A umas cinco ou seis léguas do Porto, e no fundo montanhoso de uma colina, surge, como por encanto, de entre as bouças de pinheiros e carvalhos, a pequena mas pitoresca aldeia de… forma ela um gracioso montão de pequenas casas, com as suas paredes brancas de neve e os seus telhados vermelhos de sangue, sobrepujados por outras tantas chaminés, das quais respiram de vez em quando uns rolos esbranquiçados de fumo, que se desfazem nos ares ao mais leve sopro da viração. Do centro deste interessante grupo sobressai, majestosa, uma igreja de modesta e simples arquitetura, do cimo da qual se ergue, desafogada, uma grande cruz de granito, que eleva para o céu os seus toscos braços enegrecidos pelo tempo e pelos anos. É belo e cheio de poesia tudo aquilo! Aquele acervo de modestas habitações, tão estreitamente aconchegadas umas às outras, assemelhamse a pobres e tímidas fugitivas que, abandonando pressurosas o bulício das cidades, ali vieramapertar-se num terno abraço, procurando a paz e o descanso eterno em derredor daquela carinhosa mãe, que as abriga com a sua sombra e as protege do alto com os braços abertos, como para as livrar de qualquer perigo. Depois, ao longe, lá se levanta ainda sobre a relva dos campos uma ou outra casa, que parece espreitar invejosa, por entre a folhagem verdejante do arvoredo, aquela feliz fraternidade das suas companheiras. Enfim, as pequenas florestas, as viçosas planícies, as pitorescas encostas da colina, os estreitos e límpidos regatos serpenteando por toda a parte, o trinado alegre das aves na alvorada, o canto monótono e sentido do pegureiro, ao pôr do Sol, quando conduz os rebanhos, o mugido lastimoso das vacas que pascem, e uma outra infinidade de harmonias da natureza em toda a sua plenitude de rusticidade, dão àqueles lugares um aspeto de paz e felicidade inconcebíveis. Em uma das pequenas casas que mais se aconchegavam à igreja, e distanciada desta apenas por umpequeno largo, a que chamam adro, habitava em outro tempo, em companhia da sua avó, única parente que então lhe restava, a mais alegre, linda e engraçada rapariga daqueles arredores. Chamava-se Rosa, e tinha apenas dezoito anos. Não era uma dessas corpulentas mocetonas, de faces vermelhas e roliças, de grandes olhos castanhos e cabelos de azeviche, de que o nosso belo Minho nos dá tão apreciáveis exemplares. A Rosa do Adro, como lhe chamavam, era, muito ao contrário, alta e de compleição delicada; tinha o rosto umpouco comprido, as faces aveludadas e cobertas de um ligeiro rosado, os lábios finos e vermelhos, os dentes pequenos e brancos, os olhos cor do céu, umas vezes travessos, outros meigos e de uma languidez angelical, os cabelos louros e nédios, e as mãos e os pés pequenos e bem conformados. Era um conjunto de belezas e graças que enfeitiçavam os olhares mais descuidados e indiferentes. Fazia gosto vê-la ao domingo, na missa do dia, vestida com a sua saia baeta-crepe, a cabeça caprichosamente envolta num lenço de cambraia, cuja alvura mais deixava sobressair o alourado dos seus cabelos e o rosado das faces, os virgíneos seios cuidadosamente recatados por um grande lenço de flores vermelhas, simetricamente encruzado, e cujas pontas vinham unir-se, por um nó, atrás, na cintura delicada e flexível, já apertada por um colete de fustão amarelo, salpicado de pequenas flores encarnadas, os braços cobertos até aos pulsos pelas mangas largas de uma camisa alvíssima e os pequenos pés semi-calçados num as apuradas chinelas de duraque com biqueiras de verniz. Quando ela e a sua avó, dirigindo-se para a igreja, apareciam no adro, um rumor surdo, uma exclamação de alegria exalava-se de todas as bocas. “Aí vem a Rosa do Adro!” — diziam. E, no mesmo instante, todos os olhares, todas as atenções se projetavam na graciosa rapariga, que, com o sorriso nos lábios, ia atravessando os grupos de povo, respondendo com um gracejo às lisonjas dos velhos, às banalidades amorosas dos rapazes, e aos elogios, nem sempre sinceros, das vizinhas e amigas. E, enquanto os sons da campainha não chamavam à oração, reunia-se a um qualquer grupo de raparigas, com as quais conversava, entretanto que a sua avó, entrando no templo, ia ajoelhar diante do altar da nossa Senhora, a fazer-lhe as suas costumadas orações e a pedir-lhe mil bênçãos para a querida neta. Terminada a missa, Rosa entretinha-se no adro a conversar os rapazes, que, azafamados, e depois de uma renhida questão de “primeiro vou eu e depois irás tu”, procuravam à porfia ocasião propícia de se lhe aproximarem, esforçando-se cada um por captar-lhe mais provas de simpatia e amor. Ela, porém, sem escolha nem deferência, com todos falava, com todos se ria, sem contudo demonstrar a mais leve predileção por qualquer deles. Depois, à tarde, quando os rapazes e raparigas vinham reunir-se em frente da sua pequena habitação, formando aí um dos seus prediletos bailados, era Rosa, entre todas, a que mais se distinguia, já pela sua voz sonora e engraçados improvisos, já pelo garbo e requebros sedutores com que dançava. Passados os domingos, pela semana adiante, era sempre a mesma, alegre e folgazã. Sentada à pequena janela da sua casa, trabalhando, a sua voz melodiosa não deixava sequer ummomento de se fazer ouvir, indo o seu eco perder-se ao longe, nas quebradas dos montes; e, se qualquer campónio passava e lhe dirigia alguma graça inocente, ela sempre risonha, não o deixava sem uma resposta zombeteira, com o que ele se ia vangloriado de contente. Não havia esfolhada, sarau ou festa para que não fosse convidada, sendo sempre a mais obsequiada em toda a parte onde aparecia. Finalmente, a Rosa do Adro era a alegria e o enlevo de toda a gente. A rainha, o tudo daqueles lugares. Quanto ao seu viver doméstico, era ele o mais simples e regular possível. Só com a sua avó, não carecia de grandes haveres para se sustentar a si e a ela.
Não tinham o mais pequeno rendimento, mas o trabalho de Rosa dava o suficiente para que ambas pudessem viver sem privações de espécie alguma. A bela rapariga era costureira de profissão, e, como por aqueles arredores não havia quem, melhor do que ela trabalhasse ou fizesse um vestido, uma jaliota, uma capa ou outro qualquer adorno feminino, não lhe faltava por isso nunca que fazer. Além disso, como tivesse um gosto especial para aquele género de trabalhos, tornara-se de há muito a mais acreditada modista do pequeno mundo elegante da localidade, sendo ela a que inventava as modas e as punha em prática nas obras que lhe mandavam fazer, consistindo tais novidades em dar esta ou aquela forma a qualquer objeto de vestuário, e em aumentar ou diminuir uma prega, um folho ou uma fita num a saia, vestido, ou capa. Relativamente a namoros, como geralmente se diz, Rosa não tinha nenhum certo. Falava com a mesma afabilidade e com o mesmo agrado para todos os rapazes da aldeia, sem contudo patentear mais pronunciada deferência por qualquer deles. O seu coração, despreocupado e juvenil, parecia inabalável e insensível aos mais ternos olhares e às mais ardentes declarações, e isso dava incentivo a algumas pessoas de a acoimarem de presunçosa e soberba. Rosa, porém, nada disso tinha: o seu coração, ainda pouco impressionável e talvez um tanto leviano, não era de fácil contento; entre os rostos dos rapazes que lhe faziam a corte não encontrara até então uns olhos que lhe impressionassem profundamente a alma, nem vira entreabrir-se uns lábios que proferissem duas palavras que lhe soassem sonoramente ao coração. Havia, porém, de chegar-lhe um dia a sua vez. CAPÍTULO 2 Cerca de um quarto de légua distante da igreja, e por detrás de um pequeno monte coberto de castanheiros velhos, estendia-se a rica herdade chamada do Capitão, nome que lhe viera dos avoengos do atual possuidor, o Sr. José da Costa, o mais abastado lavrador daquelas redondezas, homem honrado em toda a aceção da palavra, um pouco rude, sim, mas que nem por isso deixava de exercer, havia oito anos, com toda a consciência e retidão, o importante cargo de juiz eleito da freguesia, sendo, além disso, juiz, mesário ou irmão de quantas confrarias e irmandades ali existiam. Tinha ele um filho, único herdeiro dos seus haveres, chamado Fernando, a quem, por mera deliberação sua, mandara aos catorze anos para o Porto estudar preparatórios para se formar emmedicina. Fernando, que não passara até então de um pobre rapaz, sem ilustração nem pretensões, acostumou-se depois por tal forma aos hábitos da cidade e àquela vida livre e risonha de estudante, que dentro empouco tempo tornara-se o mais alegre, espirituoso e casquilho de todos os seus condiscípulos, pois que para tudo lhe dava de sobra a recheada bolsa do seu pai, sempre aberta às suas mais pequenas necessidades e exigências. Apesar disso, Fernando não desaproveitava o tempo, e, como era dotado de uma bela inteligência e aplicado ao estudo, tornara-se ao mesmo tempo um aluno distinto nas aulas que frequentava, recebendo por vezes, com grande contentamento dos seus pais, algumas distinções e prémios pelo seu bom aproveitamento. Aos vinte e três anos achava-se já matriculado no quarto ano da Escola Médica, tendo até ai dado provas bem patentes da sua feliz vocação para a carreira a que se destinava. É nesta época que precisamos travar com ele conhecimento. Terminara o ano letivo, e Fernando, depois de fazer os competentes actos, viera passar o resto das férias junto da sua família, a quem no ano antecedente não visitara por causa dos seus trabalhos, tomando-se por isso a sua visita mais apetecida e festejada. Seus pais receberam-no, como de costume, de braços abertos e com as lágrimas nos olhos, revendose com ufania naquele esbelto rapaz, que fazia o orgulho da família, não só pelo seu comportamento exemplar como pela posição distinta que em pouco deveria ocupar na sociedade. — Estás um rapaz como um cravo — dizia a boa da mãe do estudante, olhando-o de alto a baixo e com esses bigodes assim retorcidos à moda dos sobrados… — Aquelas senhoritas lá do Porto não hão de ter folgado nada contigo, hem, que digo eu? Fernando limitava-se a responder àqueles gracejos maternos com um ligeiro sorriso, enquanto que o seu pai exclamava com um ar bondosamente sério: — Anda, meu tratante, que me estás por um bom par de moedas; ainda assim, louvado Deus, não tens sido dos piores, não, porque enfim sempre estudaste e aproveitaste o tempo, que é o que eu desejava; lá do mais, vocês são rapazes, gostam de figurar e de estroinar… é verdade, eu na vossa idade fazia o mesmo; vamos, não tens sido dos piores… Para o ano, se Deus quiser, já teremos um cirurgião cá na aldeia, não é verdade? — Assim o creio, meu pai — respondeu o rapaz. — Para o ano termino o curso, e então já terá umfilho médico-cirurgião. — Eh, eh, eh! — respondeu o José da Costa, rindo-se — um médico-cirurgião, dizes tu; diz antes um mata-gente! Eh, eh, eh! — Oh, meu pai!… — A propósito — continuou o pai de Fernando, rindo-se. — Tu já serás capaz de dar aí um remédio para um doente cá da casa? — Então quem é que está doente? — Ora quem há de ser? É a pobre da nossa égua preta, que deu aqui há dias um tropeção e ficou com uma perna aleijada; já a levei ao ferrador, mas o diabo tanto lhe fez como nada. Fernando, ao ouvir estas palavras, soltou uma estrepitosa gargalhada. — Tu de que te ris? — perguntou o José da Costa um pouco sério por aquela desconsideração às suas palavras. — Pois o pai mandou-me aprender a curar gente, ou burros? — retorquiu Fernando, por entre uma nova risada. — Não julguei que houvesse a menor ofensa no meu pedido.
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