O dente se quebrou três dias depois que ela recebeu a notícia terrível. Não sangrou. Sequer doeu. Durante três dias a impressão era de que seu coração se partira em vários pedacinhos, mas, afinal, foi outra parte do corpo que resolveu se render ao luto. Sem dor, sem sangue. Apenas um instante de espanto quando mordeu a torrada macia que preparou para o café da manhã e sentiu algo duro e esquisito na boca. Cuspiu, então, dois pedacinhos na mão em concha. Adish fitou-a, apalermado, e exclamou um segundo depois: — Ah, não! O que houve? Ela o fitou de volta, incapaz de responder, paralisada pela propriedade e impropriedade do dente quebrado. Por um lado, ainda nem fizera cinquenta anos e, como diria a mãe, estava nos trinques emtermos de saúde: jovem demais para começar a perder os dentes no café da manhã. Por outro lado, a evidência diante dela era adequada, uma manifestação externa da sensação de perda que andava sentindo desde que recebera o telefonema de Armaiti. Uma aceitação atípica tomou conta de Laleh, em contraste com a negação que vinha vivenciando desde que Armaiti ligara contando do câncer. Na ocasião se sentira como um animal selvagem laçado pela tirania do fio do telefone. Não, não e não, reagiu balançando a cabeça quando desligou. Levantou-se da mesa e foi para o banheiro. Enxaguou a boca com água fria e só depois ergueu os olhos para o espelho. Era um dente lateral, e um toco ainda continuava preso à gengiva. Mesmo assim, que diferença indiscutível em sua aparência! Por algum motivo absurdo, a visão lembrou a Laleh o horizonte de Manhattan após a queda das torres, uma lacuna que chamava a atenção para o que faltava. Até então, seus dentes tinham sido fortes e perfeitos como teclas de piano; mas também, até então, sua amiga mais antiga nunca estivera à morte. Nada mais justo que, nessa semana de lembretes de mortalidade, ela também sacrificasse alguma coisa. Ainda assim, Laleh lamentou o timing. Ia encontrar-se com Kavita dali a algumas horas — não havia tempo suficiente para ligar para o dentista e pedir uma consulta de emergência —, a fim de irem as duas ao velho endereço da sra. Lokhanwala. Fazia quase trinta anos que não a viam e, emvirtude da natureza crucial da missão de ambas, Laleh gostaria de se apresentar em sua melhor forma. O dente quebrado já a fazia sentir-se constrangida. Costumava se orgulhar de não ter vaidade, embora, na verdade, o fato de ser bonita lhe permitisse deixá-la de lado.
Agora, porém, prometeu a si mesma que simplesmente não sorriria durante a visita à sra. Lokhanwala. Isso se a mulher — que teria o que, setenta e cinco, oitenta anos? — ainda estivesse viva. Laleh não se permitiu pensar no que ela e Kavita fariam se a mãe de Nishta tivesse morrido ou se mudado. Ouviu Adish entrar no quarto. No segundo seguinte, ele se postou diante dela, encostado ao batente da porta, fitando-a de um jeito indagador: — Você está bem, janu? Ela assentiu, sorrindo com a boca fechada: — Estou ótima. — Tem certeza de que não quer que eu vá com vocês? Posso dar uma saída do trabalho por algumas… — Não é preciso. A gente dá conta. Ligo para você se houver necessidade. Adish passou, suavemente, o dedo indicador sobre os lábios dela: — Quer que eu telefone para Sarosh e veja se ele pode encaixar você no fim da tarde? — Isso seria ótimo. — Porque você não se esqueceu da festa de hoje à noite, não é? Garanto que Sarosh pode providenciar uma coroa provisória. — Ai, merda. Esqueci completamente — exclamou ela, com uma expressão suplicante. — Será que não dá para você ir sem mim? Em resposta, ele se inclinou e a beijou no rosto: — Tchau. Ligue para dar notícias. Laleh resmungou baixinho para si mesma enquanto aprontava as coisas para o banho. Adish sabia o quanto ela abominava suas festas de trabalho, o quanto se sentia solitária em meio ao papo vazio — toda aquela falsa camaradagem e falsa humildade. Quase sempre os dois brigavam na volta de umdesses eventos. Mesmo assim, ele continuava insistindo para que ela o acompanhasse. Na semana anterior, quando Kavita precisou trabalhar até tarde, Laleh arrastara Adish para o teatro e, em troca, ele arrancara dela a promessa de acompanhá-lo à festa de Girish Chandani naquela noite. Tudo bem, pensou Laleh, entrando no chuveiro. Havia coisas mais importantes em que pensar naquela manhã. Nishta, por exemplo. Elas precisavam encontrar Nishta. Transmitir-lhe o último desejo de Armaiti.
Mesmo depois de todos esses anos de silêncio entre elas duas. Mesmo que esse desejo pudesse não significar coisa alguma para Nishta. Mesmo que ela tivesse desaparecido da vida das três deixando em seu rastro apenas um vazio. * * * Kavita dirigia, e contemplando aquelas mãos firmes e competentes pousadas no volante Laleh sorriu para si mesma. Lembrou-se de como Kavita era na faculdade, uma garota tímida e sonhadora que carregava seu violão para todo lado. Difícil acreditar que a menina pensativa, poética, era agora uma das mais renomadas arquitetas da cidade. Laleh afundou no assento e suspirou de modo inaudível, sentindo-se uma vida inteira distante da mulher jovem, impetuosa e idealista que tinha sido, da época em que Kavita-Armaiti-Nishta formavam uma única palavra em seu livro, um único coração pulsante. Onde estavam elas agora? Uma, à morte nos Estados Unidos, outra, desaparecida, e Kavita, ainda presente em sua vida. — O que foi? — indagou Kavita, sempre atenta aos humores da amiga. Laleh balançou a cabeça, incapaz de responder, a mente atrelada à lembrança de uma certa tarde dourada. As quatro haviam se reunido para estudar na casa de Nishta, mas o que Laleh se lembrava agora era das quatro deitadas de barriga para cima na cama de Nishta, com os joelhos dobrados de modo que os pés se encostassem no chão. No aparelho de som, “Those Were the Days” tocava a todo volume, enquanto elas acompanhavam cantando também com intensidade e alto volume. “La la la la, la la”, entoavam a plenos pulmões, batendo os pés no chão no ritmo da canção. De repente, Armaiti deu um pulo da cama e começou a dançar, a dançar de um jeito tão solto e cômico — o cabelo esvoaçava, a cabeça mexia para lá e para cá, os braços e as pernas, que pareciam feitos de borracha, apontando em todas as direções —, que as outras se puseram de pé e se juntaram a ela. Quando a música terminou, as quatro estavam às gargalhadas, suadas e exaustas. Então, como se não tivesse sido a mola-mestra de todo aquele caos alegre, Armaiti comentou de um jeito crítico: “Que música mais mórbida, eca!” — Está pensando em quê? — perguntou Kavita. — Em nada. Em tudo. Em como a gente era antigamente. Kavita olhou-a com uma expressão pesarosa. — Quer saber o que é mais triste? Naquela época eu achava que todo mundo se divertia assim na adolescência. Que todo mundo tinha o mesmo tipo de amizade que a gente, que todo mundo sentia a mesma paixão e a mesma alegria. — Eu, não — atalhou Laleh. — Sempre soube que o que a gente tinha era raro. Sempre.
Mesmo naquela época. Meus próprios filhos não têm, Ka. Quer dizer, eles têm um monte de amigos, mas para mim tudo parece superficial. Não falam de outra coisa além de iPhones e jeans de grife. E não querem nem saber de política. É uma coisa louca. — Os tempos são outros, Lal. Eles estão crescendo numa Índia diferente. — Que besteira. Isso é o que Adish diz, mas o que foi que mudou, Kavita? Todas as velhas lutas continuam, não? Eles construíram um punhado de shoppings para gente como nós, mas o que foi que mudou? Como o pai costumava zombar dela e de Armaiti quando as ouvia falar em construir um país melhor! — Uma nova Índia? — trovejava Rumi Madan à mesa do jantar, depois de ouvir as duas adolescentes falarem de modo casual da iminência de uma revolução. — Vocês acham que estão numa peça da escola? Que “nova Índia” é essa que pretendem construir? Minhas queridas, se é que vai haver uma nova Índia, ela há de ser construída pelos políticos e pelos empresários, sobretudo pelos empresários, não por uma dupla de garotas brincando de revolucionárias. Laleh piscou para se livrar das lágrimas que ameaçavam marejar-lhe os olhos. Desde o telefonema de Armaiti, o passado se tornara mais vívido do que o presente. Atravessara tal qual um zumbi os últimos dias, incapaz de se concentrar em coisa alguma. E agora o passado se impunha mais uma vez, na forma do velho edifício onde morara Nishta. Milhares de imagens encheram a mente de Laleh enquanto Kavita procurava uma vaga para o carro na rua margeada de árvores. E, embora tivesse sentido uma urgência enorme em localizar os pais de Nishta desde que Armaiti ligara para dar a notícia, Laleh se viu agora caminhando lentamente, quando as duas desceram do carro e se dirigiram para o prédio. Ao alcançarem a portaria, ela e Kavita ficaram ali, mudas, um instante. Kavita, então, suspirou alto, e ambas entraram no saguão familiar. Seus olhares examinaram o quadro de madeira com os nomes dos moradores, em busca do número do apartamento dos Lokhanwala. — Olhe — disse Laleh. — Eles ainda moram aqui. Graças a Deus. — A portaria continua com o mesmo cheiro — observou Kavita, e Laleh assentiu, enquanto as duas se aproximavam do elevador. — Sândalo.
Tocaram duas vezes a campainha antes que uma empregada atendesse. — Oi. A memsahib está? — indagou Kavita. — Quem deseja? Kavita hesitou: — Diga a ela que… Diga apenas que somos velhas amigas. A moça reagiu com um olhar cético, antes de passar a corrente na porta, impedindo que ela se abrisse por completo. — Sim? — Um rosto enrugado surgiu do outro lado. — O que vocês desejam? — Tia, somos nós! Kavita e Laleh, as amigas de Nishta da faculdade. Lembra da gente? Fez-se um silêncio embaraçado após o qual a senhora soltou uma exclamação, surpresa. Ouviu-se o barulho da corrente sendo removida e, em seguida, a porta se abriu: — Kavita, Laleh, não acredito! A que devo esta visita? Vamos, entrem. Um minuto depois, as duas estavam sentadas em frente da sra. Lokhanwala na sala ampla e arejada. As três se examinaram, todas por demais educadas para tecer comentários sobre as mudanças causadas pelo tempo. — O que vocês querem tomar? — perguntou a senhora, finalmente. — Café, chá? — E, antes que houvesse alguma resposta, foi logo determinando: — Deepa, traga três xícaras de café. E algo para beliscar. — Tia, por favor. Não queremos dar trabalho — interveio Laleh. Viu-se zonza com a tentativa de registrar o fato de que a elegante e impecável sra. Lokhanwala — como seria o primeiro nome dela, afinal? — era agora uma velhinha. A própria sala de estar parecia congelada no tempo: as mesmas paredes cor de creme, o revestimento cinza do assoalho, a bela cadeira de balanço de madeira nobre. — Meu Deus, vocês não mudaram nadinha — observou a sra. Lokhanwala. — Eu as reconheceria em qualquer lugar. As duas sorriram com timidez. — Nem a senhora — mentiu Kavita.
— Notícias de Nishta? À menção do nome da filha, um véu cobriu o rosto da idosa. O sorriso desapareceu. Os olhos se embaçaram. — Vocês não souberam? — sussurrou ela. Laleh se inclinou, atenta: — Soubemos de quê? — Não temos contato algum com ela. Meu marido… Meu marido proibiu. Ela se casou com umrapaz muçulmano. Laleh se deu conta de estar prendendo o fôlego. — Soubemos disso, sim — disse ela. — Iqbal era nosso amigo — prosseguiu, obrigando-se a manter um tom neutro. — Esperávamos que depois de tanto tempo tivesse havido uma reconciliação. A despeito do tato de Laleh, a senhora se retraiu como se tivesse levado um tapa. Olhou para além da varanda durante um minuto e só então voltou a encarar as duas. — O que as trouxe aqui hoje? — indagou. Antes mesmo de ouvir a resposta, porém, emendou: — O que houve com aquela outra parse, a quarta do grupo? Como era mesmo o nome dela? — Armaiti — respondeu Kavita. — Isso mesmo. Pensei tanto em vocês três durante esses anos… — A sra. Lokhanwala sorriu. — Como era animada a nossa casa com vocês aqui o tempo todo — comentou, antes que o sorriso se apagasse. — Agora somos só eu e meu marido. Nosso filho… Vocês se lembram de Arun? Ele está morando na Austrália. Voltando ao assunto, como vai Armaiti? Vocês estão sempre com ela? — Vai bem — respondeu de pronto Laleh para, em seguida, acrescentar: — Na verdade, tia, ela não está bem. Mora nos Estados Unidos e… — Ainda era difícil pronunciar as palavras, mas ela se obrigou. — Acabamos de saber que está seriamente doente. Um tumor no cérebro.
— Arre, Ram… — A sra. Lokhanwala cobriu a boca com a mão. — Como é possível uma coisa dessas? Aquela menina tão meiga! Por um instante, Laleh viu Armaiti pelos olhos da sra. Lokhanwala: uma eterna adolescente. Engoliu em seco: — É, bem… Por isso mesmo estamos tentando localizar Nishta. Armaiti quer que a gente se reúna outra vez. A expressão da mulher era impassível. — Quem dera eu pudesse ajudar — disse ela. Laleh reprimiu uma onda de raiva que lhe subiu à garganta. — Nishta já tentou entrar em contato com a senhora? — indagou casualmente. Os olhos da sra. Lokhanwala passearam pela sala. — Todo ano ela manda um cartão no meu aniversário, mas meu marido não permite que eu abra. Por isso, jogo fora. Ou devolvo. Laleh observou um ponto acima do ombro esquerdo da senhora. Guardara todos os bilhetes que os filhos haviam escrito para ela desde o jardim da infância. Tentou imaginar-se jogando fora um cartão de aniversário recebido de Ferzin ou de Farhad e se perguntou o que poderia levá-la um dia a renegar os filhos. Não conseguiu pensar em um único cenário plausível. A criada entrou com uma bandeja e a pousou com cuidado diante das convidadas. Laleh agarrou o braço de Kavita e a forçou a ficar de pé, ao mesmo tempo que se levantava também. — Lamento, mas precisamos ir agora — esclareceu. Queria se afastar da sra. Lokhanwala antes que dissesse algo de que se arrependeria. — Ao menos tomem uma xícara de café — protestou a sra.
Lokhanwala, mas numa voz cansada, indiferente, com um olhar compreensivo. — Desculpe, tia — insistiu Laleh. — Já estamos atrasadas. — Nem morta iria tomar um gole do que quer que fosse naquela casa. Kavita deu alguns passos para se aproximar do lugar onde a sra. Lokhanwala estava sentada e pousou a mão em seu ombro: — Foi um prazer rever a senhora — disse com delicadeza. — Nós duas temos lembranças tão boas desta casa! Laleh sentiu um leve rubor colorir seu rosto, interpretando a atenção de Kavita como uma censura ao seu comportamento grosseiro. A sra. Lokhanwala tomou a mão de Kavita entre as suas: — Sei que deve parecer estranho… — começou a dizer, mas Kavita já se afastara. As duas não trocaram palavra enquanto desciam os cinco andares de elevador. O silêncio permaneceu depois de deixarem os portões do edifício, cruzarem as duas pistas da avenida e percorrerem a distância até o carro. Enfim, Kavita se virou para Laleh: — Preferia não ter vindo — observou. — Sei disso. Que tipo de mãe vira as costas para um filho? — Tenho a sensação de que é o marido que controla a situação — disse Kavita. Depois imitou a voz da sra. Lokhanwala: — Meu marido não permite que eu abra os cartões. — Olhe — atalhou Laleh com veemência. — Se Adish me proibisse de falar com meus filhos, eu arrancaria a língua dele muito antes de obedecer. Kavita soltou um suspiro: — Ela pertence a outra geração, Laleh. — Com licença — pediu uma voz tímida atrás das duas. Kavita e Laleh se viraram e viram a criada da sra. Lokhanwala, que tinha na mão um envelope. — A memsahib me pediu para lhes entregar. Estendeu o envelope para Kavita, ergueu os olhos para a parte superior do prédio e depois se afastou apressada. As duas seguiram o olhar da moça a tempo de ver uma figura debruçada no parapeito da varanda do quinto andar.
Um segundo depois, porém, a pessoa tornou a entrar. Obviamente se tratava da sra. Lokhanwala, assegurando-se de que a criada cumprira suas instruções. Kavita virou o envelope ao contrário. Havia sido endereçado à sra. Lokhanwala e continha o endereço do remetente. Em volta do endereço, alguém fizera um círculo em tinta vermelha e desenhara uma seta apontando para ele. Com a mesma caneta vermelha, a sra. Lokhanwala escrevera em letras grandes e trêmulas “Não me julguem, por favor”. Kavita e Laleh olharam o pedaço de papel e depois de uma para a outra. Ergueram os olhos para a varanda agora vazia e tornaram a baixá-los para o envelope. Quando Laleh enfim fitou Kavita de novo, seu rosto estava rubro. — Estou me sentindo uma grande canalha — disse ela. CAPÍTULO 2 Armaiti estava jardinando há uma hora, ignorando a claridade mortiça do dia, quando notou os passarinhos mortos. Eram dois e jaziam um de frente para o outro, os olhos abertos, os bicos quase se tocando como num beijo. As penas vermelho-sangue haviam desbotado para uma tonalidade marrom-ferrugem, o que levou Armaiti a concluir que já estavam mortos havia alguns dias. Calçando as luvas de jardinagem que já era costume esquecer de usar, ergueu do chão, com delicadeza, um dos pássaros, meio que esperando que a ave despertasse e alçasse voo. O pobrezinho parecia muito leve e magrinho, como se toda a plumagem não passasse de um adereço, um artifício para disfarçar um interior oco. A ideia lhe despertou uma onda de ternura pelo pássaro morto. Virando-o na palma da mão, ela o examinou em busca de um ferimento que um gato ou um pássaro maior pudessem ter lhe feito, mas nada viu. Ergueu os olhos para o céu de junho na expectativa de uma resposta. Não havia à vista árvore alguma da qual a dupla pudesse ter caído. Quem sabe os pássaros não despencaram simplesmente do céu, pensou, do jeito como as baleias às vezes encalhamna praia sem qualquer razão aparente. A imagem dessas lindas criaturas vermelhas caindo na terra encheu seus olhos de lágrimas. Estava segurando a morte nas mãos.
O pensamento a perturbou e a fez pousar depressa os pássaros na terra. Mas então se lembrou, e sorriu com amargura. A morte não estava apenas em suas mãos — seu corpo todo, droga, era agora seu anfitrião, homenageando-a com uma grande festa. Para distrair a mente do assunto, consultou mais uma vez o relógio. Muito cedo ainda para ter notícias das outras. As outras. Depois de todos esses anos, ainda era assim que pensava nelas. Laleh, Kavita e Nishta. Será que encontrariam Nishta? Será que a encontrariam a tempo? Queria tanto ver de novo as três amigas. Mas agora. Tinha de ser agora, enquanto seu corpo ainda lhe pertencia. Ao menos na maior parte do tempo. Não mais tarde, quando as coisas ficassem feias, quando o cérebro enfermo assumisse o comando. Armaiti se pôs de pé e, por um segundo, o chão oscilou antes de se assentar de novo. No minuto seguinte, porém, sua atenção se voltou para uma fisgada de dor no joelho. Armaiti costumava encarar toda e qualquer dor como algo a ser ignorado, como se faz com alguém com maus modos à mesa. Hoje, ela notou. Ao longo das últimas duas semanas, desde o resultado da biópsia, qualquer sussurro ou gemido do corpo despertava sua atenção. Foi até o barracão de madeira atrás da garagem e voltou com uma pá para poder cavar e enterrar os pássaros. Deitou-os lado a lado na pequena cova e depois os cobriu de terra. Lá para o fim da semana, pensou, plantaria algumas petúnias sobre o túmulo. Já estava ficando escuro demais para permanecer do lado de fora. E Richard e Diane, lá dentro, preparavam um jantar que, cansada assim, ela já sabia, não conseguiria comer. De todo jeito, tentaria. Por causa deles.
Já os fizera sofrer o suficiente, pela segunda vez em cinco anos. Primeiro o divórcio e agora isso. Diane, hoje no primeiro ano de faculdade em Harvard, ainda cursava o ensino médio na época. Por que fizera tanta questão de se divorciar de Richard?, perguntou-se, enquanto guardava as ferramentas de jardinagem. O marido implorara para que ela reconsiderasse, jurara que BlossomGreer nada significava para ele. O que selou o destino do casal, contudo, foi o fato de Richard não ter uma explicação para o caso. Parecia tão espantado e incrédulo quanto Armaiti. E isso a amedrontou. Se não havia motivo, não havia insatisfação que justificasse sua infidelidade; então, a resposta era que alguma coisa inquieta e indomável vivia dentro de Richard. Armaiti considerou a hipótese inaceitável, uma ameaça misteriosa à vida dos dois como casal, cuja normalidade semsurpresas constituía o maior triunfo de ambos. — E se acontecer de novo? — perguntou ao marido. — Não vai acontecer — gaguejou ele.
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