Ao pôr do Sol, soprara um vento fresco do mar. Era a estação em que os lavradores queimam o restolho dos seus campos, mas o vento tinha varrido a névoa que velava os céus, e a Via Láctea traçava um caminho branco pelo firmamento. O Merlim de Britânia estava sentado na Pedra da Vigia no cimo do Tor, com os olhos fixos nas estrelas. Mas, apesar de a glória celeste dominar a sua visão, ela não retinha toda a sua atenção. Os seus ouvidos estavam atentos a qualquer som que pudesse provir da habitação da suma sacerdotisa, nas encostas abaixo. Desde a madrugada que ela estava em trabalho de parto. Seria o quinto filho de Rian e as crianças anteriores tinham nascido facilmente. O parto não deveria estar a demorar tanto. As parteiras guardavam os seus mistérios, mas, ao pôr do Sol, quando se preparava para aquela vigília, tinha visto preocupação nos seus olhos. O rei Célio de Camulodunum, que tinha convocado Rian para o Grande Rito por causa dos seus campos inundados, era um homem grande, de cabelos louros e figura robusta, à maneira das tribos belgas que se tinham instalado nas terras orientais de Britânia, e Rian era uma pequena mulher morena, com o aspecto daquelas pessoas das terras encantadas que foram as primeiras a viver naquelas colinas. Não seria surpresa que a criança gerada por Célio fosse excessivamente grande para sair facilmente daquele ventre. Quando Rian descobriu que ele a emprenhara, algumas das sacerdotisas mais velhas tinham-na instigado a livrar-se da criança. Mas, fazê-lo seria negar a magia, e Rian disse-lhes que tinha servido a Deusa durante tempo suficiente para confiar nos seus desígnios. Que desígnios haveria no nascimento daquela criança? Os velhos olhos do Merlim percorriam os céus, procurando compreender os segredos escritos nas estrelas. O Sol encontrava-se agora no signo de Virgem, e a velha Lua, passando por ele, estivera visível no céu nessa manhã. Agora ocultara o seu rosto, abandonando a noite à glória das estrelas. O velho envolveu-se nas espessas pregas da sua capa cinzenta, sentindo nos ossos o frio da noite de Outono. Enquanto observava o curso da Ursa Menor pelo céu sem que chegassem notícias, percebeu que tremia não de frio, mas de medo. Lentas como ovelhas pastando, as estrelas moviam-se pelos céus. Saturno brilhava a sudoeste, no signo de Balança. À medida que as horas se arrastavam, ia-se desgastando a coragem da parturiente. Agora, a intervalos, saía um gemido de dor da cabana. Mas só com o despontar da madrugada, quando as estrelas se apagavam, um novo som fez o Merlim pôr-se de pé, de coração sobressaltado – o agudo vagido de protesto de uma criança recém-nascida. A oriente, o céu ia já empalidecendo com a chegada do dia, mas, lá no alto, as estrelas ainda brilhavam. O longo hábito fez o velho erguer o olhar para elas.
Marte, Júpiter e Vénus brilhavam emconjunção. Treinado nas disciplinas dos Druidas desde a juventude, registrou na sua memória as posições das estrelas. Depois, com um esgar queixoso, devido à rigidez das articulações, pôs-se de pé e, apoiando-se pesadamente no seu bastão entalhado, começou a descer a colina. A criança tinha parado de chorar, mas, quando o Merlim se aproximou da choupana do parto, sentiu como que um nó nas entranhas, porque se ouvia choro no interior. As mulheres afastaram-se quando ele correu o pesado cortinado que servia de porta. pois era o único homem com direito a entrar ali. Uma das sacerdotisas mais jovens. Ci-folla, estava sentada a um canto, cantarolando sobre a trouxa de roupas nos seus braços. O olhar do Merlim passou dela para a mulher que jazia na cama, e deteve-se, porque Rian, cuja beleza sempre proviera da sua graça em movimento, estava totalmente imóvel. Os seus cabelos negros espalhavam-se sobre a almofada; as suas feições angulosas começavam a adquirir o inconfundível vazio que faz a distinção entre a morte e o sono. – Como… – fez um pequeno gesto desamparado, esforçando-se por conter as lágrimas. Não sabia se Rian seria ou não sua filha, do seu próprio sangue, mas. para ele, ela tinha sido uma filha. – Foi o coração disse Ganeda, cujas feições. naquele momento, se assemelhavam dolorosamente às da mulher jazente, embora, na maior parte das vezes, a doçura da expressão de Rian sempre se tornasse fácil distingui-la das suas irmãs. – O parto demorou demasiado tempo. O coração não aguentou o esforço final para expulsar a criança do ventre. O Merlim aproximou-se da cabeceira da cama e olhou para o corpo de Rian e, um momento após, inclinou-se para traçar um sinal de bênção sobre a testa gelada. “Já vivi tempo de mais”. pensou entorpecidamente. “Era Rian que devia dizer os ritos por mim”. Ouviu Ganeda suspirar, atrás de si. – Diz-me, Druida, que destino preveem as estrelas para a criança-mulher que nasceu nesta hora? O velho voltou-se. Ganeda estava diante dele, com os olhos brilhantes de raiva e de lágrimas contidas. “Assiste-lhe o direito de perguntar isto”, pensou sombriamente.
Ganeda foi preterida emfavor da sua irmã mais nova quando a anterior suma sacerdotisa morreu. Supunha que a eleição recairia agora sobre ela. Então, o espírito que o habitava respondeu ao desafio dela. Pigarreou. – Assim falam as estrelas… – A voz tremia-lhe ligeiramente. A criança que nasceu na Volta do Outono, precisamente quando a noite dava lugar à madrugada, assistirá à Volta da Era, a porta entre dois mundos. O tempo do Carneiro passou, e governará o Peixe. A Lua oculta o seu rosto – esta donzela ocultará a lua que traz na fronte, e só em idade avançada alcançará o verdadeiro poder. Atrás dela fica a estrada que conduz às trevas e aos seus mistérios, diante dela brilha a luz crua do dia. – Marte está no signo do Leão, mas a guerra não a vencerá, porque é governada pela estrela da realeza. Para esta criança, o amor acompanhará a soberania, porque Júpiter anseia por Vénus. Emconjunção, a sua radiação iluminará o mundo. Nesta noite, todos eles se movem em direcção à Virgem, que será a sua verdadeira rainha. Muitos se prosternarão diante dela, mas a sua verdadeira soberania estará oculta. Todos a louvarão, mas poucos conhecerão o seu verdadeiro nome. Saturno está agora em Balança – as suas lições mais duras consistirão em manter o equilíbrio entre a antiga e a nova sabedoria. Mas Mercúrio está escondido. Para esta criança, prevejo muitas viagens e muitos equívocos; no entanto, no final, todos os caminhos levam à alegria e à sua verdadeira casa. À sua volta, as sacerdotisas murmuravam: – Ele profetiza grandeza, ela será a Dama do Lago, como a sua mãe antes de si! O Merlim franziu a testa. As estrelas tinham-lhe mostrado uma vida de magia e poder, mas ele já lera as estrelas para sacerdotisas muitas vezes antes, e os padrões que previam as suas vidas não eram aqueles que agora via. Parecia-lhe que aquela criança estava destinada a percorrer um caminho diferente do que havia sido trilhado por qualquer sacerdotisa de Avalon até àquela altura. – A criança é saudável e bem proporcionada? – É perfeita, meu senhor. – Cigfolla ergueu-se, embalando a criança envolta em roupas junto do seu peito. – Onde arranjaremos uma ama para ela? – Merlim sabia que nenhuma das mulheres de Avalon estava de momento a amamentar uma criança. – Pode ir para a aldeia dos habitantes do Lago – respondeu Ganeda.
– Lá, há sempre mulheres comrecém-nascidos. Mas enviá-la-ei ao seu pai logo que esteja desmamada. Cigfolla apertou o seu fardo contra o peito, num jeito protector, mas a aura de poder que rodeava a suma sacerdotisa já começava a descer sobre Ganeda, e, se a mais jovem das duas tinha objecções a fazer, não lhes deu voz. – Tens a certeza de que isso é sensato? – Em virtude do seu cargo, o Merlim podia questioná-la. – A criança não precisará de ser preparada em Avalon para o seu destino? – O que os deuses tiverem decidido, virá a acontecer, independentemente do que nós fizermos – respondeu Ganeda. – Mas levará muito tempo antes que eu consiga olhar para ela sem ver a minha irmã morta diante de mim. Merlim franziu o sobrolho, pois sempre lhe parecera que entre Ganeda e Rian não havia grande amor. Mas talvez fizesse sentido – se Ganeda se sentisse culpada por ter invejado a irmã, a criança seria uma dolorosa recordação. – Se a menina revelar talento, quando for mais velha, talvez possa voltar – prosseguiu Ganeda. Caso fosse jovem, Merlim talvez tentasse demovê-la, mas tinha visto nas estrelas a hora da sua própria morte, sabendo que não estaria presente para proteger a menina, se Ganeda começasse a detestá-la. Talvez fosse melhor ela ir viver com o pai enquanto pequena. – Mostra-me a criança. Cigfolla ergueu-se, afastando a dobra do cobertor. Merlim olhou para o rosto da menina, ainda fechado sobre si mesmo como um botão de rosa. Era uma criança grande para recém-nascida, de ossos largos como os do pai. Não era surpreendente que a mãe tivesse travado uma tão árdua batalha para a dar à luz. – Quem és tu, pequenina? – murmurou. – Serás tu merecedora de tal castigo? – Antes de morrer… a Senhora… disse que ela se chamaria Eilan – respondeu Cigfolla. – Eilan… – fez ecoar o Merlim, e, como se tivesse compreendido, a criança abriu os olhos. Tinham o tom cinzento opaco dos bebés. mas a sua expressão, ampla e grave, era de muito mais velha. – Ah… esta não é a primeira vez para ti – disse ele então, saudando-a como um viajante que encontra um velho amigo na estrada e para para um momentâneo cumprimento antes de continuarem por caminhos separados. Foi tomado de uma aguda dor de desgosto por não poder estar vivo para ver crescer aquela criança. – Bem-vinda de regresso, minha querida. Bem-vinda ao mundo.
Por momentos, as sobrancelhas da criança uniram-se. Depois, os minúsculos lábios formaram a curva de um sorriso. Parte I – O CAMINHO PARA O AMOR CAPÍTULO UM 259 d. C. – Oh, vejo água cintilando ao sol! É o mar? – Enterrei os calcanhares nos flancos arredondados do pónei para fazê-lo colocar-se ao lado do grande cavalo de Coríntio. O animal irrompeu num trote agitado, e agarrei-me à sua crina. – Ah. Helena, os teus olhos jovens são melhores do que os meus – respondeu o velho que tinha sido mestre dos meus meios-Irmãos antes de lhe ser dada a tarefa de ensinar a filha que o príncipe Célio inadvertidamente fizera a uma sacerdotisa de Avalon. – Apenas vislumbro um clarão. Mas penso que o que se estende diante de nós devem ser as planícies do País do Verão, inundadas pelas chuvas da Primavera. Sacudi para trás uma madeixa de cabelo e observei a paisagem. A vastidão das águas era interrompida por pequenas elevações do terreno, semelhantes a ilhas, e estava dividida por sinuosas fileiras de árvores. Para além delas, conseguia ver uma série de colinas onde Coríntio disse haver minas de chumbo, terminando numa névoa brilhante que deveria ser o estuário do Sabrina. – Então estamos quase lá? – O pónei sacudiu a cabeça após lhe ter apertado os flancos e puxado a rédea para trás. – Estamos, se as chuvas não tiverem arrastado as pedras da estrada, podendo então localizar a aldeia do povo do Lago que o meu amo me mandou procurar. Ergui o olhar para ele, cheia de piedade, porque me parecia muito fatigado. Podia ver as rugas do seu rosto magro, por baixo do largo chapéu de palha, e como cavalgava curvado sobre a sela. O meu pai não devia ter obrigado o velho a fazer esta viagem. Mas, quando ela terminasse, Coríntio, umgrego que se vendera como escravo, quando jovem, para conseguir um dote para as irmãs, teria a sua liberdade. Tinha feito um bom pé-de-meia ao longo dos anos. e tencionava montar uma escola em Londinium. – Chegaremos à aldeia do Lago esta noite – disse o guia que se tinha juntado à minha escolta emLindinis. – Quando lá chegarmos, descansaremos – disse eu com vivacidade. – Pensei que estivesses ansiosa por chegar a Tor – disse Coríntio gentilmente. “Talvez ele sentisse pena de me perder”, pensei, sorrindo-lhe.
Depois dos meus dois irmãos, a quem só a caça interessava, dissera-me que tinha apreciado ensinar alguém que queria realmente aprender. – Terei o resto da minha vida para gozar Avalon – respondi-lhe. Posso esperar um dia mais para lá chegar! – E recomeçares os teus estudos uma vez mais! – disse Coríntio, rindo. – Dizem que as sacerdotisas de Avalon preservaram a antiga sabedoria dos Druidas. Consola-me um pouco da tua perda saber que não passarás a tua vida a governar a casa de algum magistrado gordo e a dar-lhe filhos. Sorri. A esposa do meu pai tinha tentado convencer-me de que uma vida dessas era o que uma mulher poderia esperar de melhor, mas eu sempre soubera que, mais tarde ou mais cedo, iria para Avalon. O facto de ser mais cedo devia-se à rebelião de um general chamado Póstumo, cuja guerra separara Britânia do império. Desprotegidas, as costas a sudeste ficavam vulneráveis aos assaltantes, e o príncipe Célio achara melhor enviar a sua filhinha para a segurança de Avalon, enquanto ele e os filhos se preparavam para defender Camulodunum. Por momentos, o meu sorriso esmaeceu, porque eu tinha sido a menina dos olhos do meu pai, e não me agradava a ideia de que ele corresse perigo. Mas sabia perfeitamente que, enquanto ele estivesse longe de casa, a minha vida jamais seria feliz. Para os Romanos, eu era a filha natural do meu pai, sem parentes maternos, já que era proibido falar de Avalon. Na verdade, a minha família tinham sido Coríntio e a velha Huctia, que fora a minha ama, e esta última tinha morrido no Inverno anterior. Era tempo de eu regressar ao mundo da minha mãe. A estrada era agora descendente, descrevendo curvas suaves, para trás e para diante, pela encosta da montanha. Quando emergimos do abrigo das árvores, protegi os olhos com a mão. Lá em baixo, as águas cobriam a terra como um lençol dourado. – Se fosses um cavalo encantado – murmurei ao meu pónei poderíamos galopar por cima daquele caminho brilhante até Avalon. Mas o pónei limitou-se a sacudir a cabeça, abocanhando uma porção de relva, e continuámos a avançar estrada abaixo, passo a passo, até chegarmos às pedras escorregadias da estrada. Agora podia ver os caules acinzentados das ervas do Verão passado agitando-se ao vento, e, para além deles, os canaviais que orlavam os canais e os charcos permanentes. A água mais profunda estava escura, carregada de mistério. Que espíritos governariam aqueles pântanos, onde os elementos estavam de tal forma misturados e confundidos que era difícil dizer onde a terra acabava e a água principiava? Estremeci um pouco e voltei a contemplar o dia radioso. À medida que a tarde foi passando e a noite se aproximou, da água, começou a elevar-se uma bruma. Movíamo-nos lentamente, agora, deixando as nossas montadas escolher os seus passos sobre as lajes escorregadias. Eu montava desde que aprendera a andar, mas, até então, as minhas viagens diárias tinham sido curtas, apropriadas para a resistência de uma criança.
A viagem de hoje, a última fase do percurso, fora mais longa. Sentia uma dor permanente nas pernas e nas costas e sabia que iria sentir prazer em saltar da sela, quando o dia terminasse. Ao sairmos do abrigo das árvores, o guia encurtou as rédeas, apontando. Para além do emaranhado de pântanos e bosques erguia-se um único monte pontiagudo. Eu tinha sido levada daquele local quando mal tinha um ano de idade e, no entanto, com uma certeza que ultrapassava a memória, soube que estava a olhar para o sagrado Tor. Tocado pela luz solar, parece dotado de um brilho interior. – A Ilha de Vidro… – murmurou Coríntio, abrindo os olhos de admiração. “Mas não Avalon”… pensei, recordando-me das histórias que ouvira. O aglomerado de cabanas, semelhantes a colmeias, no sopé do Tor, pertencia à pequena comunidade de cristãos que ali viviam. A Avalon dos Druidas ficava no meio das brumas entre este mundo e a Terra das Fadas. – E lá está a aldeia do povo do Lago. – disse o nosso guia, indicando as espirais de fumo que se erguiam por trás dos salgueiros. Fustigou com as rédeas o pescoço do seu pónei, e todos os cavalos, pressentindo que a viagem chegava ao fim, começaram a trotar ansiosamente. – Temos uma barca, mas para atravessar para Avalon é necessária uma sacerdotisa. Ela dirá se sois bem-vindos. É importante ir já? Quereis que eu chame? – As palavras do chefe eram respeitosas, mas havia pouca deferência na sua postura. Durante perto de trezentos anos, a sua gente tinha guardado os portões de Avalon. – Esta noite, não – respondeu Coríntio. – A menina fez uma longa viagem. Deixemo-la ter uma boa noite de sono antes de conhecer todas essas novas pessoas na sua nova casa. Apertei-lhe a mão, agradecida. Estava ansiosa por chegar a Avalon, mas agora que a nossa jornada terminara, sentia-me dolorosamente consciente de que não voltaria a ver Coríntio, e só agora me apercebia de quanto gostava daquele velho. Tinha chorado quando a minha ama morrera, e sabia que iria chorar igualmente por perder Coríntio. O povo do Lago acolheu-nos numa das casas redondas de telhado de colmo, montadas sobre pilares acima do pântano. Havia um longo barco baixo atado ao lado dela, e uma ponte rangente ligava-a ao terreno mais elevado.
Os aldeões eram gente pequena e magra, com cabelos e olhos escuros. Aos dez anos, eu já tinha a altura de uma mulher adulta, entre eles, apesar de ter o mesmo cabelo castanho escuro. Observei-os curiosamente, porque me tinham dito que a minha mãe era como eles, ou talvez ela e eles se assemelhassem todos ao povo do País das Fadas. Os aldeões trouxeram-nos cerveja fraca, um estufado de peixe e milho, temperado com alho verde e bolos de aveia achatados cozidos num forno de pedra. Depois desta refeição simples, sentámo-nos junto da lareira, com os corpos demasiado fatigados para nos movermos, e as mentes ainda não prontas para o sono, vendo as chamas transformarem-se em brasas que brilhavam como o Sol desaparecido. – Coríntio, quando tiveres a tua escola em Londinium, vais lembrar-te de mim? – Como poderia eu esquecer a minha menina, brilhante como um dos raios solares de Apolo, quando estiver a esforçar-me por meter hexâmetros latinos nas cabeças duras de uma dúzia de rapazes? – Um sorriso percorreu as suas feições gastas. – Deves referir-te ao sol Belenos – disse eu – nesta região do Norte. – Referia-me a Apolo dos Hibérnicos, minha filha, mas é tudo o mesmo. – Acreditas verdadeiramente nisso? Coríntio ergueu uma sobrancelha. – Um único sol brilha aqui e na terra onde eu nasci, apesar de lhe darem nomes diferentes. No reino de Ideia, os grandes princípios para lá das formas que vemos são os mesmos. Franzi a testa, tentando entender as suas palavras. Ele tentara explicar-me os ensinamentos do filósofo Platão, mas eu achara-os difíceis de compreender. Cada lugar a que eu chegava tinha o seu espírito próprio, tão distinto como as almas humanas. Aquela terra a que chamavam o País do Verão, toda cheia de colinas e bosques e lagos escondidos, parecia um mundo diferente dos amplos campos rasos e dos pequenos bosques em volta de Camulodunum. Avalon, se as histórias que ouvira fossem verdadeiras. seria ainda mais estranha. Como poderiam os seus deuses ser os mesmos? – Penso que serás tu, minha pequenina. com toda a vida diante de ti. que te esquecerás de mim – disse então o velho. – Que foi, filha? – acrescentou, inclinando-se para afastar a madeixa de cabelo que escondia os meus olhos. – Estás com medo? -E se… e se eles não gostam de mim? Por momentos, Coríntio afagou-me os cabelos, depois recostou-se, com um suspiro. – Devo dizerte que, ao verdadeiro filósofo, isso não importa, pois uma pessoa virtuosa não precisa da aprovação dos outros. Mas de que forma poderá isso consolar uma criança? Não obstante, é verdade. Haverá pessoas que não gostam de ti, faças tu o que fizeres, e, quando isso suceder, apenas poderás tentar servir a Verdade tal como a vês.
No entanto, se tu conquistaste o meu coração, decerto haverá outros que te amarão da mesma forma. Olha por aqueles que necessitam do teu amor, e eles retribuirão essa bênção. O seu tom era encorajador. Engoli em seco e consegui sorrir. Eu era uma princesa e um dia seria também sacerdotisa. Não devia permitir que me vissem chorar. Houve um movimento na porta. A aba de couro foi afastada e vi uma criança que segurava nos braços um cãozinho que se debatia. A mulher do chefe viu-o e disse qualquer coisa, em tom de reprovação, no dialecto do Lago. Percebi a palavra designando “cão” e percebi que lhe estavam a dizer que levasse dali o bichinho. – Oh, não… eu gosto de cãezinhos! – exclamei. – Por favor, deixa-me vê-lo! A mulher mostrou-se duvidosa, mas Coríntio acenou afirmativamente com a cabeça, e o rapaz veio ter comigo, sorridente, depositando o animal nas minhas mãos estendidas. Quando agarrei no montinho de pelos que se retorcia, também eu comecei a sorrir. Vi logo que não se tratava de um daqueles graciosos galgos que costumavam encontrar-se, com nobre dignidade, nos salões do meu pai. O cão era minúsculo. tendo já um pelo macio muito espesso, e uma cauda excessivamente encaracolada. Mas os seus olhos castanhos brilhavam vivamente, e a língua que se projectou por baixo do botão negro e húmido do nariz, para lamber a minhamão, era cor-de-rosa e quente. – Pronto, pronto, és um bichinho amoroso. – Encostei o cachorro ao peito e ri-me de novo quando ele tentou lamber-me também a face. – Uma criatura sem educação nem maneiras – disse Coríntio, que não gostava de animais. – E provavelmente cheia de pulgas… – Não, meu senhor – respondeu o rapaz. – É um cão mágico. Coríntio ergueu uma sobrancelha eloquente, e o rapazinho franziu a testa. – Estou a falar verdade! – exclamou.- Já aconteceu antes.
A mãe perde-se. dois, três dias. Tem só uma cria, branca como esta. O cão mágico vive muito tempo, se não for morto, quando fica velho, desaparece. O cão vê espíritos. e conhece o caminho para o Outro Mundo! Sentindo o calor vivo do animal nos meus braços, ocultei o rosto na sua pele macia para esconder o meu sorriso, pois os restantes membros do povo do Lago estavam a acenar solenemente com as cabeças, e eu não queria ofendê-los. – A cadelinha é um presente, para ti, servir-te-á de guarda… – disse então o rapaz. Reprimi uma gargalhada à ideia de que aquela bola de pelo poderia proteger-me de alguma coisa, e endireitei-me para sorrir ao rapazito. – Ela tem nome? Ele encolheu os ombros.- – O povo da Terra das Fadas sabe. Talvez to digam algum dia. – Vou chamar-lhe Eldri até que isso aconteça, porque é tão branca e delicada como a flor do sabugueiro. – Observei-a enquanto falava e depois voltei o olhar para o rapaz. – E tu… tens nome? Um rubor invadiu a sua pele morena. – É “Lontra”, na tua língua disse, e os outros riram-se. Um nome de serviço, pensei. Aquando da sua iniciação, receberia outro que só seria usado no interior da tribo. E como deveria eu responder-lhe? No mundo do meu pai, tinha sido Júlia Helena, mas isso parecia-me irrelevante ali. – Obrigada – disse então. – Podes chamar-me Eilan.
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