma. Partiu a pé para as cidades ribeirinhas e retornou três dias depois, carregando uma sacola cheia. Entendia o básico do que estava tentando fazer, tendo assistido ao processo muitas vezes; os detalhes viriam através de tentativa e erro. Uma pedra chata junto ao riacho serviria como bigorna. À beira d’água, atiçou o fogo e o observou arder até virar carvão. O truque era manter a temperatura certa. Quando sentiu que tinha conseguido, tirou a primeira peça do saco: uma barra de aço 3/8 com 5 centímetros de largura e 1 metro de comprimento. Do saco tirou também uma marreta, uma pinça de ferro e um par de luvas de couro grossas. Pôs a ponta da barra de aço no fogo e viu a cor mudar enquanto o metal se aquecia. Então começou a trabalhar. Precisou fazer mais três viagens rio abaixo, em busca de suprimentos, e o resultado foi grosseiro, mas no final ficou satisfeita. Usou cipós ásperos para enrolar no cabo, permitindo uma empunhadura firme no metal, que, do contrário, ficaria liso. O peso era agradável na mão. A ponta polida brilhava ao sol. Mas o primeiro corte seria o verdadeiro teste. Na última viagem rio abaixo tinha encontrado uma plantação de melões do tamanho de cabeças humanas. Eles cresciam numterreno denso, entre emaranhados de trepadeiras com folhas em forma de mão. Escolheu um e carregou para casa, no saco. Então, equilibrou-o em cima de um tronco caído, mirou e baixou a espada num arco vertical. As metades partidas balançaram preguiçosamente, separando-se uma da outra, como se perplexas, e caíram no chão. Nada restava para mantê-la naquele lugar.

Na noite anterior à partida, Alicia visitou a sepultura da filha. Não queria fazer isso no último segundo; sua saída deveria ser limpa. Durante dois anos o lugar tinha ficado sem qualquer marco. Nada parecera digno. Mas deixá-la sem nenhumreconhecimento parecia errado. Com o resto do aço, fez uma cruz. Usou a marreta para fincá-la no chão e se ajoelhou na terra. A essa altura o corpinho teria se reduzido a nada. Talvez alguns ossos ou uma impressão de ossos. Sua filha havia passado para o solo, as árvores, as pedras, até o céu e os animais. Tinha ido para um lugar além do conhecimento. Sua voz estava no canto dos pássaros; os cabelos ruivos, nas folhas chamejantes do outono. Alicia pensou nessas coisas, uma das mãos tocando a terra macia. Mas não tinha mais orações por dentro. Uma vez partido, um coração permanecia partido para sempre. – Desculpe – disse. A manhã nasceu de modo pouco notável: sem vento, cinza, cheia de névoa. A espada, enfiada numa bainha de couro de cervo, estava às costas, em diagonal; as facas, enfiadas nas bandoleiras, foram fixadas num X diante do peito. Óculos escuros, com abas de couro nas têmporas, protegiamseus olhos. Prendeu a bolsa da sela e montou em Soldado. Durante dias ele havia andado de um lado para outro, inquieto, sentindo a partida iminente. Vamos fazer o que acho que vamos fazer? Eu gosto um bocado daqui, sabe? O plano de Alicia era cavalgar para o leste, ao longo do rio, seguir seu curso através das montanhas. Com sorte chegaria a Nova York antes que as primeiras folhas caíssem. Fechou os olhos, esvaziando a mente. Só quando tivesse limpado esse espaço a voz emergiria.

Vinha do mesmo lugar dos sonhos, como vento saindo de uma caverna, sussurrando em seu ouvido. Alicia, você não está sozinha. Conheço sua tristeza porque ela é minha. Estou esperando você, Lish. Venha a mim. Venha para casa. Bateu os calcanhares nos flancos de Soldado. DOIS O dia estava terminando quando Peter voltou para casa. O céu imenso de Utah ia se abrindo emlongos dedos de cor contra o azul que se aprofundava, uma tarde de início de outono. As noites eram frias, os dias ainda eram amenos. Foi em direção à casa seguindo o curso do rio murmurante, a vara apoiada no ombro, o cachorro bamboleando ao lado. Na sacola, duas trutas graúdas enroladas emfolhas douradas. Enquanto se aproximava da fazenda, ouviu música vindo da casa. Tirou as botas enlameadas na varanda, pousou a sacola no chão e entrou. Amy estava sentada diante do velho piano de armário, de costas para a porta. Ele foi em silêncio até ela. Tão completa era a concentração de Amy que ela não notou a sua entrada. Ele ouvia sem se mexer, mal respirando. O corpo de Amy se balançava ligeiramente ao ritmo da música. Seus dedos se moviam com agilidade, subindo e descendo pelo teclado; davam a impressão não de tocar as teclas, mas de invocá-las. A música parecia uma encarnação sonora da emoção pura. Havia um pesar profundo nas melodias, mas o sentimento era expresso com tanta ternura que não parecia tristeza. Fez com que ele pensasse em como o tempo era sentido, sempre caindo no passado, virando memória. – Você chegou. A música havia parado sem que Peter notasse.

Enquanto ele punha as mãos nos ombros dela, Amy se remexeu no banco e ergueu o rosto. – Venha cá – disse ela. Ele se curvou para receber o beijo. A beleza dela era espantosa, uma nova descoberta a cada vez que a olhava. Ele inclinou a cabeça na direção das teclas. – Ainda não sei como você faz isso – disse. – Gostou? – Ela estava sorrindo. – Treinei o dia inteiro. Ele disse que sim; que tinha amado. Que a música o fazia pensar em muitas coisas. Era difícil colocar em palavras. – Como estava o rio? Você ficou longe um bom tempo. – Fiquei? – O dia, como tantos, tinha passado numa névoa de contentamento. – Essa época do ano é tão linda que acho que perdi a noção. Beijou o topo da cabeça dela. O cabelo tinha sido lavado, estava com o aroma das ervas que ela usava para suavizar a lixívia. – Continue tocando. Vou fazer o jantar. Ele passou pela cozinha, foi até a porta dos fundos e saiu no pátio. A horta estava enfraquecendo; logo iria dormir sob a neve, com o resto da força armazenada para o inverno. O cachorro tinha saído sozinho. Ele gostava de percorrer grandes distâncias, mas Peter nunca se preocupava, porque ele sempre encontrava o caminho de casa antes do escurecer. Na bomba, Peter encheu a bacia, tirou a camisa, jogou água no rosto e no peito e se lavou. Os últimos raios de sol ricocheteando nas encostas lançava sombras compridas no chão. Era a hora do dia da qual ele mais gostava, com a sensação das coisas fundindo-se umas nas outras, tudo em suspensão.

À medida que a escuridão se aprofundava, Peter viu as estrelas aparecerem, primeiro uma, depois outra, e mais outra. Aquele momento evocava nele as mesmas sensações da canção de Amy: memória e desejo, felicidade e tristeza, um começo e um fim unidos. Ele acendeu o fogo, limpou os peixes e colocou a carne macia e branca na panela com um pouco de banha. Amy se sentou ao lado dele enquanto observavam o jantar no fogo. Comeram na cozinha à luz de velas: trutas, tomates cortados, uma batata assada na brasa. Depois dividiram uma maçã. Na sala, acenderam a lareira e se acomodaram no sofá embaixo de um cobertor, o cachorro ocupando o lugar de sempre a seus pés. Olharam as chamas sem dizer nada; não havia necessidade de palavras, já que tudo fora dito entre eles, tudo era compartilhado e conhecido. Depois de algum tempo, Amy se levantou e estendeu a mão. – Venha para a cama comigo. Levando as velas, os dois subiram a escada. No quarto minúsculo embaixo do telhado, eles se despiram e se aconchegaram sob a colcha, os corpos entrelaçados para se aquecerem. Ao pé da cama, o cachorro soltou um suspiro e se deitou. Era um cão bom e velho, leal feito um leão: permaneceria ali até de manhã, vigiando os dois. A proximidade e o calor dos corpos, o ritmo comum das respirações: o que Peter sentia não era felicidade, e sim algo mais profundo, mais rico. Durante toda a vida desejara ser conhecido por apenas uma pessoa. Isso era o amor, decidiu. O amor era ser conhecido. – Peter? O que foi? Algum tempo havia se passado. A mente de Peter, flutuando no espaço entre o sono e o despertar, tinha se desviado até lembranças antigas. – Estava pensando em Theo e Maus. Naquela noite no celeiro, quando o viral atacou. – Umpensamento passou à deriva, fora do alcance. – Meu irmão jamais conseguiu entender o que matou aquela coisa. Por um momento Amy ficou em silêncio.

– Ora, foi você, Peter. Foi você que os salvou. Eu já contei, não lembra? Já havia contado? E o que ela queria dizer com isso? Na época do ataque ele estava no Colorado, a muitos quilômetros e dias de distância. Como poderia ter sido ele? – Já expliquei como isso funciona. A fazenda é especial. Passado, presente e futuro são a mesma coisa. Você estava lá no celeiro porque precisava estar. – Mas não me lembro de ter feito isso. – É porque ainda não aconteceu. Pelo menos para você. Mas vai chegar a hora em que vai acontecer. Você vai estar lá para salvá-los. Para salvar Caleb. Caleb, seu menino. Sentiu uma tristeza súbita, avassaladora, um amor intenso e terno. A vontade de chorar fez um nó subir à sua garganta. Tantos anos. Tantos anos passados. – Mas agora estamos aqui – disse ele. – Você e eu, nesta cama. Isso é real. – Não há nada mais real neste mundo. – Ela se aninhou nele. – Não vamos nos preocupar comisso agora. Dá para ver que você está cansado.

Estava. Muito, muito cansado. Sentia os anos nos ossos. Uma memória pousou em sua mente. Lembrou-se de ter observado o próprio rosto no rio. Quando tinha sido isso? Hoje? Ontem? Havia uma semana, um mês, um ano? O sol estava alto, criando um espelho reluzente na superfície da água. Seu reflexo oscilava na corrente. As rugas profundas e a papada frouxa, as bolsas embaixo dos olhos opacos pelo tempo. E o cabelo, o pouco que restava, tinha ficado branco, como uma cobertura de neve. Era o rosto de um velho. – Eu estava… morto? Amy não respondeu. Então Peter compreendeu o que ela estava dizendo. Não somente que ele iria morrer, como acontecia com todo mundo, mas que a morte não era o fim. Ele permaneceria neste lugar, um espírito vigilante, fora das paredes do tempo. Esta era a chave para tudo; abria uma porta atrás da qual ficava a resposta para todos os mistérios da vida. Pensou no dia em que tinha chegado à fazenda, tanto tempo atrás. Tudo inexplicavelmente intacto, a despensa cheia, cortinas nas janelas e pratos na mesa, como se esperasse por eles. Este lugar era isso. Era seu único lar verdadeiro no mundo. Deitado no escuro, sentiu o peito inchar de contentamento. Havia coisas que ele tinha perdido, pessoas que haviam partido. Todas as coisas passavam. Até a própria terra, o céu, o rio e as estrelas que ele amava chegariam um dia ao fim da existência. Mas isso não era algo a temer; esta era a beleza agridoce da vida. Imaginou o momento de sua morte.

Tão intensa foi essa visão que teve a impressão de não estar imaginando, e sim lembrando. Estaria deitado nesta mesma cama; seria uma tarde de verão e Amy o estaria abraçando. Teria exatamente a mesma aparência de hoje, forte, bela e cheia de vida. A cama virada para a janela, as cortinas reluzindo à luz difusa. Não haveria dor, só umsentimento de dissolução. Tudo bem, Peter, Amy estava dizendo. Tudo bem, logo estarei lá. A luz ficaria maior e maior, enchendo primeiro sua visão e depois a consciência, e era assim que ele partiria: iria embora em ondas de luz. – Amo tanto você – disse ele. – E eu amo você. – Foi um dia maravilhoso, não foi? Ela assentiu, encostada nele. – E teremos muitos outros. Um oceano de dias. Peter a puxou mais para perto. Lá fora, a noite estava fria e silenciosa. – Era uma música linda – disse. – Fico feliz que tenhamos encontrado aquele piano. E com essas palavras, entrelaçados na cama grande e macia sob o telhado, flutuaram para o sono.

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