O apartamento era grande e arejado. A decoração, moderna e de bom gosto, mesclava papéis de parede que deixavam o ambiente aconchegante com móveis de design arrojado e peças divertidas, imprimindo assim a personalidade do casal na casa. Em uma das paredes laterais da sala havia ummural de fotos com dezenas de sorrisos, beijos e olhares apaixonados, registrados para toda a eternidade. Seria um apartamento digno das melhores revistas de decoração não fosse por um detalhe: tudo nele estava fora de lugar. Havia sido decorado alguns anos antes para ser o lar de um casal recémcasado que queria ser feliz em todos os sentidos; para receber os amigos, para descansar depois de um longo dia de trabalho e, logicamente, para se passar bons momentos a dois. Porém, naquele momento, estava completamente abandonado. Quem morava nele já não se importava mais comdecoração, visitas, momentos a dois ou com felicidade. André, que analisava aquela bagunça com seu senso crítico, estava esparramado na sua poltrona de leitura. Às vezes, ele perdia seu olhar em Juli, do outro lado da sala, e suspirava sentindo-se angustiado por não entender no que ela havia se tornado. Era domingo à noite, últimas horas do final de semana. No passado, ele e Juli curtiam esses momentos como quem aproveita o último raio de sol de um dia de verão. Hoje eles também estão juntos… na mesma sala, porém em lugares diferentes. Fisicamente juntos no mesmo ambiente, mentalmente distantes um do outro. Alguma coisa aconteceu ou será que eu fiz algo de errado? André refletia, com os olhos grudados em Juli. André gostava de observar a esposa quando ela estava distraída. Reparava em seus cabelos, nas expressões espontâneas de seu rosto, na covinha que se formava quando sorria, no brilho dos seus olhos… Hoje, porém, o que via era uma mulher apática, com cabelos sem brilho, com o corpo precisando de cuidados e com o olhar distante, quase entediado. Na cozinha, o interfone tocou, mas Juli não se moveu do sofá de onde assistia à televisão. — Atende pra mim? — pediu ela, sem ao menos olhar para ele. André deixou de lado o jornal que tentava ler, levantou-se de sua poltrona e foi atender ao interfone. — É o lanche que você pediu. O motoqueiro está na portaria. — avisou, já de volta à sala. — Você busca pra mim? Estou de pijama e com preguiça de colocar uma roupa só para ir lá… — Busco, claro. — concordou, com sua habitual gentileza. As coisas entre André e Juli não fluíram muito bem nos últimos anos.
Enquanto Juli fingia para André e para ela mesma que estava tudo bem, ele se esforçava para tentar agradá-la no dia a dia. Ele cedia aqui e ali, bancava o psicólogo nos dias de TPM, buscava o diálogo pacífico nas brigas e discussões, tentava mostrar que eles ainda podiam ser felizes… se realmente quisessem. André sonhava com os dias alegres e tranquilos do passado, em fazer os programas despretensiosos que curtiam fazer, em ter de volta a Juli divertida e de bem com a vida que conheceu seis anos antes. Apesar de saber que seu casamento já não era mais o mesmo, ele ainda cultivava a esperança de que eles voltariam a ser o casal apaixonado de outrora. Enquanto esperava pelo elevador, André mexia nas chaves que estavam dentro do bolso de sua calça de moletom. Tirou o pequeno molho de lá de dentro, olhou para o chaveiro em formato de um Fusca, e sua mente o jogou de volta para o dia em que ele pediu Juli em casamento. Quando seu namoro com Juli completou um ano, André decidiu que aquele era o momento certo. Conversou com seus pais, como sempre fazia quando precisava tomar qualquer decisão importante em sua vida, e colocou seu plano em prática. Preparou com bastante antecedência o presente que escolheu para ela, planejou um jantar em seu apartamento e comprou uma pequena caixa de veludo azul escuro. No dia do jantar, Juli foi ao apartamento de André sentindo-se insegura, porém feliz por finalmente engatar um relacionamento sério com alguém tão especial como ele. Ela tocou a campainha e, segundos depois, André abriu a porta, recebendo Juli com um sorriso radiante no rosto: — Oi! — Uau! Quem é essa gata? — perguntou, em tom brincalhão — Desculpe, moça, mas sou umcara comprometido e estou esperando pela minha namorada. Uma que só usa calça jeans. — Ai, Dé, pode falar, estou ridícula, né? Coisas de Mariana. Você sabe como ela é… — falou Juli sem graça, sentindo um leve rubor em sua face — Olha só para esse sapato… Nem sei andar direito com esses saltos. Mas, enfim, consegui chegar até aqui sem cair nem torcer o pé. E isso já é um verdadeiro milagre! — Vem cá, amor. Você está linda! Preciso me lembrar de agradecer à Mariana por isso. — disse, segurando as mãos de Juli e se afastando para admirá-la. Juli espiou o apartamento sempre impecável de André. Havia uma mesa posta com pratos, taças e velas acesas. André era tão metódico com sua casa que ela quase nunca o convidava para ir à casa de seus pais. A bagunça generalizada o espantaria de vez, ela tinha certeza. — Eu fiz isso pra você — contou Juli, estendendo o pacote que trazia em uma das mãos — Para você nunca mais se esquecer desse ano que passou. Para lembrar o quanto foi intenso e divertido… E do quanto você é importante para mim. Ele sorriu curioso e se sentou para abrir o embrulho.
— Acho que você vai gostar. — disse Juli, sentando-se ao lado de André no sofá da sala. — Já gostei. — contou enquanto desembrulhava o pacote. — Um álbum de fotos? — Sim. — Que bacana! André começou a folhear o scrapbook com fotos do primeiro ano de namoro: os melhores momentos, os melhores dias, as melhores cenas… As lembranças iam surgindo a cada página virada e os dois comentavam aqui e ali sobre as fotografias, revivendo aqueles dias tão felizes só dos dois. — Foi você que fez? — Sim. Gostou? — perguntou, mesmo sabendo que não havia sido ela quem tinha feito o álbum, e sim a habilidosa funcionária de uma lojinha especializada em scrapbook que ela descobriu no shopping perto de sua casa. Mas André não precisava saber dos detalhes. — Eu adorei, Juli. De verdade. Obrigado! — Nossa! Você não sabe o quanto fico feliz em saber que gostou. — comentou Juli, suspirando aliviada. Quando terminaram de ver o álbum, André pegou a pequena caixa de veludo azul que estava em cima da mesinha de centro e entregou à namorada. — Depois de um ano maravilhoso como este, nada melhor do que te pedir em casamento —declarou, surpreendendo Juli, que quase desmaiou com a surpresa. — André! — exclamou, pegando a pequena caixa com as mãos trêmulas — Você… Você tem certeza? — Assim como preciso de ar para respirar, preciso de você para viver. Ela o olhou estupefata. — Tudo bem. Essa frase eu peguei emprestado de um livro e soou piegas demais, mas… — ele abriu um sorriso contagiante. — Claro que tenho certeza! Eu te amo, Juli. Você é tudo o que eu mais quero. Somos felizes… Combinamos em tudo… Pra que esperar? — Ô, Dé! Eu também te amo. Muito! — Abre — ele a encorajou, ansioso para mostrar de uma vez a surpresa que havia preparado. Ela abriu a caixa e olhou, sem entender direito o conteúdo da pequena caixa de veludo. — Chaves? — Vem comigo que eu te explico.
Ele saiu quase correndo, puxando a namorada pelas mãos, e a levou até a garagem do prédio. Parou ofegante ao lado de um fusca bege e ficou contemplando o rosto dela. O Fusca 1964 estava lindo. Tinha sido reformado, ganhou motor e estofamento novos. André havia passado os últimos três meses preparando a surpresa para a namorada, que permanecia ao seu lado sem compreender direito o motivo de estarem parados ao lado daquele carro. — Uma das chaves abre a porta. — contou, apontando para a porta do motorista. — E essa moça bonita que está na minha frente é a dona dele. Juli levou uma das mãos à boca. Ela não sabia medir se estava feliz ou chocada com aquele presente. — Sempre amei Fuscas! — Eu sei — afirmou André, sentindo seu coração explodindo de felicidade. Ao vê-la sorrindo e admirando o carro, André soube que, enquanto estivessem juntos, ele faria de tudo para vê-la sempre com aquele sorriso no rosto. Sem perder mais tempo, Juli entrou no carro e sentiu o banco de couro em tom bege, tocou o painel, o câmbio… Tudo novinho e como ela sempre imaginou. Deu partida. Sentiu o ronco do motor e depois o desligou. Era muita emoção. Ela estava maravilhada com seu presente. Nunca ninguémhavia feito algo tão lindo por ela e Juli não sabia como agradecer à altura. — É lindo, amor! Poxa, eu nem sei o que dizer… Como eu queria ser boa com as palavras nessas horas… — Diga apenas sim. — Dizer sim? — Isso. Diga sim ao meu pedido. Ela tornou a abrir a caixinha de veludo e tocou na segunda chave. — Minha casa será nossa a partir do seu sim. — disse ele, envolvendo-a pela cintura. — E, então, Julia Andrade de Oliveira, você aceita se casar comigo? Juli deixou sua cabeça cair para trás, fechou os olhos e respondeu sorrindo: — Sim! É claro que sim! O solavanco da parada do elevador interrompeu os pensamentos de André.
Ele havia chegado ao térreo. Em modo automático, caminhou até a portaria, pegou o lanche, pagou o motoqueiro e voltou para o apartamento. — Aqui está o seu lanche. — avisou, fechando a porta. — Ah, obrigada. Tem certeza de que não quer um pedaço? — Tenho. Obrigado. Juli pegou seu lanche e refrigerante, sentou-se no tapete da sala e voltou sua atenção para o reality show que acompanhava diariamente na TV. André voltou para sua poltrona, mas não retomou a leitura do jornal. Em vez disso, ele a fitou incomodado. Aquela não era a sua Juli. Sua Juli não tinha uma expressão “estou-de-saco-cheio-e-jánão-me-importo-com-nada” tatuada na cara, como esta tinha. O que aconteceu com ela? O que havia mudado? Quando ela se tornou uma estranha para ele? Por mais que pensasse, ele não encontrava as respostas para as suas perguntas. André tinha total consciência de que Juli não era uma pessoa fácil quando se casou com ela. Seus pais avisaram: “Juli é geniosa demais, fecha a cara diante do menor conflito, além de falar pouco. E nós somos descendentes de italianos. Gostamos de festas; de nos reunir para comer; de falar! Dio mio, Juli não gosta de sair de casa! Não vai dar certo esse casamento, meu filho”. Ele sabia de tudo aquilo. Mas acontece que o amor não tem regras. Os opostos nem sempre se repelem. Às vezes, eles se atraem e era nessa teoria que André se apoiava. Desde então, cinco anos de casados se passaram. Nos três primeiros anos, tudo correu bem: viagens esporádicas, cursos de gastronomia, planos e projetos profissionais, eventuais saídas com os amigos, momentos românticos a dois… Já os últimos dois anos foram preenchidos por uma rotina maçante que, pouco a pouco, como uma sanguessuga ensandecida, foi consumindo toda a harmonia e felicidade do casal. Atualmente, o relacionamento de André e Juli encontrava-se como um móvel muito vistoso por fora, mas corroído por dentro por cupins e outros insetos pertencentes ao reino do comodismo, prestes a desmoronar a qualquer momento. Era uma questão de tempo.
No fundo, André sabia. Só que fazia questão de não enxergar o óbvio. Antes de se entregar, ele lutaria até o fim. Faria de tudo para recuperar os velhos dias felizes e envelhecer ao lado de Juli, como prometera no altar. Porque casamento para ele era para vida toda. Não iria descartar anos de relacionamento no primeiro problema sério que estavam enfrentando. Mesmo com a permanente sensação de que só ele queria que a relação desse certo. Mesmo assim, André não iria desistir. Ficaria frustrado para sempre se desistisse sem lutar pelo que acreditava e pelo que queria. E o que ele queria era acertar seu casamento com Juli. 2 Raquel Que esta seja uma boa semana. Que o trânsito não esteja caótico, ou que, pelo menos, não tenha tantos motoqueiros nas ruas querendo arrancar o retrovisor do meu carro. Que meu chefe não esteja de mau humor. Que os próximos cinco dias sejam doces, tranquilos e que passem voando para que a sexta-feira chegue logo… Na zona oeste da cidade, Raquel repetia seu mantra antes de sair da cama para enfrentar mais uma semana de trabalho. Ela não era uma mulher supersticiosa, mas, quando lembrava, gostava de pisar com o pé direito antes de se levantar. Quando lembrava, também gostava de se benzer e pedir aos seres superiores que a abençoassem durante seu dia. E foi o que fez antes de ficar em pé. Pediu bênçãos e proteção para si e para seus familiares. E agradeceu pela vida boa que tinha, pelo filho maravilhoso, um verdadeiro presente divino, e pelo marido perfeito que era tudo em sua vida. Ao pensar no marido, Raquel olhou para o outro lado da cama buscando por Alberto, mas, como sempre, ele já havia saído para o escritório antes mesmo de ela acordar. Após um banho morno, Raquel correu os olhos para as opções de seu closet e optou por umvestido azul marinho de corte reto e elegante, um sapato de salto alto vermelho que combinasse comsua bolsa e poucas bijuterias. Inspecionou sua imagem no espelho, ajeitou o cinto do vestido e escovou novamente o cabelo — agora castanho acobreado e na altura dos ombros — até ele brilhar. Não era seu aniversário e nem tinha nada de especial acontecendo para se vestir daquela maneira, mas estava muito satisfeita com o resultado. Alberto, com certeza, aprovaria sua escolha. Anotou mentalmente, enquanto passava camadas de rímel nos cílios, torcendo para que ficassemmais longos e espessos, que convidaria Alberto para passar o final de semana na Riviera de São Lourenço.
Pedro adora ir à praia, pensava ela, amadurecendo a ideia e animando-se com a possibilidade de um final de semana de sol e diversão com a família. Decidiu que, quando chegasse ao trabalho, ela mandaria um e-mail para Alberto, propondo o passeio. Depois de pronta, Raquel foi para sua primeira batalha do dia: acordar Pedro para ir para a escola. Ela tinha menos de uma hora para tirá-lo da cama, ajudá-lo a se vestir, preparar seu desjejum e deixá-lo na escola antes das sete e meia da manhã. — Pedro… Peeeedro. Filho, hora de acordar. Escola. Vamos? — Tô com sono, mãe. Posso faltar hoje? — Eu sei que você está com sono, mas é dia de escola. — Não quero ir… — Atenção! Eu vou ligar o cronômetro e o jogo vai começar — pronto, ela havia dito as palavras mágicas. — Vamos lá, meu campeão, hora de ir para o treino. — Sim, senhora treinadora — respondeu ele, dando um pulo da cama. Pedro era fanático por futebol, e Raquel, como toda mãe que trabalha fora e tem o tempo contado, fazia do futebol seu grande aliado para tirar Pedro da cama mais rápido e sem brigas. Essa havia sido, de longe, sua maior sacada. E mais uma vez tudo deu certo. Ela deixou Pedro na escola no tempo justo e seguiu para o escritório, como fazia todas as manhãs. Às vezes, sentia-se como uma super-heroína em ação: acordar cedo; arrumar o filho para a escola; enfrentar o trânsito para chegar à escola; enfrentar novamente o trânsito para chegar ao trabalho; trabalhar o dia inteiro; aturar o chefe incompetente e folgado; lidar com clientes exigentes; se esquivar das intrigas e das fofocas de escritório; se desdobrar em mil para atender e agradar à mãe carente, à irmã egoísta e folgada; aos amigos; ao marido; ao filho… E ainda arrumar um tempinho para cuidar de si mesma. — Muito bem, aqui estou! Agora é só passar oito horas dentro desse prédio e depois voltar para casa — disse para si mesma, assim que desligou o carro na garagem do prédio, na zona sul da cidade. Do estacionamento até o décimo quinto andar, como de praxe, deu bom dia para todas as pessoas que passaram por ela. Ao chegar à sua mesa, partiu para seu ritual matinal: ligou o computador, deu uma passada de olhos nos e-mails (nada urgente, graças a Deus); ligou para o ramal da Simone e combinou de descer para tomar café em cinco minutos. Elas adquiriram esse ritual e se mantinham fiéis a ele desde que começaram a trabalhar na Solve Solutions, havia oito anos. Simone era uma mulher na casa dos quarenta anos, bem conservada, bem-sucedida como coordenadora de Recursos Humanos, falante, culta e solteira. E Raquel se identificou rapidamente com seu jeito espontâneo e expansivo de ser, tornando-se sua amiga-confidente. Alberto, no entanto, nunca aprovou a amizade das duas. — Algo tem de errado com a Simone — comentou Alberto, quando Raquel convidou Simone para jantar em sua casa, anos atrás, logo que a amizade entre elas se firmou.
— Não tem nada de errado com ela, amor. Ela só escolheu ficar sozinha. Isso é muito machismo de sua parte. Deselegante até. — Pois eu acho que ela tem dupla personalidade. Uma, que é uma máscara, que ela usa no trabalho e com as amigas. E a outra, a verdadeira, que ela revela para os homens quando avança emum relacionamento. E logo em seguida, eles fogem. — Que horror, Alberto! Você fala como se conhecesse pessoas com dupla personalidade. — Infelizmente eu conheço. — Por que infelizmente? — Porque sim. Raquel gostava de Simone e achava de verdade que Alberto falava aquilo só para implicar. Ela era a única no escritório com quem podia conversar sem ter o pé atrás. E naquela manhã, tomando seu café preto, Raquel ouvia todos os detalhes do final de semana da amiga com o bonitão do departamento de informática — a nova e promissora conquista de Simone. Mas como tudo que é bom dura pouco, Raquel precisou subir para a primeira reunião do dia com Gaspar. — Almoço ao meio-dia? — perguntou Simone, antes de abrir a porta da sala de Gaspar. — Acho que hoje não vai dar. Gaspar me chamou para almoçar com um cliente promissor. Mas, você sabe, ele pode cancelar de última hora. Eu te aviso. — Ok. Boa sorte com a fera. — Obrigada. Bom trabalho! — desejou para Simone. Em seguida, abriu a porta do escritório de seu chefe e o cumprimentou com a formalidade de sempre.
— Bom dia, Gaspar. — Oi, Raquel. Entre, por favor, e feche a porta. O Xavier vai ligar em cinco minutos. Está com tudo aí? — perguntou ele, olhando para as mãos vazias de Raquel. E foi, então, que Raquel se lembrou da lista de pendências que fez durante o final de semana emsua casa. Ah, merda! — Algum problema? — indagou ele, fitando o semblante pesado que Raquel assumiu em seu rosto. — Eu esqueci a lista na minha casa! Eu não sei como isso foi acontecer. Costumo ser tão organizada, você sabe. Sinceramente, não sei explicar. Nunca me aconteceu antes. Que droga! Gaspar a fitou com desprezo e ela podia bem imaginar os pensamentos que estavam cruzando a mente do seu chefe. Ele detestava funcionários incompetentes. Até mesmo dos mais competentes, como Raquel, não admitia erros, falhas, esquecimentos. Nada. — Mas não se preocupe. — adiantou ela — Eu vou pedir ao motoboy para ir à minha casa buscar. Em meia hora ele vai e volta. — Você está de brincadeira? O Xavier vai ligar em cinco minutos e você não está com a lista aqui? Não salvou no computador? — Eu fiz em um caderno… Eu anotei tudo, os problemas e as soluções, e também algumas sugestões de melhorias. — Caderno? Você trabalha em uma empresa de tecnologia e ainda usa cadernos? — Eu não levei o computador para casa nesse final de semana e fiz em um caderno. —justificou, sentindo-se uma idiota. — Eu não acredito. — Poxa vida, cometi um erro! Vou ligar para o Xavier e ver se é possível atrasar a reunião em meia hora. Vou dar um jeito. Gaspar surtou.
E como Raquel o conhecia muito bem, deixou que ele explodisse. Ela sabia que enquanto ele não falasse tudo o que pensava a respeito dela e da situação, ela não teria chance de abrir a boca. Então, engoliu o orgulho e a raiva que estava sentindo de si mesma e dele, e escutou. Quando teve chance, ela avisou: — Vou para minha mesa pedir um motoboy para ir buscar a lista em casa e ligar para o Xavier. Calma que eu vou resolver isso. — e saiu às pressas da sala, batendo a porta mais forte do que queria. Droga! Merda! Como fui esquecer a maldita lista em casa?, Raquel se punia enquanto marchava para sua mesa com os punhos cerrados de raiva. Chegando lá, jogou o peso de seu corpo na cadeira e ligou para sua casa para orientar Matilde, sua funcionária, para que pegasse a lista na mesa do escritório, colocasse dentro de um envelope e deixasse na portaria para o motoqueiro pegar. Mas Matilde não atendeu ao telefone. Ligou mais uma vez, já que ela poderia estar lavando o banheiro sem conseguir chegar a tempo de atender. Nada. Deixou chamar até cair na caixa postal. Ligou pela terceira vez. Nada. Tentou o celular dela: desligado. Será que Matilde ainda não chegou? Ah, droga, mais essa agora? O que eu faço? Decidiu primeiro que precisava ligar para o Xavier e explicar a situação. Usou todo o seu charme e lábia com ele. Nesses momentos, ela até que gostava de ser bonita e articulada. Os homens mais atirados, como Xavier, sempre caíam em sua lábia. E assim ela conseguiu adiar a reunião para onze horas da manhã sem maiores transtornos. Depois, avisou Gaspar que iria até sua casa buscar a lista. Que dia! Não eram nem 9 horas da manhã e já estava assim? Será que ninguém havia ouvido seus pedidos? Ela tinha começado o dia bem, com tudo acontecendo dentro do padrão normal estabelecido para as segundas-feiras, e bastou uma lista esquecida em sua casa para desequilibrar tudo. Porém, como Raquel não era mulher de ficar reclamando do leite derramado, pegou sua bolsa e partiu para casa, determinada a colocar seu dia de volta nos trilhos. No caminho, foi pensando em sua vida. Lembrou de algo que as pessoas sempre diziam: timing é tudo na vida.
Também existiam músicas que falavam disso, poemas, frases, “Estar no lugar certo e na hora certa”, entre tantas outras. E Raquel sabia que não estava na hora certa, mas, com certeza, estava no lugar certo quando conheceu Alberto. Ela cursava engenharia da computação na Poli, e Alberto, administração na FEA, ambas escolas da USP, a Universidade de São Paulo. E foi pura coincidência ela ter escolhido uma área mais reservada perto da FEA para descansar depois de uma maratona de provas, e Alberto ter decidido fazer o mesmo. Ela estava sentada debaixo da sombra de uma grande árvore, tomando seu refrigerante diet, quando Alberto passou e ela, automaticamente, começou a fazer as comparações de praxe com seu primeiro namorado. Raquel tinha esse péssimo hábito. Sempre que achava um rapaz bonito, imediatamente o comparava ao ex. Apesar de se sentir otimista com o início da faculdade, e consequentemente de uma nova vida, ela ainda pensava no ex muito mais do que gostaria. Uma simples lembrança do seu perfil a tirava completamente do eixo, fazendo seu coração disparar e deixando-a com um aperto enorme no peito. Quando Alberto parou no meio do caminho, deu meia volta e veio em sua direção, ela quase riu dele. Ele não tem nada a ver. Nem de longe se compara, pensou, para logo em seguida se condenar. Eu preciso parar com isso. Alberto, por sua vez, se mostrou simpático e insistente. Lutou por ela, mesmo quando ela o tratou com indiferença. Não se afastou e não perdeu o interesse nem quando Raquel confessou que, talvez, não sentisse por ele o mesmo que sentiu, ou ainda sentia, pelo ex-namorado. Ainda assim, Alberto foi persistente e compreensivo. Aos poucos, a dor permanente em seu coração foi se abrandando, como acontece com todo mundo que sobrevive a um amor frustrado, e Raquel começou a encarar Alberto como uma possibilidade. Ele tinha se tornado um bom amigo, aquele que está presente em todas as horas, inclusive nas mais difíceis. Ela gostava disso nele. Gostava também da determinação e da ambição que tinha com seu futuro. Gostava quando ele falava: Você vai ver, Raquel, um dia serei presidente de uma grande empresa e nós vamos passar os finais de ano na praia. Cada ano será uma praia diferente. Na época, Alberto tinha apenas 21 anos e ela o admirava por ser tão batalhador e otimista. E as coisas realmente aconteceram conforme Alberto almejou.
Ainda na faculdade, e já namorando Raquel, ele conseguiu um estágio como office-boy na Oxion Tecelagens. Depois que se formou, foi promovido a administrador júnior, o salário aumentou e, aos poucos, foram conquistados espaço e a confiança do dono da empresa. E chegou a ser o presidente, sua posição atual. É o homemde confiança do dono da fábrica, o responsável por tornar uma pequena empresa familiar em “uma gigante dos tecidos”, como o próprio Alberto gostava de chamar. Sempre que pensava nele dessa forma, Raquel sentia-se orgulhosa do marido. Da capacidade que ele tinha de transformar coisas pequenas em grandes feitos, da sua inteligência ímpar e do homem bonito e bem-sucedido que ele havia se tornado. Na época das vacas magras, Raquel esteve firme e forte ao lado de Alberto, trabalhando como analista de sistemas em empregos medíocres, encarando metrôs lotados, ajudando com as contas e com as despesas da casa, e atravessando os invernos com seu velho e surrado casaquinho de lã azul marinho. Raquel tinha até um lema para eles: o casal que resiste à dureza será feliz na fartura. Mas tudo aquilo era passado. Os dois, depois de muito trabalho, conseguiram estabelecer uma vida estável e funcional juntos. Se não eram almas gêmeas, pelo menos haviam conquistado uma cumplicidade e um sentimento muito forte que os unia até hoje. Ao longo do caminho até a sua casa, Raquel tentou falar com Alberto por duas vezes, mas sem sucesso. Queria lhe contar o ocorrido. Ele, com sua autoconfiança e tranquilidade, saberia como acalmá-la. Deve estar em alguma reunião, pensou, jogando o celular dentro da bolsa, e pisou fundo no acelerador. Vinha chuva pela frente e ela queria estar de volta ao escritório antes que o mundo desabasse. — Matilde? — chamou Raquel, entrando em seu apartamento. — Matilde, onde você está? Só voltei para pegar um documento no escritório. Impossível se fazer ouvir com aquele barulho de aspirador de pó misturado a música brega de rádio AM. Tem gosto pra tudo, pensou Raquel, entrando no escritório. Ali estava ela: a lista de pendências, cuidadosamente elaborada durante a tarde de domingo para a reunião com Xavier. Pegou o papel, ainda sem entender como foi que ela havia se esquecido dele, colocou dentro de umenvelope e saiu do escritório. — Já estou indo, Matilde — gritou sem ser ouvida por causa da música. Ao chegar à porta, ela parou. Aquilo não estava certo.
Não havia problema algum em Matilde trabalhar ouvindo música. Mas naquele volume? Não! O que os vizinhos iriam pensar? E devia ter sido por isso que ela não atendeu ao telefone: não conseguiu ouvir por causa do volume alto. Poderia ter bom senso e baixar um pouco, certo? Com esse pensamento, Raquel caminhou para seu quarto, que era o lugar de onde a música vinha, e escancarou a porta: — Matilde, você pode me explicar o que es… Ma… Maaatilde?!! — guinchou horrorizada, segurando-se na maçaneta para não cair no chão. — Raquel? — disse uma voz masculina, virando-se para a visita inesperada. O que é isso? — Al. Alberto, o que você… O que é significa isto? — Calma, amor, eu vou explicar. — Calma? Que calma? — ela berrou, consternada com o que via. — Vamos conversar — pediu ele, com um olhar aflito. — Posso te explicar tudo. Explicar o que não pode ser explicado? Explicar o que ela mesma via com seus próprios olhos? — Alberto… Meu Deus, o que está acontecendo? Como você… — Amor, eu posso explicar. — Por que você está usando um vestido de chif on, Alberto? Por que você está de salto alto? Por Deus, por que você está maquiado e com esta peruca horrorosa, aspirando o carpete do nosso quarto? — Eu vou explicar… Mas preciso que você fique calma. Calma? — Onde está Matilde? — gritou ela, imaginando uma cena louca, em que Matilde tambémestaria com um de seus vestidos de festa, esfregando a privada do banheiro, toda emperiquitada. — Eu dispensei Matilde. — Dispensou Matilde? Por quê? — Foi só por hoje. Porque eu… Hã… Aham — Alberto tossiu, sem saber o que dizer — Bem, eu gosto de limpar a casa usando… hum… roupas femininas. — Como é que é? Alberto, você é gay? — Claro que não. Sou espada, Raquel! Sou macho! — Eu não chamo isto de macho! — gritou Raquel completamente histérica — Você… Gente, eu só posso estar em um pesadelo, de verdade, deve ser isso. Raquel esfregou os olhos com força e tornou a abrir. Alberto continuava parado à sua frente, segurando o aspirador de pó, em cima de grotescas plataformas douradas. — Desliga isso! — ordenou irritada, jogando o rádio, que estava em cima da cama, no chão. Wando, que cantava “Fogo e Paixão”, parou de cantar no momento em que o rádio caiu e as pilhas rolaram pelo chão do quarto. Assustado, Alberto atendeu de pronto, desligando o aspirador e catou o radio de pilha do chão. Rádio de pilhas? Gente…!
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