MAE Mobley nasceu num domingo de manhãzinha, em agosto de 1960. Um bebê de igreja,* como gostamos de dizer. Cuidar de nenês brancos é isso que eu faço, e tudo mais que tem a ver com cozinha e limpeza. Em toda a minha vida, criei dezessete crianças. Sei fazer os bebês dormir, parar de chorar e usar a privada muito antes das mães deles saírem da cama de manhã. Mas nunca tinha visto um bebê gritar como Mae Mobley Leefolt. No primeiro dia, passo pela porta, e lá está ela, vermelha como uma pimenta e gemendo de eólica, brigando com a mamadeira como se fosse um nabo podre. Dona Leefolt, essa olhando apavorada pra filha. “O que eu estou fazendo de errado? Por que não consigo fazer isso parar?” Church baby, em inglês— bonequinho de pano que costumava ser dado para brincar aos bebês que acompanhavam os pais aos cultos na igreja. Confeccionando com lenços, esses bonequinhos não faziam barulhos ao cair no chão e, assim, não interrompiam os sermões. (N.T.) Isso? Essa foi a minha primeira dica: tem alguma coisa errada aqui. Então, peguei aquele bebê cor-de-rosa e barulhento nos braços. Embalei-o no meu quadril pra soltar os gases, e não levou dois minutos pra Nenezinha parar de gritar, começar a sorrir pra mim do seu jeitinho. Mas dona Leefolt, bem, ela não pegou mais a filhinha no colo aquele dia. Já vi um monte de mulher ficar triste depois de dar à luz. Acho que pensei que era isso. Uma coisa sobre a dona Leefolt: além de fazer cara feia o tempo todo, ela é magricela. As pernas dela são tão raquíticas que parece que começaram a crescer na semana passada. Vinte e três anos, e é seca como um moleque de quatorze. Até o cabelo dela é fino, castanho, ralinho. Bem que ela tenta dar um trato nele, mas só consegue deixar ele ainda mais fino. O rosto dela tem o formato igual ao daquele diabo vermelho na caixa de balas de canela, queixo pontudo e tudo mais. É verdade: com o corpo tão ossudo e cheio de pontas, não é de admirar que não consiga acalmar o bebê.
Bebês gostam de gordura. Gostam de enterrar a cara no sovaco da gente e pegar no sono. Gostamtambém de pernas grandes e grossas. Isso eu sei. Quando tinha um aninho, Mae Mobley não parava de me seguir aonde quer que eu fosse. Batia cinco horas, e lá tava ela, pendurada no meu sapato Dr. Scholl, se arrastando pelo chão, gritando como se eu não fosse voltar nunca mais. Dona Leefolt, ela olhava com o olho apertado pra mim, parecia até que eu tinha feito alguma coisa errada, e desgrudava o bebê chorão do meu pé. Acho que é o risco que se corre, quando deixamos outra pessoa criar os nossos filhos. Agora Mae Mobley está com dois anos. Seus olhos são grandes e castanhos, e os cabelos, cacheados da cor do mel. Mas a careca na parte de trás da cabeça meio que estraga tudo. Quando tá incomodada, ela tem o mesmo vinco da mãe entre as sobrancelhas. Elas são bem parecidas, exceto que Mae Mobley é muito gorda. Não vai ser nenhuma rainha da belezura, não. Acho que isso incomoda a dona Leefolt, mas Mae Mobley é o meu bebê preferido. PERDI MEU MENINO, Treelore, logo antes de começar a trabalhar pra dona Leefolt. Ele tinha vinte e quatro anos. A melhor época da vida de uma pessoa. Foi muito pouco tempo nesse mundo. Ele tinha um apartamentozinho lá na Foley Street. Namorava uma moça muito boazinha chamada Francês, e desconfio que iam se casar, mas ele era devagar com esse tipo de coisa. Não porque tava procurando coisa melhor, mas porque era do tipo que gosta de pensar. Usava uns óculos grandes e ha o tempo todo. Até começou a escrever um livro sobre como é ser um homem de cor que vive e trabalha no Mississippi.
Senhor, como isso me deixava orgulhosa. Mas uma noite ele tava trabalhando até tarde no moinho Scanlon-Taylor, carregando toras de madeira pro caminhão, as lascas e os espinhos furando as luvas dele até a carne. Ele era franzino demais pra esse tipo de serviço, magrinho demais, mas precisava do trabalho. Tava cansado. Chovia. Ele escorregou na plataforma de carregamento e caiu na pista. O motorista do trator não viu e esmagou os pulmões dele, sem dar tempo dele se mexer. Quando fiquei sabendo, ele tava morto. Foi nesse dia que todo o meu mundo ficou preto. O ar parecia preto, o sol parecia preto. Fiquei deitada na cama, olhando pras paredes pretas da minha casa. Minny vinha todo santo dia ver se eu ainda tava respirando, me dava comida pra me manter viva. Levei três meses pra olhar de novo pela janela, pra ver se o mundo ainda tava no lugar. Fiquei surpresa quando vi que a vida do meu filho tinha parado, mas o mundo não. Cinco meses depois do enterro, eu me arrastei pra fora da cama. Vesti meu uniforme branco e coloquei minha pequena cruz de ouro no pescoço e fui trabalhar na casa da dona Leefolt, pois ela tinha acabado de ganhar uma nenezinha. Mas não demorou pra eu ver que uma coisa em mim tinha mudado. Uma semente amarga tinha sido plantada dentro de mim. E eu não me sentia mais tão mansa. — AGORA ARRUME A CASA e depois prepare um pouco daquele salpicão de frango — disse dona Leefolt. É dia do clube do bridge. Toda última quarta-feira do mês. Claro que eu já deixei tudo pronto — fiz o salpicão de manhã, passei a toalha de mesa ontem. Dona Leefolt também viu eu fazendo isso. Ela só tem vinte e três anos e já gosta de ouvir o som da própria voz me dizendo o que fazer.
Ela já tá vestida com o vestido azul que passei hoje de manhã, aquele que tem sessenta e cinco pregas na cintura, tão pequenininhas que preciso apertar os olhos por trás dos óculos pra conseguir passar direito. Não odeio muita coisa na vida, mas eu e aquele vestido, a gente não se dá bem. — E não permita que Mae Mobley apareça na sala. Vou lhe dizer uma coisa, estou furiosa com ela: rasgou meus papéis de carta em cinco mil pedacinhos, e preciso fazer quinze bilhetes de agradecimento para a Liga Júnior… Arrumo isso e aquilo pras madames amigas dela. Coloco na mesa os cristais finos, depois os talheres de prata. Dona Leefolt não monta uma mesinha pequena de jogo que nem as outras madames. A gente arruma tudo na mesa de jantar. Coloco uma toalha na mesa pra tapar a rachadura em formato de L, levo aquele centro de mesa com flores vermelhas pro aparador do lado, pra esconder onde a madeira tá toda arranhada. Dona Leefolt gosta das coisas finas quando dá um almoço. Vai ver quer compensar a casa pequena. Eles não são gente rica, isso eu sei. Gente rica não se esforça tanto. Estou acostumada a trabalhar pra casais jovens, mas acho que essa é a menor casa onde já trabalhei. Só tem um andar. O quarto dela e do seu Leefolt, nos fundos, tem um tamanho bom, mas o quarto da Nenezinha é minúsculo. A sala de jantar e a sala de estar meio que se juntam. Só tem dois banheiros, o que é um alívio, porque já trabalhei em casas onde eram cinco ou seis. Levava um dia inteiro só pra limpar os banheiros. Dona Leefolt só me paga noventa e cinco centavos a hora, há anos eu não recebia tão pouco. Mas depois que Treelore morreu, peguei a primeira coisa que apareceu pela frente. Meu senhorio não ia esperar muito mais. Mas mesmo sendo pequena, dona Leefolt arrumou a casa no capricho. Ela é boa com a máquina de costura. Aquilo que não pode comprar novo, ela compra só um pouco de material e costura ela mesma uma cópia. A campainha toca e eu atendo.
— Olá, Aibileen — diz dona Skeeter, pois ela é o tipo de pessoa que fala com as empregadas. — Como vai? — Olá, dona Skeeter. Vou bem. Nossa tá quente aí fora. Dona Skeeter é mesmo alta e magra. O cabelo dela é loiro e cortado curto, acima dos ombros, porque ela passa o ano todo fazendo permanente. Tem vinte e três anos ou perto disso, o mesmo que a minha patroa e as outras. Ela coloca sua agenda sobre a cadeira por um instante, meio incomodada com as próprias roupas. Tá usando uma blusa branca de renda abotoada como uma freira, sapatos baixos, acho que pra não parecer ainda mais alta. Sua saia azul está um pouco folgada na cintura. Sempre parece que alguém diz pra dona Skeeter o que vestir. Ouço a dona Hilly e a mãe dela, a dona Walter, estacionando e beliscando a buzina. Dona Hilly mora a dez passos daqui, mas vem sempre de carro. Abro a porta, e ela passa por mim sem dizer uma palavra, e então sei que está na hora de acordar Mae Mobley da sua soneca. Assim que entro no quartinho dela, Mae Mobley sorri pra mim e estica os bracinhos gorduchos. —Já tá de pé, Nenezinha? Por que não gritou por mim? Ela ri se sacode um pouco, feliz, enquanto espera eu tirá-la dali. Dou um abraço apertado nela. Acho que não recebe muitos abraços apertados como esse depois que vou pra casa. Volta e meia, eu chego pra trabalhar e encontro ela aos gritos no berço, a dona Leefolt ocupada na máquina de costura, revirando os olhos como se um gato vai lio estivesse miando na porta de tela. Ora, a dona Leefolt se veste bem todos os dias. Sempre tá maquiada, tem uma garagem coberta, uma Frigidaire de duas portas com um congelador embutido. Se alguém vê ela no mercadinho Jitney 14, não imagina que ela sai e deixa a filha gritando no berço desse jeito. Mas a empregada sempre sabe. Hoje é um bom dia. E essa menina é só sorriso.
Eu digo: — Aibileen. Ela diz: — Ai-bee. Eu digo: — Amor. Ela diz: — Amor. Eu digo: — Mae Mobley. Ela diz: — Ai-bee. E, então, ela ri sem parar. Ela se diverte muito falando, e, preciso dizer já tá mais do que na hora. Treelore também não falou nada até os dois anos. Mas quando ele entrou na terceira série, começou a falar melhor que o presidente dos Estados Unidos, voltava pra casa e usava palavras como conjugação e parlamentar. Ele entrou na sétima série e a gente começou a jogar um jogo que era assim: eu falava uma palavra simples e ele precisava dizer a mesma palavra, só que de maneira difícil. Eu dizia gato, ele dizia felino doméstico, eu dizia liquidificador, ele dizia rotunda motorizada. Um dia, eu disse Crisco* * Marca americana de gordura à base de óleo vegetal. (N.t.) Ele cocou a cabeça. Não conseguia acreditar que eu tinha ganhado o jogo com uma palavra simples como Crisco. Acabou virando uma brincadeira secreta entre a gente, querendo dizer alguma coisa que você não pode fazer parecer melhor, por mais que tente. Começamos a chamar o pai dele de Crisco, pois não tem como fazer parecer melhor um homem que abandonou a família. Além do quê, ele era o maior inútil que já se viu. Carrego Mae Mobley no colo até a cozinha e coloco ela na cadeirinha alta, pensando nas duas tarefas que preciso fazer hoje, antes da dona Leefolt ter um ataque: separar os guardanapos que começaram a puir e arrumar a prataria no armário. Nossa, vou precisar fazer isso enquanto as madames tão aqui, acho. Levo a bandeja com ovos recheados até a sala de jantar. A dona Leefolt tá sentada na cabeceira da mesa, e no lado esquerdo dela tá a dona Hilly Holbrook e a mãe da dona Hilly, a dona Walter, que a dona Hilly trata sem nenhum respeito. E então, no lado direito da dona Leefolt, tá a dona Skeeter.
Passo os ovos, começando com a velha dona Walter porque ela tem mais idade. Tá quente aqui, mas ela tá com uma blusa marrom grossa jogada nos ombros. Ela pesca um ovo e quase deixa ele cair, porque tá ficando com tremedeira. Então, vou até a dona Hilly, e ela sorri e pega dois. A dona Hilly tem um rosto redondo e cabelo castanho-escuro penteado como uma colmeia. A pele dela é morena, com sardas e pintas. Ela usa muito xadrez vermelho. E tá ficando com um traseiro e tanto. Hoje, já que tá tão quente, ela tá com um vestido vermelho sem manga, largo na cintura. Ela é uma dessas mulheres adultas que ainda se vestem como uma menininha, com laços e chapéus combinando e coisas do tipo. Não é a minha favorita. Eu me aproximo da dona Skeeter, mas ela torce o nariz pra mim e diz “Não, obrigada”, pois ela não come ovos. Digo isso pra dona Leefolt todas as vezes que ela vai receber o clube do bridge, e mesmo assimela manda eu fazer os ovos. Ela tem medo que a dona Hilly fique decepcionada. Finalmente é a vez da dona Leefolt. Ela é quem tá recebendo, então ela se serve por último. Assim que termino, a dona Hilly diz: — Com licença… — e pega mais dois ovos pra ela, o que não me surpreende. — Adivinhem quem eu encontrei no salão de beleza? — diz a dona Hilly pras outras. — Quem? — pergunta a dona Leefolt. — Célia Foote. E sabem o que foi que ela me perguntou? Se ela podia ajudar com o Baile este ano. — Que bom — diz a dona Skeeter. — Bem que precisamos. — Não é para tanto, não precisamos, não. Eu disse a ela: “Célia, para participar é preciso ser membro da Liga ou uma patrocinadora”.
O que ela acha que a Liga jackson é? A “Casa da Mãe Joana”? — Não vamos aceitar não filiados este ano? Mas com um evento tão grande? — pergunta a dona Skeeter. — Bem, sim — diz a dona Hilly. — Mas eu não ia dizer isso para ela. — Não posso acreditar que Johnny se casou com uma moça tão cafona — diz a dona Leefolt, e a dona Hilly concorda. Ela começa a distribuir as cartas do bridge. Sirvo colheradas do salpicão e sanduíches de presunto, não dá pra não ouvir a conversa. Só temtrês coisas que são assunto pras madames: seus filhos, suas roupas e suas amigas. Eu ouço a palavra Kennedy e sei que não tão discutindo política. Tão falando sobre o que a dona Jackie tava vestindo na televisão. Quando chego na dona Walter, ela pega só metade de um sanduíche. — Mamãe — grita a dona Hilly pra ela —, pegue mais um sanduíche. A senhora está magra como um poste telefônico. — A dona Hilly olha pro restante da mesa: —Vivo dizendo para a mamãe: se aquela Minny não sabe cozinhar, simplesmente a demita. Nisso, minhas orelhas ficam em pé. Tão falando da empregada. Eu sou a melhor amiga da Minny. — Minny cozinha bem — diz a velha dona Walter. — Eu é que não tenho mais tanta fome quanto antes. Minny é praticamente a melhor cozinheira do condado de Hinds, talvez até de todo o Mississippi. O Baile Beneficente da Liga Júnior acontece todo outono, e elas pedem pra ela fazer dez tortas de caramelo pra vender. Ela devia ser a empregada mais preciosa do Estado. O problema é: Minny adora bater boca. Sempre retruca. Um dia é o gerente branco no mercadinho Jitney Jungle, no dia seguinte é o marido dela, e uma hora acaba que é a madame branca pra quem ela trabalha. A única razão por que ela trabalha com a dona Walter há tanto tempo é que a dona Walter é surda como uma cabeça de veado empalhada.
— Acho que a senhora está desnutrida, mamãe — grita a dona Hilly. — Aquela Minny não está alimentando a senhora direito para poder roubar o pouco que me resta de herança. — A Sra. Hilly se levanta da cadeira resmungando. —Vou até o banheiro. Cuidem dela, caso ela caia morta de fome. Quando a dona Hilly sai, a dona Walter diz bem baixinho: — Aposto que você ia adorar. Todo mundo faz de conta que não ouviu nada. Melhor eu ligar pra Minny hoje à noite e contar pra ela o que a dona Hilly disse. Na cozinha, a Nenezinha tá de pé na cadeirinha, com a cara toda lambuzada de suco. Assim que apareço, ela sorri. Ela não se incomoda de ficar sozinha, mas detesto deixar ela ali muito tempo. Sei que ela fica olhando pra porta, quietinha, até eu voltar. Acaricio a cabecinha macia dela e volto pra servir o chá gelado. A dona Hilly tá de volta no seu lugar, parecendo toda entretida com outras coisas agora. — Oh, Hilly, eu preferia que você usasse o lavabo — diz dona Leefolt, arrumando as cartas na mão. — Aibileen só limpa o banheiro de trás depois do almoço. Hilly empina o queixo. Então, ela dá um dos seus “hum-hums”. Ela tem um jeito muito delicado de limpar a garganta sem ninguém perceber o que ela fez. — Mas o lavabo é onde a criada vai — diz a dona Hilly. Ninguém diz nada por um segundo. Então, a dona Walter balança a cabeça pra cima e pra baixo, como que explicando tudo. — Ela está chateada porque a negra usa aquele banheiro o nós também. Senhor, essa confusão de novo não.
Todas elas olham pra mim enquanto tou arrumando a gaveta das pratarias no aparador auxiliar, e eu sei que é hora de dar no pé. Mas, antes de eu conseguir colocar ali a última colher, a dona Leefolt me olha e diz: —Vá pegar mais chá, Aibileen. Faço como ela diz, mesmo se as xícaras delas tão cheias até a borda. Fico em pé na cozinha um minuto, mas não tenho mais nada pra fazer ali. Preciso ficar na sala de jantar pra poder terminar de ajeitar a prataria. E ainda tenho que ver o armário dos guardanapos hoje, mas ele fica no corredor, bem perto de onde elas tão sentadas. Não quero ter que ficar até mais tarde só porque a dona Leefolt tá jogando carta. Espero uns minutos, limpo uma bancada. Dou mais presunto pra Nenezinha e ela engole tudo. Finalmente, vou pé ante pé pro corredor, rezando pra ninguém me ver. Todas as quatro tão com um cigarro numa mão e as cartas na outra. — Elizabeth, se você pudesse escolher — ouço a dona Hilly dizer —, você não preferiria que elas fizessem as necessidades fora da casa? Sem fazer barulho, abro a gaveta dos guardanapos, mais preocupada com a possibilidade da dona Leefolt me ver do que com o que elas tão falando. Essa conversa não é nenhuma novidade pra mim. Em tudo que é lugar da cidade tem um banheiro pra gente de cor, e na maior parte das casas também. Mas olho pra lá e a dona Skeeter tá olhando pra mim, e eu congelo, achando que vou me meter emencrenca. — Um de copas — diz a dona Walter. — Não sei — diz a dona Leefolt, franzindo a testa pras suas cartas. — Raleigh está começando o próprio negócio, e as declarações de imposto de renda só vão começar a ser feitas daqui a seis meses… as coisas estão bem apertadas para nós agora. Dona Hilly fala devagar, parece que tá espalhando uma cobertura num bolo. — Diga a Raleigh que todo centavo que ele gastar nesse banheiro ele vai recuperar quando vocês venderem a casa. — E balança a cabeça, concordando com ela mesma. — E todas essas casas que estão sendo construídas sem dependências de empregada? É simplesmente um perigo. Todo mundo sabe que elas transmitem doenças diferentes das nossas. Eu dobro. Pego uma pilha de guardanapos.
Não sei por que, mas de repente quero ouvir o que a dona Leefolt tem a dizer sobre o assunto. Ela é minha patroa. Acho que todo mundo se pergunta o que a patroa pensa da gente. — Seria bom — diz dona Leefolt, dando uma tragada no cigarro — que ela não precisasse usar o banheiro da casa. Três de espadas para mim. — Foi exatamente por isso que criei o Projeto de Higiene para Empregadas Domésticas — diz dona Hilly. — Uma medida para prevenir doenças. Fico surpresa de ver como minha garganta se aperta. É uma vergonha eu ter aprendido a me manter submissa há tanto tempo. A dona Skeeter parece realmente atrapalhada. — Projeto… o quê? — Um projeto de lei que prevê que toda casa branca tenha um banheiro separado para as empregadas de cor. Até notifiquei o secretário de saúde do Mississippi para ver se ele apoia a ideia. Eu passo. Dona Skeeter, ela tá olhando torto pra dona Hilly. Ela coloca as cartas sobre a mesa, viradas pra cima, e lasca: — Talvez a gente devesse simplesmente construir um banheiro lá fora para você, Hilly. E, Senhor, a sala fica em silêncio. A dona Hilly diz: — Não acho apropriado você fazer brincadeiras sobre a situação das pessoas de cor. Não, se quiser continuar como editora da Liga, Skeeter Phelan. Dona Skeeter esboça um sorriso, mas dá pra ver que ela não tá achando nada engraçado. — O quê? Você… me expulsaria? Por discordar de você? Dona Hilly levanta uma sobrancelha: — Faço o que for preciso para proteger a nossa cidade. É a senhora, mamãe. Eu vou pra cozinha e só saio de lá quando ouço a porta da frente se fechar atrás do traseiro da dona Hilly. QUANDO VEJO QUE A DONA HILY já foi, coloco Mae Mobley no cercadinho, arrasto a lata de lixo até a rua porque hoje é dia do caminhão de lixo passar. Na entrada de carros, dona Hilly e a louca da mãe dela dão ré e quase passam com o carro por cima de mim, então pedem desculpas, todas boazinhas. Entro na casa, feliz por não estar com duas pernas quebradas.
Quando chego na cozinha, a dona Skeeter tá ali. Tá debruçada sobre a bancada, com o rosto sério, mais sério até do que o normal. — Olá, dona Skeeter. Precisa de alguma coisa? Ela olha lá pra fora, onde dona Leefolt tá conversando com dona Hilly pela janela do carro. — Não, estou só… esperando. Seco uma bandeja com um pano de prato. Quando dou uma olhada, ela ainda tá com os olhos preocupados fixos naquela janela. Ela não parece com as outras madames, por ser tão alta. Ela temas maçãs do rosto bem salientes. Olhos azuis que olham pra baixo, o que deixa ela com um ar meio tímido. Não tem barulho nenhum aqui, a não ser o radinho na bancada, tocando a estação de músicas gospel. Eu queria que ela fosse embora. — É o sermão do reverendo Green que você está ouvindo? — pergunta ela. — Sim, senhorita, é. Dona Skeeter sorri. — Isso me lembra muito a babá que eu tinha quando criança. — Oh, eu conhecia Constantine — falei. Dona Skeeter traz os olhos da janela pra mim. — Ela que me criou, sabia? Fiz que sim, arrependida de não ter ficado de boca calada. Conheço bem esse tipo de situação. — Tenho tentado conseguir o endereço da família dela em Chicago — diz ela —, mas ninguém sabe me informar nada. — Eu também não sei, senhorita. Dona Skeeter leva os olhos de volta pra janela, pro Buick da dona Hilly. Balança a cabeça, só um pouco. — Aibileen, aquela conversa lá dentro… a conversa da Hilly, quero dizer… Pego uma xícara de café, começo a secar ela com muita força com o meu pano de prato.
— Você, às vezes, deseja que fosse possível… mudar as coisas? — pergunta ela. E eu não consigo me segurar. Olho pra cara dela. Porque essa é uma das perguntas mais idiotas que eu já ouvi na vida. Ela faz uma cara confusa, desgostosa, como quem colocou sal no café em vez de açúcar. Volto pra minha louça suja, pra ela não ver que tou revirando os olhos. — Oh, não, senhorita, tá tudo bem. — Mas aquela conversa lá sobre o banheiro… — E bem nessa palavra a dona Leefolt entra na cozinha. — Oh, aí está você, Skeeter. — Ela olha pra nós duas de um jeito meio estranho. — Desculpe… interrompi algo? — Nós duas ficamos quietas, nos perguntando o que será que ela ouviu. — Preciso correr — diz dona Skeeter. —Vejo você amanhã, Elizabeth. — Ela abre a porta dos fundos e diz: — Obrigada, Aibileen, pelo almoço. — E se vai. Eu vou até a sala de jantar, começo a limpar a mesa do bridge. B bem como eu sabia que ela ia fazer, a dona Leefolt chega por trás de mim, com seu sorriso de quem tá chateada. O pescoço dela tá esticado parece que ela tá se preparando pra me perguntar uma coisa. Ela não gosta de me ver falando com as amigas quando não tá por perto, nunca gostou. Sempre quer saber o que a gente tava falando. Passo direto por ela na direção da cozinha. Coloco a Nenezinha na cadeira alta e começo a limpar o fogão. Dona Leefolt vem atrás de mim, examina um pote de Crisco, larga ele de novo. A Nenezinha estica os braços pra mãe, mas a dona Leefolt abre um armário, faz que não vê. Então, ela bate a porta do armário, abre outra.
Até que só fica ali, parada. Eu tou no chão, de quatro. Não demora, a minha cabeça tá tão enfiada no forno que parece que tou tentando me matar com gás. — Parece que você e a Srta. Skeeter estavam falando muito a sério sobre alguma coisa. — Não, madame, ela só… me perguntou se eu queria umas roupas velhas — digo, e pelo somparece que tou num poço. Meus braços já tão sujos de gordura. Tem cheiro de sovaco aqui. Não demora tem suor correndo embaixo do meu nariz, e, cada vez que eu coco, fico com um pouco de sujeira no rosto.
.