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A Mao do Diabo – Jose Rodrigues dos Santos

As palmeiras pareciam sentinelas irrequietas ao longo da faixa verde que separava os dois sentidos da marginal, as folhas balouçando animadamente ao vento como se dançassem ao ritmo alegre da cidade no bulício da estação do veraneio. O Sol deitava-se no enfiamento da costa e as lâmpadas brilhavam já nos candeeiros de época que bordejavam a serpenteante Promenade des Anglais, iluminando Nice com o brilho resplandecente de uma tiara de diamantes, os reflexos a cintilarem nas águas inquietas do Mediterrâneo como chamas bamboleantes. Os turistas iam abandonando em grupos a praia de Neptuno, onde em vez da areia se estendia um tapete de seixos acinzentados sobre os quais se plantavam toldos azuis e se alongavam ainda os banhistas mais teimosos. As pessoas enchiam os passeios no caminho de regresso aos hotéis e aos apartamentos, as conversas descontraídas e as gargalhadas a cruzarem-se pelo ar. O olhar inquieto do homem louro contrastava com o clima distendido do estio na grande cidade da Côte d’Azur. O homem atirou uma mirada preocupada para trás e estugou o passo ao ponto de quase começar a correr ao longo do passeio largo entre a praia e a marginal, ziguezagueando entre os turistas que se lhe atravessavam pelo caminho. Fez-se à estrada num ímpeto e esteve à beira de ser atropelado por um Mercedes negro num sentido e depois por um Aston Martin prateado no sentido contrário, mas conseguiu esgueirar-se entre os automóveis que cruzavam as seis faixas da marginal e, apesar do seu evidente nervosismo, chegou sem mais incidentes ao passeio do lado oposto. A marcha apressada transformou-se em corrida e o homem passou pela porta do Negresco tão perturbado que nem sequer deitou uma espreitadela à magnífica fachada do hotel de esquinas arredondadas e à sua famosa cúpula cor-de-rosa e verde, o edifício tão branco e tão bem trabalhado que parecia uma monumental peça de marfim encaixada na Promenade des Anglais. A brisa soprava fresca e vinha carregada de odores a mar, a sol, a iodo e a férias, mas tudo isso ele ignorou. Meteu pela rue de Rivoli até apanhar a movimentada rue de la Buffa. Uma tabuleta indicava Centre Ville à direita, para onde virou. Deteve-se diante da porta do primeiro prédio no outro lado da rua, um edifício de cinco andares cinza-claro com as múltiplas varandas protegidas por grades de ferro contorcido em arabescos, a fachada a lembrar a elegância dos blocos da rue de Rivoli parisiense, e espreitou com olhos vigilantes para os dois lados do passeio, como um coelho assustado. A rue de la Buffa era larga e não vislumbrou ninguém suspeito, mas isso não o tranquilizou. Carregou sucessivamente no botão do segundo andar esquerdo, esperando com tal insistência apressar uma resposta. “Quem é?”, perguntou uma voz irritada pelo intercomunicador, obviamente agastada pela obstinação enervada do toque. “Quem está aí?” “Sou eu, o Hervé. Abre a porta! Depressa!” “Já vai, já vai. Tem calma!” Com um zumbido e um estalido, a porta da rua destrancou-se e, depois de espreitar de novo emredor para se certificar de que ninguém o seguira, Hervé entrou no edifício. Demasiado impaciente para aguardar o elevador, galgou as escadarias saltando os degraus de dois em dois e só parou quando, já ofegante, chegou ao segundo andar. A porta do apartamento esquerdo estava entreaberta e deparou-se com o amigo a aguardá-lo de braços cruzados. “Temos de sair daqui”, atirou, entrando apressadamente no apartamento. “E o mais depressa possível!…” O amigo desviara-se para o deixar passar e, enquanto fechava a porta, lançou-lhe um olhar inquisitivo. “Que se passa?” O recém-chegado correu até à sala e, afastando ligeiramente a cortina, espreitou para o exterior. O Mediterrâneo era visível da sala, e em particular o enorme paquete que se afastava em direcção à linha do horizonte, proveniente da vizinha Villefranche-sur-Mer, mas Hervé ignorou-o e concentrouse antes no que se passava na rua lá em baixo. “Acho que me viram.


” A informação arrancou um esgar intrigado ao amigo. “Porque dizes isso?” Hervé não largou a janela, varrendo a rua em busca de qualquer movimento suspeito que confirmasse os seus receios; precisava de ter a certeza de que não fora seguido. “Dei com um homem na Prom a tirar fotografias na minha direcção. Quando se apercebeu de que o topei virou-se para o lado e disfarçou.” “Que tipo de homem? Como estava vestido?” “Era um gajo com calções brancos e um pólo azul do Yacht Club do Mónaco.” O amigo pôs as mãos na ilharga e inclinou a cabeça numa postura de repreensão. “Ah, meu grande camelo!”, exclamou num tom de repreensão paternal. “Andas mais nervoso que uma barata, hem? Zut alors, até um simples turista te põe a tremer de cagufa!” Fez uma careta de escárnio. “Não imaginava que vocês lá em Paris tinham medo dos turistas!…” O parisiense desprendeu o olhar da cortina e voltou-se para o seu interlocutor. “Escuta, Éric, o tipo estava a espiar-me!” Éric sorriu sem humor. “A sério? Um espião de calções e pólo do Yacht Club? Deixa cá ver… seria o zero zero oito? Porque não o Arsène Lupin?” Abanou a cabeça. “Deves estar a gozar comigo…” “A roupa era um disfarce.” O sorriso do amigo transformou-se numa gargalhada. “Tu sabes lá o que é um disfarce”, exclamou Éric, passando os dedos pelos cabelos grisalhos. “Quando eu era estudante e enfrentei a polícia lá na Sorbonne, em Maio de 68, no tempo dos comunas e da Indochina e da Argélia e daquela loucura toda, aí é que havia espionagem a sério.” Fez um gesto displicente para a janela. “O que tu viste, meu caro, não passou de um turista a fotografar a Prom ao anoitecer. Haverá coisa mais normal em Nice?” Virou as costas e dirigiu-se ao corredor. “Acho que este caso está a dar-te cabo dos nervos. Anda, vem daí e acalma-te.” Sentindo-se de repente ridículo, Hervé hesitou; talvez o amigo tivesse razão, o caso estava de facto a torná-lo paranóico. “Achas mesmo que era um turista?” Éric nem olhou para trás. “Vamos, anda daí”, insistiu num tom paternal. “Temos muito trabalho pela frente.” A descontracção do parceiro deixou Hervé desconcertado.

Momentos antes teria jurado pela saúde dos seus filhos que o homem dos calções o estava a vigiar, mas agora já não se sentia assim tão certo. No fim de contas talvez Éric tivesse razão, o homem dos calções não passava provavelmente de um turista encantado com a Promenade des Anglais, e ele, sentindo-se acossado e nervoso com o trabalho que andavam a fazer, vira uma ameaça onde ela não existia. Que tolo! Ainda pensou em espreitar uma última vez pela janela, mas concluiu que tudo aquilo era de facto uma completa idiotice e, vencendo a hesitação, meteu pelo corredor do apartamento e foi no encalço de Éric; havia realmente muito trabalho pela frente. Fez mal, porque se tivesse seguido o seu instinto e olhado de novo para a rua provavelmente teria visto o homem dos calções e pólo azul do Yacht Club do Mónaco plantado na esquina a inspeccionar o edifício. Além disso, o que era igualmente importante, teria percebido que o desconhecido não viera sozinho. Os ecrãs dos portáteis estavam iluminados e enchiam-se de folhas de cálculo repletas de algarismos. Já estava na hora de jantar, mas Hervé e Éric encontravam-se de tal modo embrenhados na tarefa que tinham em mãos que nem deram pela passagem do tempo nem pelos protestos mudos dos seus estômagos; tudo o que parecia interessar-lhes eram os dígitos que enchiam os painéis dos computadores portáteis. “Olha para isto”, observou Éric, rompendo o mutismo para indicar um dos números registados no ecrã. “Não admira que tenhamos chegado onde chegámos!…” O parisiense esticou o pescoço para o lado e espreitou o painel do portátil vizinho. “Típico, hem?” Voltaram a mergulhar nos números e o silêncio regressou ao apartamento, apenas rasgado pelo zumbido manso dos computadores e pelo ocasional dedilhar nervoso do teclado. O trabalho que estavam a desenvolver, talvez o mais importante em que alguma vez se tinham envolvido na sua vida profissional, requeria minúcia, grande concentração e muito empenho, e mostravam-se determinados a levá-lo até ao fim. Um ruído metálico. Hervé e Éric endireitaram as costas e altearam a cabeça, subitamente em alerta. Que barulho era aquele? Ouviram um som indefinido e compreenderam que vinha do corredor. Primeiro com espanto, depois com horror, perceberam que alguém tentava nesse momento inserir uma chave ou um outro objecto metálico, talvez um arame, na fechadura da porta do apartamento. “Que é isto?” Puseram-se de pé num salto, atarantados, e hesitaram. Era evidente que alguém tentava entrar no apartamento, mas quem? Pensaram em várias possibilidades mas depressa as puseram de lado. Ninguém sabia que eles se haviam escondido ali para levar a cabo o trabalho. Consequentemente, quem estava nesse instante a tentar abrir a porta, fosse lá quem fosse, não vinha com boas intenções. Que fazer? Deveriam enfrentar os intrusos? Mas enfrentá-los como? Eles não eram guerreiros nem sabiam lutar, a resistência física parecialhes coisa de homens primitivos. Não seria melhor fugir? Deram alguns passos numa direcção e depois noutra, como galinhas tontas, sem saberem como reagir. O barulho de um metal a rodar no interior da fechadura tornou-se mais forte. Tomando por fim consciência de que não tinham meios nem capacidade para resistir, Hervé desviou a atenção para a cozinha, ao fundo da qual havia uma porta que dava para as escadas de emergência. Agarrou Éric pelo braço e puxou-o com força. “Vamos!”, exclamou.

“Depressa!” Correram para a cozinha e abriram a porta do fundo. No momento em que Hervé pôs o pé no degrau da escada metálica escutaram um clique proveniente do corredor e perceberam que a fechadura estava prestes a ceder. “Despacha-te!”, gritou Éric, a voz impregnada de pânico. “Eles vêem aí!” Hervé sentiu-se de tal modo tomado pelo medo que quase teve vontade de se atirar lá para baixo. Mas estavam no segundo andar e dominou o impulso suicida. Saltou dois degraus, depois três e mais três, as escadas metálicas a tremerem e a rangerem e a balouçarem, mas deteve-se a meio do primeiro lanço quando viu o caminho cortado por dois homens que o encaravam lá de baixo com uma expressão ameaçadora. “Para trás!”, disse. “Para trás!” “Estás doido?”, espantou-se Éric dois degraus acima, sem compreender o comportamento do amigo. “Continua! Continua!” Mas o parisiense já recuava e, fazendo um gesto para o fundo das escadas, apontou para os homens que entretanto haviam começado a trepar os degraus em sua perseguição. “Eles estão ali!” Éric olhou naquela direcção e vislumbrou os vultos a aproximarem-se. Percebeu nesse instante o problema, pelo que estacou e recuou também. Os dois subiram a escada com a convicção de que a sua única esperança era a fechadura da porta do apartamento resistir ainda aos intrusos, o que lhes daria a possibilidade de se armarem com as facas de cozinha e, se ainda tivessem tempo, telefonarema pedir ajuda. Voltaram à cozinha e viram-se rodeados por três vultos, como lobos a talharem-lhes o caminho. A fechadura cedera e os três desconhecidos cercaram-nos, dois à frente e um atrás, os semblantes carregados, as posturas ameaçadoras. “Quem são os senhores?”, perguntou Hervé, tentando imprimir autoridade à voz. “Que fazemaqui?” Dois dos desconhecidos deram um passo em frente e as presas sentiram os seus braços poderosos envolverem-lhes o tronco e prenderem-lhes os braços, impossibilitando-lhes os movimentos. Tentaram libertar-se do aperto, mas os braços dos agressores eram demasiado fortes e o mais que conseguiram foi espernear. Não adiantava. Mudando de táctica, o parisiense acalmou-se e encarou o desconhecido que ficara a observálos, evidentemente o chefe da quadrilha. Pensou em negociar, mas apercebeu-se de que se tratava do homem dos calções e pólo azul do Yacht Club do Mónaco, o “turista” que avistara umas horas antes na Promenade des Anglais e que sorriu de forma estranha no momento em que se tornou evidente que os dois ocupantes do apartamento não tinham escapatória. “Xeque-mate.” As cordas que amarravam Hervé à cadeira haviam sido estreitadas com tal força que ele já sentia as mãos dormentes. Olhou para Éric e percebeu que o seu companheiro mais velho não se encontrava melhor; na verdade apresentava até a face mais pálida do que era normal, sinal de que as cordas que o atavam estavam tão apertadas que o sangue tinha até dificuldade em subir à cabeça. Passeou os olhos pelo espaço em redor e registou o caos em que se havia transformado a sala de estar. Não conseguia destrinçar o que se passava nas restantes divisões do apartamento, mas a barulheira era elucidativa e não lhe parecia difícil imaginar o que ali acontecia.

Os intrusos esventravam os compartimentos e revistavam tudo o que havia para ver, espalhando pelo soalho roupas e livros e papéis e objectos de decoração e tudo o mais que encontravam nas gavetas e nas estantes. Ao fim de meia hora, o homem dos calções e do pólo azul regressou à sala de estar e abeirou-se de Hervé. “O DVD?” O cativo abanou a cabeça. “Qual DVD? Não sei o que…” Duas estaladas, seguidas de um violento pontapé numa face, interromperam a resposta. “Não te armes em parvo!”, vociferou o agressor num tom carregado de ameaça. “Onde está o DVD?” Hervé tentou encolher-se para se defender, mas estava demasiado bem amarrado e o mais que conseguiu foi virar a cabeça. Sentia a face incendiada e o nariz a latejar, mas só percebeu que sangrava quando viu pingos vermelhos salpicarem a madeira do chão em sucessivos círculos imperfeitos. “Eu… não sei…”, balbuciou, “não sei do que… do que está o senhor a falar.” Apanhou com um novo pontapé na cara que lhe deve ter rebentado o lábio inferior, pois sentiu aí um pulsar intenso e doloroso. “Fala, idiota! O DVD?” O prisioneiro tentou responder, mas as primeiras palavras afogaram-se na garganta e não lhe saíram. Respirou fundo e voltou a concentrar-se. “Por favor, pare com isso”, murmurou, ofegante. “Não sei de nenhum DVD.” O homem dos calções fitou-o durante uns longos cinco segundos, como se tentasse decidir se o indivíduo amarrado diante dele dizia a verdade ou mentia, e, talvez convencido, ou se calhar apenas mudando de táctica, acabou por se dirigir ao segundo prisioneiro. Encarou Éric de pernas abertas e olhar carrancudo, como um toureiro a preparar-se para o embate. “O DVD?” Foi a vez de o cativo mais velho se encolher. “Não sei.” O homem dos calções pontapeou sucessivamente o segundo prisioneiro, empregando ainda maior selvajaria do que quando agredira Hervé. Éric tinha todo o tronco atado às costas da cadeira e a cabeça absolutamente desprotegida. Quando as agressões pararam, a cara do segundo prisioneiro cobrira-se de sangue e de hematomas, a testa tão inchada da parte direita que quase lhe tapava o olho. “O DVD?”, insistiu o interrogador. “Onde está a porra do DVD?” Mas a cabeça de Éric estava caída, como a de uma marioneta abandonada pelo manipulador, e o prisioneiro parecia à beira de perder a consciência; era evidente que a agressão o tinha deixado incapaz de responder. O homem dos calções praguejou de frustração e, com gestos repentinos, foi buscar um computador e começou a montá-lo sobre a mesa que ocupava o centro da sala. A ligação visual através do Skype levou dez minutos a ser estabelecida. Hervé passou esse tempo a estudar maneiras de escapar daquela armadilha, mas depressa percebeu que não havia fuga.

Estava demasiado bem amarrado e, mesmo que se conseguisse libertar, teria de enfrentar os cinco desconhecidos, três deles muito corpulentos. A verdade é que se encontravam à mercê daqueles homens. O ecrã do computador animou-se e um vulto difuso apareceu por fim na imagem. O agressor fez uma vénia. “Poderoso Magus, preciso da tua preciosa orientação.” Hervé tentou destrinçar as feições do homem que aparecera em linha, mas o ecrã estava de lado e só lhe ouvia a voz. “Então, Balam?”, perguntou o vulto. “Que se passa? Apanhaste Dupond e Dupont?” “Sim, estão aqui.” “E o DVD? Já o tens?” “Não.” O homem dos calções e do pólo azul respondeu em voz baixa, quase a medo; sabia que tinha razões para isso. “Tu garantiste-me que me trazias o DVD!”, rosnou o homem no Skype. “Não te atrevas a quebrar a promessa!…” “Não, poderoso Magus, fique descansado”, apressou-se Balam a responder, com gotas de suor a descerem em ziguezague pela testa. Hesitou, na dúvida sobre como expor o problema. “É que… já os interroguei e eles dizem que não sabem do que estou a falar. Será possível?” “Claro que não”, retorquiu Magus. “Os tipos estão a mentir. Tens de os apertar melhor.” Balam desviou o olhar para Éric, que permanecia atordoado depois do ataque selvagem a que fora submetido, e respirou fundo. “Só se for o mais novo”, constatou. “O velhote já não está em condições de falar.” O vulto no ecrã emudeceu por uns instantes, decerto a ponderar o melhor caminho. “Elimina um”, sentenciou num tom gélido. “Isso fará o outro cantar que nem um canário.” Sem hesitar, Balam endireitou-se e tirou uma navalha do bolso traseiro dos calções. Hervé observou-o com o horror a crescer-lhe nos olhos, receando que a ordem lhe dissesse respeito a si.

Em vez disso o agressor aproximou-se de Éric. Pegou-lhe pelo cabelo grisalho de modo a endireitarlhe a cabeça e, com um gesto repentino, passou-lhe a lâmina pelo pescoço e o sangue começou a jorrar em golfadas. O parisiense virou a cara e fechou os olhos, mas isso não o impediu de ouvir o sangue a borbulhar do pescoço e o espernear impotente das pernas de Éric durante alguns segundos até ao estertor final. Quando tudo ficou de novo quieto, Hervé sentiu o agressor aproximar-se dele. “É a tua última oportunidade”, sussurrou Balam, quase como se segredasse. “Onde está o DVD?” A imagem e o som da brutal execução de Éric ecoavam na mente do prisioneiro no momento em que, a medo, levantou os olhos assustados e encarou o verdugo. Balam tinha as mãos ensanguentas e manchas encarnadas a sujarem-lhe o pólo azul do Yacht Club do Mónaco. A navalha suja dançavalhe na ponta dos dedos. “Por favor”, gemeu, as lágrimas a começarem a rolar-lhe pela face inchada e manchada de sangue e transpiração, “não me mate!…” O agressor inclinou-se e fitou-o com intensidade, como se a paciência tivesse chegado ao limite. “O DVD?” Hervé percebeu que não dispunha de qualquer alternativa. Se queria sobreviver, tinha de cooperar. Uma voz dizia-lhe na cabeça que, fosse qual fosse a sua decisão, o destino estava traçado; ia ser morto. Mas uma esperança cega calou essa voz interior e a vontade de viver revelou-se tão grande que o fez acreditar que poderia escapar se desse ao agressor o que ele viera buscar. “Não o temos”, murmurou, pela primeira vez a admitir implicitamente que sabia bem o que os desconhecidos procuravam. “O DVD está com… com outra pessoa.” Balam arreganhou os lábios e exibiu os dentes. “Quem?” A pergunta foi feita tão próximo que Hervé sentiu o hálito a vinho do carrasco. O coração do prisioneiro ribombava-lhe descontroladamente no peito e os lábios entumecidos pelas pancadas tremiam-lhe de medo e dor. “O português”, confessou, a arfar de medo. “É o português… é ele que tem esse maldito DVD.” Consciente de que o homem à sua mercê dizia a verdade e revelara enfim tudo o que sabia, Balam endireitou-se, pousou-lhe a mão sobre a cabeça como se o afagasse e, com súbita brutalidade, puxou-o pelos cabelos. Com a ponta da navalha suja ainda a cintilar, fez um movimento rápido e degolou-o como havia degolado Éric dois minutos antes. I O cheiro a mofo e a pó das antiguidades era o suficiente para manter qualquer pessoa de bomsenso o mais afastada possível do armazém dos documentos raros, mas o odor bafiento dos papéis a desfazerem-se com os séculos era para Tomás Noronha o melhor dos bálsamos. Com as mãos enluvadas, como requerido pelo protocolo quando se manuseiam manuscritos tão antigos, o historiador português pegou no rolo de pergaminho bolorento e estendeu-o sobre o estirador. Aproximou a lâmpada da superfície amarelecida e iluminou as linhas misteriosas que percorriam o velho documento como uma cifra arcana; parecia vagamente árabe mas era algo diferente, infinitamente mais enigmático e difícil de decifrar.

“Que alfabeto é esse, professor?” A pergunta foi feita pelo homem que lhe entregara o rolo, o responsável pela equipa de arqueólogos que dias antes o chamara a Atenas e o arrastara até àquela cave sombria do Museu Arqueológico. “Avéstico”, respondeu o historiador português, os olhos fascinados a deslizarem pelas palavras que enchiam o rolo. “A língua é a das escrituras do zoroastrismo, usada na Pérsia até ao século VI antes de Cristo.” “Então confirma que esse texto é mesmo dos Avestá?” Absorto no texto diante dele, Tomás não respondeu; na verdade nem ouviu a pergunta, tão concentrado estava nas palavras que devorava com fascínio incontido. Nunca imaginara vir um dia a estar diante de um manuscrito daqueles. E a sua surpresa ia aumentando à medida que decifrava as palavras ali gravadas havia mais de dois milénios, como se o copista da antiguidade as tivesse escrito especificamente para ele. Parecia incrível que uma descoberta de tal magnitude lhe viesse cair nas mãos daquela maneira. “Diga-me, professor Markopoulou, onde foi que vocês encontraram isto?” “Nas ruínas da Biblioteca de Pantainos”, devolveu o arqueólogo. “Ali na zona da ágora.” “Isso já vocês me disseram quando me convidaram a vir cá”, observou sem desviar a atenção do pergaminho decrépito, quase como se tivesse medo de que ele desaparecesse. “Mas onde exactamente?” “Na escavação da parte da biblioteca junto à Porta de Atena. Demos com uma câmara subterrânea totalmente protegida da humidade. Era aí que os rolos estavam guardados.” Tomás não tirava os olhos do manuscrito; o seu conteúdo era demasiado fascinante, deixara-o hipnotizado. Mesmo que quisesse, não seria capaz de afastar dali o olhar. E quem o poderia censurar? Não era aquilo o sonho de qualquer historiador? Parecia impossível um documento tão antigo ter sobrevivido tanto tempo nas condições de humidade típicas da Europa. Se fosse no Médio Oriente, isso não o surpreenderia; as descobertas de Qumran e de Nag Hammadi constituíam a prova de que os climas secos de Israel e do Egipto eram os mais adequados para a preservação de manuscritos antigos. Mas… a Grécia? “Este texto é impressionante”, murmurou, assombrado. “Verdadeiramente impressionante!” O arqueólogo grego que lhe fazia companhia aproximou mais a cabeça para contemplar o rolo aberto no estirador, como se só o facto de o olhar lhe permitisse arrancar do texto os seus segredos. “São mesmo Os Avestá?”, perguntou de novo. “Confirma-se, professor?” Tomás assentiu com um suave movimento afirmativo da cabeça. “São os Avestá, são”, anuiu. “Mais exactamente o Gathas, o livro dos dezassete hinos que se pensa terem sido escritos pela mão do próprio Zoroastro.” O professor Markopoulou indicou o rolo bafiento cujas palavras misteriosas a luz amarelada da lâmpada acariciava com um hálito quente, resgatando o texto da treva que durante milénios o abrigara da curiosidade humana. O historiador português aproximou o olhar de uma palavra sem as últimas letras, substituídas por um pequeno buraco cavado pelo tempo e talvez aberto pelas traças, num esforço para lhe extrair o sentido que o furo escondera.

“É um trecho sobre Angra Manyu.” “Quem é esse?” Pela primeira vez, Tomás desviou a atenção do manuscrito e encarou o seu colega com um sorriso que as sombras da cave tornaram vagamente sinistro, como se a atmosfera daquele lugar lúgubre fosse a mais adequada para o tema que o texto invocava. “O Diabo.” Ao ouvir o nome maldito, o arqueólogo abriu muito os olhos e recuou instintivamente, quase assustado; parecia recear o próprio manuscrito. “Perdão?” O português passou a palma da mão por cima do rolo aberto no estirador e redigido no alfabeto avéstico, como se o quisesse acariciar. “Este trecho do Gathas descreve-nos o aparecimento de Angra Manyu”, revelou, a voz abafada pelo ambiente opressivo da cave escura. “Sabe, o zoroastrismo foi a primeira religião monoteísta. O judaísmo, o cristianismo e o islão vieram beber ao zoroastrismo, que nasceu na antiga Pérsia. Os textos pré-zoroastrianos falam na vinda de Mitra, que nasceria numa gruta, evento que seria assinalado por uma estrela.” “Isso parece-me familiar…”

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