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A Cidade submarina – Arthur Conan Doyle

Como me puseram em mãos estes papéis para que os publicasse, começarei re-lembrando ao público o lamentável desaparecimento do vapor “Stratford”, que há um ano levantara ferros para uma viagemdestinada a estudos oceanográficos e dos seres vivos das grandes profundidades marinhas. A expedição fora organizada pelo Dr. Maracot, o famoso autor das obras “Formações Pseudo-coralíneas” e “Morfologia dos Lamelibrânquios”. O Dr. Maracot levava consigo o sr. Cirus Headlei, ex-assistente do Instituto Zoológico de Cambridge, em Massachusetts, e aluno, na ocasião da viagem, da Escola Rhodia de Oxford. O Capitão Howie, experiente lobo-do-mar, era o encarregado da direção do navio e tinha às suas ordens uma tripulação de vinte e três homens, entre os quais se contava um mecânico americano, da Companhia Merribank, de Filadélfia. Todas estas pessoas desapareceram e a única notícia que depois tivemos do malfadado vapor veionos de um veleiro norueguês que havia visto ir a pique um navio, cuja descrição correspondia exatamente aos característicos do navio em questão, durante a grande tempestade do outono de 1926. Um escaler, com o nome do “Stratford”, foi encontrado posteriormente nas vizinhanças do local da tragédia, assim como fragmentos de tombadilho, um salva-vidas e um mastaréu. Tudo isto, aliado a um longo silêncio, nos fazia crer que nunca mais teríamos notícias do navio nem de sua equipagem. Sua triste sorte é tornada ainda mais patente pelo estranho radiograma captado naquela ocasião e que, embora incompreensível em alguns de seus detalhes, deixava poucas dúvidas quanto ao seu lamentável fim. Mais adiante volta-rei a este ponto. Havia algumas circunstâncias a respeito da viagem do “Stratford”, que desperta-ram comentários naquela época. Uma delas era a singular reserva observada pelo Dr. Maracot. A aversão e desconfiança que sempre demonstrara para com a imprensa eram já bem notórias, mas nesta ocasião havia-se levado ao extremo de se recusar a dar qualquer informação aos repórteres e mesmo proibir que todo e qualquer representante de jornal pusesse pé no seu navio durante as semanas que este permaneceu nas Docas Alberto. Falava-se da existência, no mesmo, de algumas curiosas par-ticularidades de construção que o tornavam próprio para os trabalhos emgrandes profundidades a que era destinado, e estes boatos foram confirmados pelos estaleiros de Hunter & Companhia, de West Harthpool, aos quais essas alterações estrutu-rais haviam sido confiadas. Havia mesmo corrido a notícia de que todo o fundo do navio era destacável, o que atraiu a atenção dos fiscais do Lloyd, aos quais custou darem-se por satisfeitos. Esta circunstância foi logo esquecida, mas reassume agora um novo interesse pelo fato de a sorte da expedição ter sido de tão extraordinária maneira trazida ao conhecimento do público. Basta quanto ao início da viagem do “Stratford”. Existem agora quatro documentos que dão conta até um certo ponto dos sucessos posteriores. O primeiro é a carta que o Sr. Cirus Headlei enviou da capital da Grande Canária, isto é, na única ocasião que se saiba ter o “Stratford” tocado em terra depois de levantar ferros do Tâmisa, ao seu amigo Sir James Talbot, do Colégio Trinda-de de Oxford. O segundo é o estranho radiograma a que aludi. O terceiro é aquele parágrafo do livro de bordo do “Arabel a Knowles”, que fala sobre a bola de vidro.


O quarto e último é o estranho conteúdo da mesma, que ou representa a mais cruel e complexa das mistificações ou então virá abrir um novo capítulo na história da humanidade, cuja importância não pode ser exagerada. Feito este preâmbulo, apresentarei agora a carta do Sr. Headlei, que devo à genti-leza de Sir James Talbot e que é agora publicada pela primeira vez. Está datada de 1.° de outubro de 1926. Envio-te esta, meu caro Talbot, de Porta de La Luz, onde aportamos para alguns dias de descanso. Meu principal companheiro nesta viagem tem sido Bil Scanlan, o mecânico-chefe, que, sendo meu compatriota e de espírito alegre e conversador, tornou-se muito naturalmente meu amigo inseparável. Estou contudo só esta manhã, pois ele arranjou por aí o que chama de “uma tâmara de saia”. Como vês, ele se ex-prime do modo que os ingleses supõem ser de todo verdadeiro norte-americano. Estou certo de que este seria considerado realmente legítimo. Mesmo a mim, a força da sugestão me faz não raro descarrilar a linguagem quando estou com meus amigos ingleses. Sinto que eles nunca me considerariam como um verdadeiro ianque se tal não sucedesse. Contigo, porém, sei que isto é desnecessário, por isso desde já te asseguro que só encontrarás puro inglês de Oxford nesta carta que ora te escrevo. Já estiveste com Maracot no Mitre, por isso deves ter uma ideia do caráter do homem. Penso que já te contei como foi que ele veio a convidar-me para esta expedição. Ele se informou a meu respeito com o velho Somervil e, do Instituto Zoológico, que lhe havia enviado meu estudo premiado sobre os caranguejos pelágicos e foi assim que começou esta história. É sem dúvida magnífico ter-se tal oportunidade de estudar um assunto que nos interessa, mas preferiria que não fosse em companhia de uma múmia animada como Maracot. Não é humano o isolamento em que vive, inteiramente absorvido pelo seu trabalho. “É o maníaco mais maníaco do mundo”, diz Bil Scanlan. Não se pode, contudo, deixar de admirar tal devotamento. Nada para ele existe além da sua própria ciência. Lembro-me de que te riste quando, tendo-lhe eu perguntado o que deveria ler para me preparar para a expedição, respondeu-me que para um estudo sério lesse a coleção de seus trabalhos, e como distração os “Plankton-Studien” de Haecket. Não o conheço melhor agora do que o conhecia naquele pequeno salão que dava para Oxford High. Ele quase não fala e seu rosto magro e austero – o rosto de um Savonarola, ou, antes, talvez de umTorquemada – nunca se mostra expansivo. Seu nariz longo, fino e agressivo, seus dois olhos castanhos e brilhantes, muito aproximados sob espessas sobrancelhas, sua boca de lábios finos, suas faces que uma vida meditativa e ascética encovaram, tudo nele indica um caráter reservado e pouco co-municativo.

Parece viver no cume de alguma montanha mental, fora do alcance do comum dos mortais. Às vezes penso até que é meio maluco. Por exemplo, esse extravagante aparelho que construiu… Mas, digamos cada coisa a seu tempo; poderás depois julgar por ti próprio. Descrever-te-ei nossa viagem desde o começo. O “Stratford” é uma ótima embarcação, pequena e elegante, especialmente apare-lhada para o seu trabalho. É um navio de mil e duzentas toneladas, de tombadilhos desatravancados e um bom leme largo, estando provido com todos os instrumentos necessários para sondagens e pescas com toda a espécie de redes, sendo que alguns são de uso corrente e outros de formas extravagantes. Além disso, possui confortáveis acomodações, com um bem aparelhado laboratório para nossos estudos. Antes de partirmos, nosso navio era considerado um navio misterioso e vi logo que não era semrazão. O começo de nossa viagem nada teve de notável. Demos um giro pelo Mar do Norte e deitamos nossas redes uma vez ou duas. Mas ali a profundidade média não vai muito além de sessenta pés, e como estávamos especialmente aparelhados para pescas em grandes profundidades, isto parecia antes uma perda de tempo. Além de peixes de mesa vulgares, tubarões, lulas e certa quantidade de argila de aluvião comum dos depósitos do fundo, nada obtivemos que mereça menção especial. Contornamos em seguida a Escócia, passamos à vista das Ilhas Faroes e descemos o Wyvil e-Thomson Ridge, onde tivemos melhor sorte. Daí dirigimo-nos para o sul, para o nosso verdadeiro campo de operações, que ficava entre as costas da Áfri-ca e estas ilhas. Quase encalhamos emFuerte-Ventura numa noite sem lua, mas, além deste pequeno incidente, não houve em nossa viagem nenhum outro sucesso digno de nota. Durante estas primeiras semanas, procurei captar as simpatias de Maracot, o que não era fácil tarefa. Em primeiro lugar ele é o homem mais distraído do mundo. Com certeza ainda te lembrarás de como sorriste quando ele deu ao moço do elevador um níquel de um pêni supondo que se achava numbonde. A maior parte do tempo está perdido em seus pensamentos e mal parece consciente do lugar em que está e da-quilo que está fazendo. Além disso ele é reservado ao último ponto. Está continuamente às voltas com seus papéis e mapas, que ele rapidamente guarda quando sucede eu entrar na cabina. Creio firmemente que o homem tem algum plano secreto em mira, mas que enquanto tivermos de tocar em algum porto não o revelará a ninguém. É esta a impressão que tenho e penso que Bil Scanlan é da mesma opinião. – Diga-me, Sr. Headlei – disse-me ele uma tarde em que me achava no laboratório dosando a salinidade de algumas amostras de água marinha obtidas em nossas sondagens hidrográficas – qual lhe parece que seja a tenção desse homem? Que supõe que ele pretenda fazer? – Suponho, respondi, que faremos o mesmo que o “Chal enger” e uma dezena de outros navios fizeram antes de nós: acrescentaremos algumas espécies mais à lista de peixes conhecidos e adicionaremos novas indicações aos mapas batimétricos.

– Qual, não acredito, disse ele. Se é essa a sua opinião, receio que tenha logo de mudá-la. Antes de mais nada, para que estou eu aqui? – Para a eventualidade de haver algum desarranjo nas máquinas, arrisquei. – Que máquinas nada! As máquinas estão a cargo de MacLaren, o engenheiro es-cocês. Não, Sr. Headlei, não seria para um serviço desses que o pessoal de Merribank iria emprestar seu melhor mecânico. Não será para nada que estou ganhando cinquenta libras por semana. Venha comigo que lhe mostrarei para que é. Tirou uma chave do bolso, abriu uma porta dos fundos do laboratório e descemos uma escada que ia ter a um repartimento do porão quase vazio, onde só se entrevia parte de quatro grandes objetos polidos por entre a embalagem de suas grandes caixas. Eram quatro lâminas de aço, de margens providas de fechos e charneiras de pri-moroso acabamento. Cada folha tinha cerca de dez pés quadrados e uma polegada e meia de espessura, com uma abertura circular de dezoito polegadas no centro. – Que diabo será isso? perguntei. A fisionomia expressiva de Bil Scanlan – sua aparência é intermediária entre a de um cômico de “vaudevil e” e a de um pugilista profissional – abriu-se num sorriso ao ver meu espanto. – É para isto que estou aqui, meu bebê – Sr. Headlei, quero dizer. Há lá naquela caixa um fundo de aço para a coisa. Além disso há uma coberta – uma espécie de abóbada – e uma grande roldana para uma corrente ou cabo. Olhe agora aqui o fundo do navio. Havia aí um espaço coberto por um quadrado de madeira provido de parafusos salientes nos ângulos, o que mostrava ser o mesmo destacável. – Há um duplo fundo no navio, disse Scanlan. É bem possível que este sujeito esteja louco varrido; seja como for, acho que não nos revelou todos os seus planos. Se bem compreendo o homem, creio que ele pretende construir uma espécie de quarto – já vi as janelas noutro lugar do porão – e baixá-lo pelo fundo do navio. Além disso ele trouxe também projetores elétricos e creio que o seu plano é projetar sua luz pelos postigos para observar o que se passa em torno. – Se fosse esse o seu desejo, ele poderia ter posto uma lâmina de cristal no fundo do navio, à moda dos botes da Ilha Catalina, observei. – É mesmo, disse Bil Scanlan cocando a cabeça.

Não compreendo ainda direito o que é que esse homem quer. O que é certo é que me mandaram trabalhar sob suas ordens e ajudá-lo no que puder. Ele até agora não disse nada, por isso eu também fiz o mesmo, mas estou à espreita e creio que se isto ainda se demorar um pouco ficarei sabendo tudo por minha própria conta. Foi assim que cheguei pela primeira vez à borda de nosso mistério. Depois disto tivemos alguns dias de mau tempo e em seguida fizemos algumas pescas de arrasto emgrandes profundidades a noroeste do Cabo Juba, logo para fora do Declive Continental, fazendo ao mesmo tempo, leituras de temperatura e do-sagens dos sais da água. É uma ocupação divertida lançar-se uma rede de arrasto Peterson, com seus vinte pés de extensão a barrar o caminho de tudo o que vem em sua direção – algumas vezes à profundidade de um quarto de milha – apanhando de cada vez um lote diferente de peixes desse oceano em que cada profundidade tem seus habitantes próprios, como se fosse uma estratificação de continentes distintos. Algumas vezes trazíamos do fundo meia tonelada de uma geleia viva, clara e cor-derosa, ou então umpunhado de limo de pterópodos que sob o microscópio revelava milhões de pequeninas esférulas reticuladas cercadas de matéria amorfa. Não te quero maçar com a enumeração dos brotulídeos e macrurídeos, ascídias, holotúrias, polizoários e equinodermas que encontramos – mas fica em todo o caso sabendo que a seara do mar é grande e que fomos diligentes ceifadores. Mas continuava a ter sempre a impressão de que Maracot não fazia aquilo com entusiasmo e que outros planos dormitavamnaquela sua esquisita cabeça alta e estreita de múmia egípcia. Tudo aquilo me parecia ser apenas uma simples experimentação de homens e aparelhos para verificar se estavam em condições de executar o verdadeiro objetivo da expedição. Tinha chegado a este ponto de minha carta quando resolvi descer em terra para um último giro, pois partiremos amanhã bem cedo. Foi bom talvez ter feito isto, pois travara-se no cais uma tumultuosa disputa em que se achavam envolvidos o Dr. Maracot e Bil Scanlan. Bil é rapaz resoluto e não tem medo de nada, mas com meia dúzia de mandriões armados de faca ao seu redor as coisas não pareciam muito pro-missoras para eles e já era tempo que eu interviesse. A razão de tudo fora o Dr. Maracot haver alugado uma dessas coisas que eles chamavam de carruagem e percorri-do mais de metade da ilha observando suas formações geológicas, tendo-se esquecido completamente de que não trazia dinheiro consigo. Quando chegou o momento de pagar ele não conseguira fazer-lhes compreender o caso e o cocheiro se apodera-ra de seu relógio como garantia. Isto fez Bil Scanlan entrar em ação e pelo pé em que estavam as coisas é bem possível que fossem ambos parar no chão com as costas como pregadeiras de alfinetes se eu não tivesse resolvido o assunto com um ou dois dólares para o condutor do veículo e uma nota de cinco dólares para o homem que Bil Scanlan pusera de olho inchado. Tudo assim terminou bem e foi esta a ocasião em que Maracot me pareceu mais humano. Quando chegamos ao navio ele levou-me para a pequena cabina que reservara para si próprio e agradeceu minha intervenção. – A propósito, Sr. Headlei, disse-me ele; creio que o senhor não é casado, não é verdade? – Não, respondi. Sou solteiro. – Ninguém depende de sua pessoa? – Ninguém. – Muito bem! disse ele.

Não lhe contei o verdadeiro objetivo desta viagem, meu amigo, porque desejava por certas razões conservá-lo em segredo. Uma dessas ra-zões é que receava que outros me precedessem. Quando se têm planos científicos em mira, deve-se recear que suceda o mesmo que se passou entre Scott e Amundsen. Se Scott tivesse guardado o seu segredo, como fiz, seria ele, e não Amundsen que chegaria primeiro ao Pólo Sul. Quanto a mim, minha meta é tão importante como o Pólo Sul e por isso resolvi guardar a máxima reserva. Mas agora, que estamos nas vésperas de nossa grande aventura, nenhum rival terá tempo para apro-priar-se de meus planos. Amanhã partiremos para o nosso verdadeiro objetivo. – E qual é ele? perguntei. O Dr. Maracot curvou-se para a frente com o rosto austero inflamado pelo entusiasmo de um fanático. – Nossa meta, disse ele, é o fundo do Oceano Atlântico. Faço aqui uma pausa, pois espero que a notícia te tenha paralisado a respiração do mesmo modo que o fez com a minha. Se eu fosse um romancista, creio que en-cerraria aqui um capítulo, mas, como não passo de um simples cronista dos fatos, dir-te-ei que permaneci outra hora na cabina do velho Maracot, o qual me disse muitas coisas extraordinárias que tenho o tempo estritamente necessário para te contar antes que parta o último bote para a praia. – Sim, disse ele, pode escrever agora, o que quiser, pois quando sua carta chegar à Inglaterra já teremos dado nosso mergulho. Ao dizer isto riu-se, pois ele tem um senso de humor estranhamente apurado. – Sim, meu caro senhor, mergulho é a palavra adequada nesta ocasião, um mergulho que se tornará histórico nos anais da Ciência. Permita-me que lhe diga em primeiro lugar que estou perfeitamente convicto de que a doutrina corrente da extrema pressão que existiria nas grandes profundidades oceânicas é inteiramente errônea. É perfeitamente claro que outros fatores devem existir que neutralizem esse efeito, se bem que eu ainda não esteja aparelhado para dizer quais sejam. É um problema a resolver. Diga-me agora uma coisa: qual seria a pressão que se poderia esperar sob uma milha de água?

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