Os prisioneiros o chamavam de Ouvidos porque era o único russo do galpão 8 que entendia alemão. Ninguém jamais usava seu nome verdadeiro, Karol Borya. – Ouvidos – era seu apelido desde o dia em que entrara no campo há mais de um ano. Era um rótulo que ele considerava com orgulho, uma responsabilidade que levava a sério. – O que você ouve? – sussurrou um dos prisioneiros no escuro. Ouvidos estava encolhido perto da janela, encostado ao vidro gelado, com a respiração leve como um fio de teia de aranha no ar seco e taciturno. – Eles querem mais diversão? – perguntou outro prisioneiro. Há duas noites os guardas tinham vindo pegar um russo no galpão 8. Era um soldado de infantaria vindo de Rostov, perto do Mar Negro, relativamente novo no campo. Seus gritos foram ouvidos a noite toda, terminando apenas depois de uma rajada de tiros em staccato, e na manhã seguinte o corpo ensanguentado foi pendurado no portão principal, para todos verem. Ele desviou rapidamente o olhar do vidro. – Quietos. O vento torna difícil escutar. Os catres cheios de piolhos tinham três andares, e cada prisioneiro tinha menos de um metro quadrado de espaço. Cem pares de olhos fundos o encaravam. Todos os homens respeitavam seu comando. Nenhum se mexeu, com o medo há muito absorvido no horror de Mauthausen. De repente, ele deu as costas para a janela. – Estão vindo. Um instante depois, a porta do galpão foi aberta. A noite gelada entrou, seguindo o sargento Hunter, encarregado do galpão de prisioneiros número 8. – Achtung! Claus Humer era Schutztaffel, da SS. Mais dois SS armados estavam atrás dele. Todos os guardas de Mauthausen eram da SS. Humer não carregava arma.
Nunca. O corpo de 1,83 metro e membros pesados eram toda a proteção de que necessitava. – Precisamos de voluntários – disse Humer. – Você, você, você e você. Borya foi o último escolhido. Imaginou o que estaria acontecendo. Poucos prisioneiros morriam à noite. A câmara da morte ficava desligada e o tempo era usado para expulsar o gás e lavar os ladrilhos para a chacina do dia seguinte. Os guardas tendiam a ficar em seus alojamentos, amontoados ao redor de fogões de ferro mantidos quentes pela lenha que os prisioneiros morriam cortando. Do mesmo modo, os médicos e seus auxiliares dormiam, preparando-se para outro dia de experiências em que os presos eram usados indiscriminadamente como animais de laboratório. Humer olhou direto para Borya. – Você me entende, não é? Borya ficou quieto, encarando os olhos pretos do guarda. Um ano de terror havia lhe ensinado o valor do silêncio. – Não tem nada a dizer? – perguntou Humer em alemão. – Ótimo. Você precisa entender… com a boca fechada. Outro guarda passou com quatro sobretudos de lã sobre os braços estendidos. – Agasalhos? – murmurou um dos russos. Nenhum prisioneiro usava agasalho. Uma imunda camisa de aniagem e calças rasgadas, mais trapos do que roupas, eram recebidos ao chegar. Quando morriam, esses trajes eram despidos para ser entregues, fedendo e sem serem lavados, aos que chegavam. O guarda jogou os casacos no chão. Humer apontou. – Mãntel anziehen. Borya pegou um dos amontoados verdes.
– O sargento mandou vestir – explicou em russo. Os outros três o acompanharam. A lã arranhava sua pele, mas a sensação era boa. Fazia muito tempo que não ficava sequer remotamente aquecido. – Para fora – disse Humer. Os três russos olharam para Borya e ele sinalizou em direção à porta. Todos saíram para a noite. Humer guiou o grupo pelo gelo e a neve em direção ao pátio principal, enquanto um vento gelado uivava entre as filas de galpões baixos, de madeira. Havia oitenta mil pessoas amontoadas nas construções ao redor, um número maior do que os moradores de toda a província natal de Borya na Bielo-Rússia. Passara a achar que jamais veria aquele local outra vez. O tempo quase se tornara irrelevante, mas, em nome da sanidade, Borya tentava manter algum sentido de sua passagem. Era o final de março. Não. Início de abril. E continuava gelado. Por que ele não podia simplesmente morrer ou ser morto? Centenas encontravam esse destino a cada dia. Será que o dele era sobreviver a este inferno? Mas para quê? No pátio principal, Humer virou à esquerda e marchou para uma área aberta. Havia outros galpões de prisioneiros de um dos lados. A cozinha, a cadeia e a enfermaria do campo eram do outro. Na extremidade mais distante, ficava o rolo compressor, uma tonelada de aço que era arrastado sobre a terra congelada a cada dia. Esperou que o trabalho não envolvesse aquela tarefa desagradável. Humer parou diante de quatro estacas altas. Há dois dias um grupo fora levado para a floresta ao redor, e Borya também fora um dos dez prisioneiros escolhidos naquela ocasião. Tinham derrubado três faias pretas. Um prisioneiro quebrou o braço durante o serviço e foi morto a tiro no ato.
Os galhos foram retirados e os troncos cortados em quatro partes, depois arrastados de volta ao campo e enfiados no chão até ficarem da altura de umhomem, no pátio principal. Mas as estacas tinham permanecido nuas nos últimos dois dias. Agora dois guardas armados os vigiavam. Luzes de arco voltaico ardiam acima e enevoavam o ar cortante e seco. – Esperem aqui – disse Humer. O sargento subiu um pequeno lance de escada e entrou na cadeia. A luz vazava de um retângulo amarelo na porta. Um instante depois quatro homens nus foram trazidos para fora. As cabeças louras não estavam raspadas como as dos outros russos, poloneses e judeus que constituíam a vasta maioria dos prisioneiros do campo. Nada de músculos fracos ou movimentos lentos, tampouco. Nem olhares apáticos ou olhos fundos nas órbitas, ou edemas inchando nos corpos emaciados. Aqueles homens eram fortes. Soldados. Alemães. Borya tinha visto outros assim. Rostos de granito, sem emoção. Frios e pétreos, como a noite. Os quatro andaram eretos e desafiadores, com os braços ao lado do corpo, nenhum evidenciando o frio insuportável que a pele leitosa devia estar sentindo. Humer os acompanhou para fora da cadeia e sinalizou para as estacas. -Ali. Os quatro alemães nus marcharam para onde foram ordenados. Humer se aproximou e jogou quatro rolos de corda na neve. – Amarrem-nos às estacas. Os três companheiros de Borya o olharam. Ele se abaixou e pegou as quatro cordas, entregando-as aos outros três e dizendo o que fazer.
Cada um se aproximou de um alemão nu, que estava em posição de sentido diante dos ásperos toros de faia. Que violação teria provocado tamanha loucura? Passou o cânhamo rústico em volta do peito do homem e amarrou o corpo à madeira. – Apertado – gritou Humer. Borya deu um nó e puxou a fibra áspera com força sobre o peito nu do alemão. O sujeito nem se mexeu. Humer olhou para os outros três. Borya aproveitou a oportunidade para sussurrar em alemão: – O que você fez? Não houve resposta. Apertou mais a corda. – Eles não fazem isso nem conosco. – É uma honra desafiar quem nos capturou – sussurrou o alemão. Sim, pensou Borya. Era mesmo. Humer se virou de volta. Borya apertou o último nó. – Para lá – disse Humer. Borya e os outros três russos caminharam sobre a neve recente, saindo do caminho. Para manter o frio a distância, enfiou as mãos nas axilas e ficou se mexendo sobre um pé e o outro. O sobretudo era maravilhoso. Era o primeiro calor que sentia desde que fora trazido ao campo. Naquele momento, sua identidade fora completamente retirada, substituída por um número – 10901 – tatuado no antebraço. Um triângulo foi costurado no peito de sua camisa rasgada, do lado esquerdo. Um R no triângulo significava que era russo. A cor também era importante. Vermelho para prisioneiros políticos. Verde para criminosos.
Estrela de-davi amarela para os judeus. Preto e marrom para prisioneiros de guerra. Humer parecia aguardar alguma coisa. Borya olhou à esquerda. Mais luzes de arco voltaico iluminavam o pátio de desfiles até o portão principal. A estrada lá fora, em direção à pedreira, ia sumindo na escuridão. A sede do comando, logo do outro lado da cerca, não estava iluminada. Ele ficou olhando enquanto o portão principal era aberto e uma figura solitária entrava no campo. O sujeito usava um sobretudo que ia até os joelhos. Calças claras se estendiampor baixo, até as botas de cano alto. Um quepe de oficial, de cor clara, cobria a cabeça. Coxas grandes caminhavam arqueadas, com passo decidido, e a barriga proeminente do sujeito abria o caminho. As luzes revelaram um nariz afiado e olhos claros, feições não desagradáveis. E instantaneamente reconhecíveis. Último comandante do Esquadrão Richthofen, comandante da Força Aérea Alemã, porta-voz do parlamento alemão, primeiro-ministro da Prússia, presidente do conselho de estado da Prússia, Reichmaster de florestas e caça, presidente do conselho de defesa do Reich, Reichsmarschall do Grande Reich Alemão. Escolhido pelo Führer como sucessor. Hermann Göring. Borya tinha visto Göring uma vez. Em 1939. Roma. Göring aparecera usando um espalhafatoso terno cinza, o pescoço carnudo enrolado numa gravata escarlate. Rubis adornavam os dedos grossos e uma águia nazista com diamantes engastados estava presa à lapela esquerda. Tinha feito um discurso contido defendendo o lugar da Alemanha ao sol, perguntando: Vocês preferem ter armas ou manteiga? Preferem importar gordura de porco ou minério de ferro? O preparo nos torna poderosos. A manteiga nos torna gordos. Göring tinha terminado o discurso com um floreio, prometendo que a Alemanha e a Itália marchariam ombro a ombro na luta vindoura.
Borya se lembrou de ter ouvido com atenção e não ter se impressionado. – Senhores, imagino que estejam confortáveis – disse Göring em voz calma aos quatro prisioneiros amarrados. Ninguém respondeu. – O que ele disse, Yxol – sussurrou um dos russos. – Está ridicularizando eles. – Calem a boca – murmurou Humer. – Fiquem atentos ou vão se juntar a eles. Göring se posicionou bem na frente dos quatro homens nus. – Pergunto de novo a cada um de vocês: têm algo a dizer? Apenas o vento respondeu. Göring se aproximou de um dos alemães trémulos. O que Borya havia amarrado à estaca. – Mathias, sem dúvida você não quer morrer assim, não é? Você é um soldado, um servidor leal do Führer. – O… Führer… não tem nada a ver… com isto – gaguejou o alemão, o corpo tremendo violentamente. – Mas tudo que fazemos é pela glória maior dele. – Motivo pelo qual… escolho morrer. Göring deu de ombros. Um gesto casual, como alguém faria se decidisse comer mais um bolinho. Fez um gesto para Humer. O sargento sinalizou para dois guardas, que empurraram um grande barril na direção dos homens amarrados. Outro guarda se aproximou com quatro conchas e as jogou na neve. Humer olhou para os russos. – Encham-nas com água e fiquem perto de cada um desses homens. Borya disse aos três o que fazer, e quatro conchas foram apanhadas e submergidas. – Não derramem nada – alertou Humer. Borya teve cuidado, mas o vento soprou algumas gotas para fora.
Ninguém notou. Ele voltou ao alemão que havia amarrado à estaca. O que se chamava Mathias. Göring ficou no centro, retirando as luvas de couro. – Veja bem, Mathias – disse Göring. – Estou tirando as luvas para sentir o frio, como sua pele. Borya ficou suficientemente perto para ver o pesado anel de prata que envolvia o anular da mão direita do sujeito, no qual estava gravado um punho de ferro. Göring enfiou a mão direita num bolso da calça e tirou uma pedra. Era dourada, como mel. Borya reconheceu aquilo. Âmbar. Göring acariciou a pedra com os dedos e disse: – A água será derramada sobre vocês a cada cinco minutos, até que alguém me diga o que quero saber ou até que vocês morram. Qualquer das opções me é aceitável. Mas, lembrem-se, quem falar vive. Então um desses russos miseráveis ficará no seu lugar. E vocês poderão ter o casaco de volta e derramar água nele até que ele morra. Imaginem como seria divertido. Só precisam me contar o que quero ouvir. Agora, têm algo a dizer? Silêncio. Göring assentiu para Humer. – Giefie es – disse Humer. Derramem. Borya obedeceu e os outros três o seguiram. A água encharcou a juba loura de Mathias, depois escorreu pelo rosto e o peito. Tremores acompanharam o derramamento.
O alemão não emitiu qualquer som, além de bater os dentes. – Algo a dizer? – perguntou Göring outra vez. Nada. Cinco minutos depois, o processo foi repetido. Vinte minutos mais tarde, após serem molhados mais quatro vezes, a hipotermia começou a atuar. Göring permanecia impassível e massageava metodicamente o âmbar. Pouco antes que outros cinco minutos se expirassem, ele se aproximou de Mathias. – Isto é ridículo. Diga onde das Bernstein-zimmer está escondida e interrompa seu sofrimento. Não vale a pena morrer por isso. O alemão trémulo só o encarou de volta, com um desafio admirável. Borya quase odiava ser cúmplice de Göring para matá-lo. – Sie sind ein lugnerisch diebisch-schwein – conseguiu dizer Mathias num só fôlego. Você é um porco mentiroso e ladrão. Depois o alemão cuspiu. Göring recuou, com uma mancha de saliva na frente do sobretudo. Abriu os botões e sacudiu a mancha, depois puxou as lapelas, revelando um uniforme cinza-pérola cheio de condecorações pesadas. – Eu sou seu Reichsmarschall. Só estou abaixo do Führer. Ninguém usa este uniforme além de mim. Como ousa achar que pode sujá-lo com tanta facilidade? Você dirá o que quero saber, Mathias, caso contrário vai congelar até a morte. Lentamente. Muito lentamente. Não será agradável. O alemão cuspiu de novo.
Desta vez no uniforme. Göring permaneceu surpreendentemente calmo. -Admirável, Mathias. Sua lealdade é notável. Mas por quanto tempo conseguirá sustentá-la? Olhe para você. Não gostaria de estar quente? Com o corpo perto de uma grande lareira, a pele enrolada num aconchegante cobertor de lã? – De repente, Göring estendeu a mão e empurrou Borya para perto do alemão amarrado. A água se derramou da concha para a neve. – Este agasalho seria maravilhoso, não é, Mathias? Vai permitir que este cossaco miserável fique quente enquanto você congela? O alemão ficou quieto. Apenas tremia. Göring empurrou Borya para o lado. – Que tal um gostinho do calor, Mathias? O Reichsmarschall abriu a braguilha da calça. A urina quente jorrou num arco, soltando vapor e deixando riscas amarelas na pele nua, que escorreram até a neve. Göring sacudiu o membro e depois fechou a calça. – Sente-se melhor, Mathias? – Verrottet in der schiveinshõlle. Borya concordou. Apodreça no inferno dos porcos. Göring se adiantou rapidamente e deu um tapa com as costas da mão no rosto do soldado, e seu anel de prata lhe rasgou a bochecha. O sangue escorreu. – Derramem! – gritou Göring. Borya voltou ao barril e encheu de novo sua concha. O alemão chamado Mathias começou a gritar. – Mein Fuhrer. Mein Fuhrer. Mein Fuhrer. – Sua voz ficou mais alta.
Os outros três homens amarrados se juntaram a ele. A água escorria. Göring ficou parado, olhando, remexendo furiosamente o pedaço de âmbar entre os dedos. Duas horas depois, Mathias morreu coberto de gelo. Dentro de mais uma hora, os outros três alemães sucumbiram. Ninguém mencionou nada sobre das Bernstein-zimmer. PARTE 1 ATLANTA, GEÓRGIA TERÇA-FEIRA, 6 DE MAIO, TEMPO PRESENTE, 10H 35 UM A juíza Rachel Cutler olhou por cima dos óculos de aro de tartaruga. O advogado tinha dito aquilo de novo e, desta vez, ela não deixaria o comentário passar. – Perdão, advogado? – Eu disse que o réu alegará erro de julgamento. – Não. Antes disso. O que o senhor disse? – Disse: sim, senhor. – Se não notou, eu não sou um senhor. – Correto, meritíssima. Peço desculpas. – Você fez isso quatro vezes nesta manhã. Tomei nota. O advogado deu de ombros. – Parece uma questão sem importância. Por que a meritíssima se daria ao trabalho de anotar meu simples lapso verbal? O sacana impertinente chegou a sorrir. Ela ficou mais ereta na cadeira e o encarou, irritada. Mas percebeu imediatamente o que T. Marcus Netties estava fazendo. Por isso permaneceu quieta. – Meu cliente está sendo julgado por agressão com agravantes, meritíssima.
No entanto, a corte parece mais preocupada com o modo como me dirijo à senhora do que com a questão do desvio de conduta. Ela olhou para o júri, depois para a mesa da promotoria. O promotor assistente do condado de Fulton permaneceu impassível, aparentemente satisfeito ao ver que o oponente estava cavando a própria sepultura. Obviamente, o jovem promotor não captava o que Nettles estava tentando. Mas ela sim. – Está absolutamente certo, advogado. É uma questão sem importância. Prossiga. Ela se recostou na cadeira e notou o momentâneo olhar de irritação no rosto de Nettles. Uma expressão que um caçador poderia ter quando seu tiro não acertava o alvo. – E quanto à minha moção de erro de julgamento? – perguntou Nettles. – Negada. Continue. Prossiga com seu sumário. Rachel ficou olhando enquanto o primeiro jurado se levantava e pronunciava o veredicto de culpado. As deliberações tinham demorado apenas vinte minutos. – Meritíssima – disse Nettles, levantando-se. – Peço uma investigação pré-sentença. – Negada. – Peço que o anúncio da sentença seja adiado. – Negado. Nettles pareceu sentir o erro que havia cometido antes. – Peço que o tribunal se declare impedido. – Baseado em quê? – Atitude tendenciosa. – Contra quem ou o quê? – Contra mim e meu cliente.
– Explique-se. – O tribunal demonstrou preconceito. – Como? – Com aquela observação hoje cedo sobre meu uso inadvertido da palavra senhor. – Pelo que recordo, advogado, eu admiti que era uma questão sem importância. – Sim, admitiu. Mas nossa conversa ocorreu com o júri presente, e o dano foi causado. – Não me lembro de qualquer objeção ou moção de erro de julgamento baseado naquela conversa. Nettles ficou quieto. Ela olhou para o assistente da promotoria. – Qual é a posição do Estado? – O Estado se opõe à moção. O tribunal foi justo. Ela quase sorriu. Pelo menos o jovem advogado sabia a resposta certa. – Moção de impedimento negada. – Rachel olhou para o réu, um rapaz branco de cabelos arrepiados e rosto cheio de marcas de espinhas. – O réu deve ficar de pé. – Ele obedeceu. – Barry King, você foi considerado culpado do crime de agressão com agravantes. Portanto, este tribunal o envia ao departamento de correções por um período de vinte anos. O meirinho levará o réu sob custódia. Ela ficou de pé e foi na direção de uma porta de carvalho que levava à sua sala de audiências. – Sr. Nettles, posso falar com o senhor um momento? – O assistente da promotoria também foi em sua direção. – Sozinha. Nettles deixou o cliente, que estava sendo algemado, e a acompanhou até a sala.
– Feche a porta, por favor. – Ela abriu o zíper da toga, mas não a retirou. Foi para trás da mesa. – Bela tentativa, advogado. -Qual? – Antes, quando achou que aquele golpe do senhor e senhora me tiraria do sério. Você estava tremendo nas bases com aquela defesa capenga, por isso achou que minha perda de estribeira lhe garantiria uma moção de erro de julgamento. Ele deu de ombros. – A gente precisa tentar tudo. – O que você precisa é demonstrar respeito pelo tribunal e não chamar uma juíza de senhor. No entanto fez isso. Deliberadamente. – A senhora acaba de sentenciar meu cliente a vinte anos sem o benefício de uma audiência présentença. Se isso não é preconceito, o que é? Ela se sentou e não convidou o advogado a fazer o mesmo. – Não preciso de audiência. Condenei King por espancamento com agravantes há dois anos. Seis meses preso e seis em condicional. Eu me lembro. Desta vez, ele pegou um bastão de beisebol e fraturou o crânio de um homem. O sujeito esgotou o pouco de paciência que tenho. – A senhora deveria ter se considerado impedida. Todas essas informações turvaram seu julgamento. – Verdade? A investigação pré-sentença, pela qual você ficou gritando, revelaria tudo isso, de qualquer modo. Eu simplesmente lhe poupei o trabalho de esperar o inevitável. – Você é uma puta escrota. – Isto vai lhe custar cem dólares.
Pagáveis agora. Junto com mais cem pelo que armou no tribunal. – Tenho direito a uma audiência antes que você me acuse de desacato. – Certo. Mas você não quer isso. Não vai servir de nada para esta imagem chauvinista que você se esforça tanto para mostrar. Nettles ficou quieto e ela pôde sentir o fogo crescendo. Era um sujeito pesado, com papadas e reputação de tenacidade, sem dúvida desacostumado a receber ordens de uma mulher. – E a cada vez que você mostrar essa sua bunda enorme no meu tribunal, vai lhe custar cem dólares. Ele foi em direção à mesa e pegou um maço de dinheiro, tirando duas notas de cem dólares, novas em folha, com o Benjamin Franklin inchado. Bateu as duas na mesa, depois desdobrou mais três. – Dane-se. – Uma nota foi largada. – Dane-se. A segunda nota caiu. – Dane-se. O terceiro Ben Franklin desceu flutuando. DOIS Rachel tirou a toga, voltou à sala do tribunal e subiu os três degraus até o tablado de carvalho que havia ocupado nos últimos quatro anos. O relógio na parede dos fundos marcava 13h45. Imaginou por mais quanto tempo teria o privilégio de ser juíza. Este era um ano de eleição, as inscrições tinham terminado há duas semanas, e ela atraíra dois opositores para as primárias de julho. Havia boatos de que pessoas entrariam na corrida, mas ninguém apareceu até dez minutos antes das cinco da tarde na sexta-feira, para pagar os quase quatro mil dólares necessários para concorrer. O que poderia ter sido uma eleição fácil e sem concorrentes agora se transformara num longo verão de levantamento de verbas e discursos. Nenhuma das duas coisas era agradável. No momento, não precisava de mais isso.
Sua agenda estava lotada, com mais processos acrescentados a cada dia. Mas o calendário de hoje fora encurtado por um veredicto rápido no caso estado da Geórgia contra Barry King. Menos de uma hora de deliberação era rápido, segundo qualquer padrão, e o júri obviamente não tinha se impressionado com o teatro de T. Marcus Nettles. Com a tarde livre, decidiu cuidar de vários assuntos atrasados, que não precisavam de júri. As horas de julgamento tinham sido produtivas. Quatro condenações, seis admissões de culpa e uma absolvição. Onze processos criminais fora do caminho, abrindo espaço para o novo lote que sua secretária informou que seria entregue pelo encarregado da programação de manhã. O Fulton County Daily Report dava notas anualmente a todos os juizes do tribunal superior local. Nos últimos três anos, ela estivera perto do topo, resolvendo os processos mais rápido que a maioria de seus colegas juizes, com uma taxa de apenas dois por cento de reversão nos tribunais de apelação. Nada mal estar certa em 98 por cento do tempo. Acomodou-se atrás da bancada e assistiu ao início do desfile da tarde. Advogados vinham e iam, alguns trazendo clientes que precisavam da finalização de um divórcio ou da assinatura de um juiz, outros procurando uma resolução para moções pendentes em casos cíveis que aguardavamjulgamento. Umas quarenta questões diferentes no total. Quando olhou de novo para o relógio do outro lado da sala, eram 16h15 e a agenda tinha se reduzido a dois itens. Um era uma adoção, tarefa da qual realmente gostava. O menino de 7 anos lhe lembrava Brent, seu filho de mesma idade. A última questão era uma simples mudança de nome, e a pessoa não era representada por um advogado. Ela havia marcado o caso especificamente para o fim, esperando que o tribunal estivesse vazio. A secretária lhe entregou a pasta de documentos. Ela olhou para o velho, vestido com paletó de tweed bege e calça marrom, diante da mesa dos advogados. – Seu nome completo? – perguntou ela. – Karl Bates. – A voz cansada tinha sotaque da Europa Oriental. – Há quanto tempo mora no condado de Fulton? – Quarenta e seis anos.
– Nasceu neste país? – Não. Vim da Bielo-Rússia. – E é cidadão americano? Ele assentiu. – Sou um velho. Tenho 83 anos. Passei quase metade da vida aqui. A pergunta e a resposta não eram relevantes para a petição, mas nem a secretária nem o escrivão disseram nada. Seus rostos pareciamentender o momento. – Meus pais, irmãos, irmãs, todos foram mortos pelos nazistas. Muitos morreram na Bielo-Rússia. Éramos russos-brancos. Muito orgulhosos. Depois da guerra não restaram muitos de nós quando os soviéticos anexaram nossa terra. Stalin foi pior que Hitler. Um louco. Carniceiro. Nada restou por lá quando ele terminou, por isso fui embora. Este país é a terra das oportunidades, não é? – O senhor era cidadão russo? – Acredito que a designação correta era cidadão soviético. – Ele balançou a cabeça. – Mas nunca me considerei soviético. – O senhor serviu durante a guerra? – Por necessidade. A Grande Guerra Patriótica, como dizia Stalin. Era tenente. Fui capturado e mandado a Mauthausen. Passei dezesseis meses num campo de concentração.
– Qual foi sua ocupação aqui, depois de emigrar? – Joalheiro. – O senhor fez uma petição a este tribunal para mudar de nome. Por que deseja ser conhecido como Karol Borya? – É meu nome de nascimento. Meu pai me chamou de Karol. Significa obstinado. Eu era o mais novo de seis filhos e quase morri ao nascer. Quando imigrei para este país pensei que deveria proteger a identidade. Tinha trabalhado em comissões do governo enquanto estava na União Soviética. Odiava os comunistas. Eles arruinaram minha pátria, e eu falava disso. Stalin mandou muitos compatriotas para os campos na Sibéria. Achei que minha família sofreria. Muito poucas pessoas podiam sair de lá na época. Mas antes de morrer quero meu passado de volta. – O senhor está doente? – Não. Mas me pergunto quanto tempo este corpo cansado vai aguentar. Ela olhou para o velho parado à frente, o corpo encolhido pela idade, mas ainda distinto. Os olhos eram inescrutáveis e fundos, o cabelo de um branco nítido, a voz grave e enigmática. – O senhor parece muito bem para um homem de sua idade. Ele sorriu. – O senhor deseja essa troca devido a uma fraude, para fugir de processos ou se esconder de umcredor? – Jamais. – Então concedo a petição. O senhor será Karol Borya outra vez. Ela assinou a ordem anexada à petição e entregou a pasta à secretária. Descendo da plataforma, aproximou-se do velho.
Lágrimas escorriam pelas bochechas barbadas. Os olhos dela também ficaram vermelhos. Ela o abraçou e disse baixinho: – Te amo, papai.
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