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A Ruptura – Christie Golden

o som da chuva batendo nos pelegos esticados que cobriam a pequena cabana lembrava um tambor tocado por uma ágil mão. A cabana era bem-feita, como todas as cabanas órquicas; nenhuma gota escorria para dentro. Mas nada conseguia expulsar o frio úmido do ar. Se o tempo virasse, a chuva se tornaria neve; de qualquer forma, a umidade já irrompia nos velhos ossos de Drek’Thar, deixando seu corpo enrijecido mesmo durante o sono. Mas dessa vez não era o frio que fazia com que o velho xamã se revirasse na cama. Eram os sonhos. Drek’Thar sempre tivera sonhos e visões proféticas. Era uma dádiva: a visão espiritual compensava a visão física que já não possuía. Mas, desde a Guerra Contra o Pesadelo, tal dádiva tornara-se perigosa. Seus sonhos pioraram durante aquele horrível período, e o sono não mais prometia descanso e restauração das forças, mas terror. Eles o tinham envelhecido e transformaramno, de um ancião ainda forte apesar da idade, em um velho frágil e rabugento. Ele tinha esperado que, com a derrota do Pesadelo, seus sonhos voltariam ao normal. No entanto, embora a intensidade deles tivesse diminuído, ainda eram muito, muito sombrios. Nos sonhos, ele podia ver. E neles, ansiava pela cegueira. Estava sozinho em uma montanha. O Sol parecia mais próximo que o normal, feio e vermelho e inchado, emprestando um tom sangrento ao oceano que lambia o sopé da montanha. Ele podia ouvir algo… um ribombar distante e cavo que o enervava e fazia sua pele se arrepiar. Jamais ouvira algo assim, mas sua forte conexão com os elementos lhe dizia que o som prenunciava alguma coisa terrivelmente errada. Pouco depois, as águas começaram a se agitar, encrespando-se furiosamente à base da montanha. As ondas subiram, ávidas, como se algo sombrio e horrendo se agitasse sob a superfície das águas encapeladas. Mesmo no topo, Drek’Thar sabia que não estava seguro, que nada estava seguro, não mais, e podia sentir a outrora sólida pedra se esfacelando sob os pés descalços. Seus dedos se curvaram, apertando o cajado dolorosamente, como se de alguma forma a arma retorcida fosse permanecer estável e protegê-lo frente a um oceano revolto e à montanha que desmoronava. E então, sem aviso, aconteceu. Uma fissura ziguezagueou pela terra sob o velho.


Ela se abriu como se para devorá-lo, e, rugindo, ele se atirou para fora do caminho. Soltou o cajado, e a arma caiu no abismo que se alargava. O vento aumentou de intensidade, e Drek’Thar se segurou em uma protuberância de rocha; tremendo com a terra, olhou, com olhos que fazia muito já não viam, para o oceano fervente cor de sangue lá embaixo. Enormes ondas se chocavam contra a face do penhasco, e Drek’Thar sentia os borrifos escaldantes quando subiam a uma altura impossível. De todos os lados vinham os gritos dos elementos, amedrontados, atormentados, clamando por ajuda. O ribombar aumentou de intensidade, e, diante do seu olhar aterrorizado, um trecho maciço de terra partiu a superfície do oceano vermelho, erguendo-se como se jamais fosse parar, tornando-se uma montanha, um continente, enquanto a terra sobre a qual Drek’Thar se postava rachava outra vez, e ele caiu na fissura, gritando e agarrando-se ao nada, caindo no fogo… Drek’Thar ergueu-se subitamente entre as peles que usava de cobertor, o corpo em convulsões e empapado de suor apesar do frio, as mãos agarrando o ar, os olhos, novamente cegos, arregalados e fixos nas trevas. — A terra irá chorar, o mundo se partirá! — gritou. Algo sólido tocou as mãos trêmulas, envolvendo-as e acalmando-as. Ele conhecia aquele toque. Era Palkar, o orc que cuidava dele havia muitos anos. — Pronto, pronto, Grande Pai Drek’Thar, foi só um sonho — disse o jovem orc. Mas Drek’Thar não se deixaria convencer tão facilmente, não depois de ter testemunhado aquela visão. Lutara no vale Alterac não havia muito tempo, até ser considerado velho e fraco demais para a função. Se já não podia servir lá, então serviria com suas habilidades xamânicas. Suas visões. — Palkar, eu preciso falar com Thrall — exigiu. — E com a Harmonia Telúrica. Talvez outros tenham visto o que eu vi… e se não tiverem visto, preciso avisá-los! Palkar, eu preciso! — Tentou se erguer. Uma das pernas cedeu sob seu peso. Frustrado, ele amaldiçoou seu corpo envelhecido. — O que o senhor precisa é de sono, Grande Pai. Drek’Thar estava fraco e, não importa o quanto lutasse, não conseguia oferecer resistência para escapar das mãos firmes de Palkar, que o empurravam de volta à cama. — Thrall… ele precisa saber — murmurou, batendo fracamente nos braços de Palkar. — Se o senhor acha que é necessário, amanhã iremos e contaremos a ele. Mas agora… descanse.

Exaurido pelo sonho e sentindo novamente o frio em seus ossos envelhecidos, Drek’Thar assentiu e permitiu que o jovem lhe preparasse uma bebida quente, com ervas que o fariam dormir em paz. Palkar era um bom enfermeiro, pensou, sua mente já vagando outra vez. Se Palkar achava que amanhã era bom o suficiente, então devia ser. Depois de terminar de beber, recostou a cabeça e, antes que o sono o envolvesse, se perguntou: Bom o suficiente para quê? Palkar se sentou e suspirou. Outrora, Drek’Thar tivera o pensamento afiado feito adaga, mesmo que seu corpo estivesse enfraquecendo com o peso dos anos. Outrora, Palkar teria enviado imediatamente um mensageiro a Thrall ao saber da visão de Drek’Thar. Só que não mais. No último ano, a mente afiada que soubera tanto, que contivera sabedoria quase além da compreensão, começara a enfraquecer. A memória do xamã, outrora mais confiável que qualquer registro escrito, passara a nublar-se. Havia lacunas em suas lembranças. Palkar ponderava: Drek’Thar enfrentara a Guerra Contra o Pesadelo e tinha suportado a inevitável decadência da idade. Entre esses dois inimigos, será que suas “visões” não haviam se deteriorado em meros sonhos? Há duas luas, Palkar lembrou-se com tristeza, ao se erguer para retornar à própria cama, Drek’Thar insistira para enviar mensageiros ao Vale Gris, pois um grupo de orcs estaria prestes a massacrar um grupo de taurens e druidas kaldorei pacíficos. Os mensageiros foram enviados e os avisos foram expedidos — mas nada acontecera. A única coisa que conseguiram ouvindo o velho orc foi tornar os elfos noturnos ainda mais desconfiados. Os orcs estavam a quilômetros de distância dali. Mas Drek’Thar insistira que o perigo era real. Tinha havido outras visões menos importantes, todas igualmente imaginárias. E agora isso. Certamente, se a ameaça fosse real, mais gente além de Drek’Thar saberia. Palkar não era um xamã inexperiente, e não tivera nenhum pressentimento sombrio. Ainda assim, manteria a palavra. Se Drek’Thar queria ver Thrall, o orc que já fora treinado por ele e agora era o chefe guerreiro da própria Horda que Drek’Thar ajudara a criar, Palkar prepararia seu mentor para a jornada pela manhã. Ou enviaria um mensageiro para que Thrall fosse até o velho. Seria uma jornada longa e difícil; Thrall estava em Orgrimmar, a um continente de distância de Alterac, onde Drek’Thar insistira em estabelecer seu lar. Mas Palkar suspeitava que aquilo não aconteceria.

Pela manhã, Drek’Thar sequer se lembraria que sonhara, que dirá do próprio sonho. Era o que acontecia comumente por aquela época. E Palkar não se alegrava com isso. A senilidade cada vez mais pronunciada de Drek’Thar feria o jovem e fazia com que ele desejasse ummundo diferente — mundo esse que Drek’Thar tinha certeza que estava prestes a se partir. O velho orc não sabia que, para aqueles que o amavam, o mundo já estava partido. Palkar sabia que era inútil lamentar o que se fora, o que o próprio Drek’Thar já fora um dia. De fato, a vida do velho fora mais longa que a maioria, e repleta de honra. Os orcs conheciam a adversidade e entendiam que havia um tempo de lutar e se enfurecer e um tempo para aceitar a realidade dos fatos. Desde pequeno cuidava de Drek’Thar, e jurara continuar a fazê-lo até o último suspiro do velho orc, não importa o quão doloroso fosse testemunhar o lento declínio do mentor. Ele se inclinou, apagou a vela com os dedos e cobriu o corpanzil com as peles. Do lado de fora, a chuva continuava a cair, batendo sua marcha contínua nos pelegos esticados. PARTE I A Terra Irá Chorar… 1 – Terra à vista! — gritou o vigia. O magro elfo sangrento se empoleirara na gávea, numa posição tão precária, concluiu Caerne consigo mesmo, que até uma gaivota pensaria duas vezes antes de pousar ali. O jovem elfo saltou com facilidade no cordame, as mãos e os pés enrolados na corda, aparentemente tão ágil quanto um esquilo. O tauren mais velho que observava a cena do convés balançou a cabeça discretamente. Estava feliz e, inegavelmente, um pouco aliviado com o fim da primeira parte de sua viagem a Nortúndria. Caerne Casco Sangrento, líder dos taurens, guerreiro e pai orgulhoso, não gostava de navios. Era uma criatura da terra boa e firme, como todo o seu povo. Tinham barcos, sim, mas pequenos, que ficavam a pouca distância da costa. Por algum motivo, até mesmo os zepelins, embora fossem uma engenhoca aérea dos goblins, pareciam mais seguros sob seus cascos do que uma embarcação. Talvez fosse o balanço contínuo e a possibilidade de o mar se tornar hostil em apenas um instante. Ou talvez fosse o tédio longo e constante de uma viagem como a que eles acabaram de fazer, da vila Catraca à tundra Boreana. Em todo caso, agora que o destino estava à vista, o velho touro se sentia contente. Como cabia a alguém de sua posição, viajava na capitânia da Horda, Ossos de Mannoroth. Ao lado dela, navegavam muitas outras embarcações, que agora continham apenas barris de água fresca (e alguns de cerveja ôgrica do Gordok, para melhorar a disposição da tripulação) e alimentos não perecíveis.

Caerne só desfrutaria da estadia em terra firme por mais ou menos um dia, enquanto os navios fossem carregados com suprimentos já desnecessários em Nortúndria e com os últimos soldados da Horda, que sem dúvida estariam ansiosos pela jornada de volta para casa. Seus olhos envelhecidos ainda não conseguiam enxergar a terra com aquela neblina forte, mas confiava na vista aguçada do acrobático batedor sin’dorei. Caerne caminhou até a amurada e apertou-a com os dedos, tentando enxergar o que havia além das brumas enquanto o navio se aproximava da terra firme. Sabia que, no sudeste, a Aliança decidira construir a bastilha Valentia numa das diversas ilhas que pontilhavam aquela área, o que facilitava a navegação. A Fortaleza Brado Guerreiro, seu destino, estava bem localizada e oferecia uma boa visão dos arredores — muito mais importante para a Horda do que ancoradouros profundos ou fácil acesso. Ou pelo menos já fora mais importante. O navio avançava devagar e com cuidado, e Caerne bufou. Estava começando a conseguir discernir navios através da neblina curiosamente densa — o esqueleto de outra embarcação que ou havia sido atacada ou encalhara ou as duas coisas; a inteligência deste capitão evidentemente inferior à da trolesa que comandava Ossos de Mannoroth. “Ancoradouro de Garrosh”, chamava-se o lugar, com pouca modéstia, e era tudo o que restava do veleiro daquele jovem e impulsivo orc. Fora quase totalmente destruído, e o vermelho das velas com o símbolo negro da Horda, outrora de cor vívida e brilhosa, agora estava rasgado e desbotado. A única atalaia que entrava agora no seu campo de visão estava igualmente danificada, e Caerne conseguia ver o contorno tosco do que já fora, sem dúvida, um grande salão. Garrosh, filho do famoso herói orc Grom Grito Infernal, fora o primeiro a atender ao chamado a Nortúndria. Caerne admirava o jovem por isso, mas o que vira e ouvira falar de seu comportamento era ao mesmo tempo encorajador e preocupante. O tauren não era tão velho a ponto de não se lembrar do fogo da juventude queimando em suas veias. Criara um filho, Baine, e vira o jovemenfrentar os mesmos problemas que ele próprio enfrentara; compreendia que, em parte, o comportamento de Garrosh era causado por nada mais incomum nem temporário do que a bravata de um jovem. O entusiasmo e a paixão dele eram contagiantes, Caerne tinha que admitir. No meio de uma terrível guerra, o orc conseguira mover os corações e as imaginações da Horda, e despertara umsenso de orgulho nacional que se espalhara como uma queimada. Garrosh era igual ao pai, tanto nas qualidades quanto nos defeitos. Grom Grito Infernal nunca fora conhecido pela sabedoria e paciência. Sempre agiu antes de pensar, violento e rápido, seu grito de guerra um brado estridente e perturbador que dera origem ao sobrenome. Fora ele quem bebera pela primeira vez o sangue do demônio Mannoroth — sangue esse que o maculara permanentemente, como fizera a todos os outros orcs que o beberam. Mas, no final, Grom conseguira se vingar. Apesar de ter sido o primeiro a bebê-lo e, portanto, o primeiro a ser vencido pela loucura e pela sede demoníaca, ele mesmo fora responsável pela cura de tais sintomas. Ele matara Mannoroth. E, comesse ato, os orcs começaram a recuperar seus grandes corações, força de vontade e ânimo.

Garrosh já tivera vergonha do pai, considerando-o fraco por ter bebido o sangue e também umtraidor. Thrall mudara a opinião do jovem, que passara a abraçar a linhagem. Talvez com empolgação demais, pensou Caerne, embora o entusiasmo de Garrosh tivesse trazido bons resultados para os guerreiros. O tauren se perguntava se Thrall, ao elogiar o bem que Grom realmente fizera, não teria minimizado em excesso os males que também causara. Thrall, Chefe Guerreiro da Horda e líder sábio e corajoso, já tivera mais de um conflito com o jovem e impetuoso Garrosh. Antes do desastre do Portão da Ira, Garrosh desafiara Thrall a uma batalha na arena de Orgrimmar. E, mais recentemente, Garrosh se deixara afetar pelas provocações raivosas de Varian Wrynn e avançara no rei de Ventobravo, com quem tivera um embate violento no coração da própria Dalaran. Ainda assim, Caerne não podia contestar o sucesso e a popularidade de Garrosh, nem o alegre zelo e a paixão com que a Horda respondera a ele. Sim, era verdade que, ao contrário do que diziamalguns boatos, o orc não havia derrotado sozinho o Flagelo, eliminado o Lich Rei e transformado Nortúndria num lugar seguro onde as crianças podiam brincar. Mas não se podia negar que ele liderara incursões milagrosamente bem-sucedidas. Devolvera à Horda um senso de orgulho feroz e um ardor pela batalha. Conseguira, todas as vezes, transformar o que parecia ser uma grande loucura em um sucesso encorajador. Caerne era inteligente demais para considerar tais atos meras coincidências ou meros acidentes. Realmente, Garrosh era tão ousado que poderia ser chamado de irresponsável, mas não foi a irresponsabilidade que trouxe os resultados obtidos pelo filho de Grom. Ele era exatamente aquilo do que a Horda precisara na sua hora de maior fraqueza e vulnerabilidade, e o tauren estava disposto a admiti-lo. — A gente não vai mais longe que isso — disse a capitã Tula a Caerne, gritando ordens para que a tripulação descesse os barcos menores. — A Fortaleza Brado Guerreiro não é longe, não, fica pro leste depois dessas colinas aí. Tula sabia muito bem do que estava falando, pois já velejara dali para a Vila Catraca inúmeras vezes nas últimas estações. Esse conhecimento fora o motivo pelo qual Thrall a chamara para ser capitã de Ossos de Mannoroth. Caerne assentiu. — Abra um dos barris de cerveja ôgrica para recompensar a tripulação pela diligência que demonstrou — sugeriu, em sua voz profunda e lenta. — Mas guarde um pouco para os guerreiros corajosos que viajarão para casa depois de tanto tempo. Tula ficou visivelmente mais alegre.

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