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A Senhora – Catherine Clement

— Já é noite, murmurou o ancião na varanda de mármore.—O sol vai mergulhar por detrás da Suleimania; a hora em que os janízaros sobem até às tabernas para fumarem e embebedarem-se ruidosamente. Como todos os dias o meu jasmineiro roubar-me-á uma vez mais a última luz, a mais fulva. Avisto apenas, na ponta do Topkapi, os telhados brancos do harém e, sob as árvores obscurecidas, os clarões das primeiras tochas. Mal se distinguem, ao longe, no Bósforo, as lanternas daquela embarcação tardia que se faz ao mar. Eterno navio, semelhante a todos os que nos trouxeram, a Senhora e a mim, de uma madrugada de Lisboa, há mais de quarenta anos, até este horizonte onde ela desapareceu. Nunca acreditei que ela pudesse fugir sozinha numa nau, sem mim. Eu, duque de Naxos, príncipe judeu do Império Otomano, eu, seu sobrinho, seu principal apoio… ela abandonou-me. Durante toda a nossa vida combatemos os imperadores e os reis do Ocidente; atravessamos juntos a Europa inteira e nada nem ninguém pôde separar-nos, nem os príncipes, nem os papas, nem os rabis! Mas a Senhora era como o Mediterrâneo, incerta, violenta, agitada por imprevisíveis aragens. E quando o vento de agosto se levantava no seu coração nada podia parar a tempestade. Desde o dia em que ela me deixou, espreito todas as noites aquela vela como se fosse ainda a mesma… E contudo sei que ela morreu, o Esplendor do exílio e a Flor luminosa dos marranos, a Estrela da manhã, aquela que, qual Ester ou Judite, foi um homem pela coragem e a mãe de todos os judeus que quiseram seguir a via do Senhor… Foi isso que nos cantaram os piedosos rabinos de Istambul, quando nos chegou a notícia da sua morte. Que tenho eu a ver com este palácio do Belvedere por onde arrasto a minha memória, a minha esposa muda e a dor que me atormenta os rins? Vai ser preciso render-me à evidência e deixar aqui este magro despojo que já nem consigo aquecer. Será em breve; as imagens precipitam-se como pássaros desorientados. Não voltar a ver essas naus. Dir-se-ia que traçaram sulcos nas palmas das minhas mãos. Na linha do coração, profundamente, um pequeno caíque balançando sobre as águas do Corno de Ouro… Ah! Não quero ver! Quero cerrar os punhos e mantê-los assim, como sempre estiveram. Devo ter passado metade da minha vida no mar, de punhos cerrados. Todos hão de se regozijar quando eu morrer. Agora que já não sou nada, ouço-os daqui, esses embaixadores do Ocidente junto da Sublime Porta, ouço-os a escarnecer, é fácil agora. O judeu Josef Nasi sou eu. O sobrinho da Senhora, o conselheiro secreto das horas más da Europa, o verdugo e ladrão dos reis, esse Judas sou eu, este velho fraco e com frio. Sim, ela e eu combatemo-los. Todos. Mas nunca ergui a espada contra nenhum homem. É claro que se tivesse sido preciso tê-lo-ia feito sem hesitar; uma ordem de Beatriz teria bastado, uma só palavra, um só gesto e eu teria obedecido logo.


Sempre me submeti aos seus desejos. Ninguém podia resistir-lhe; nunca ninguém o conseguiu, à exceção de um rabino obstinado que lhe fez frente tremendo dos pés à cabeça. Ela inspirava a todos, e mesmo a ele, respeito e veneração. A não ser assim, como teria ela merecido o nome que lhe dão ainda hoje os judeus do Mediterrâneo, Senhora? A Rainha. A minha, e ninguém sabe. Vou morrer e ninguém sabe nada de nós dois! Ela permanecerá para a eternidade a Senhora de um povo inteiro no exílio, e ninguém saberá que ela foi, acima de tudo, o meu céu e os meus infernos! Dona Mendes, também chamada Gracia Nasi ou, ainda, a Senhora. Quando a conheci chamavase Beatriz. Capítulo I 1510-1536 A menina da maçã vermelha (Infância de Beatriz de Luna e João Miguez, seu sobrinho; o regresso dos Conquistadores ao porto de Lisboa; o dia da carraca; casamento de Beatriz e Francisco Mendes; os progressos da Inquisição em Portugal; primeiras perseguições aos judeus conversos; morte de Francisco; a família Mendes foge para Londres.) Nós, os marranos vindos da Península Ibérica, nunca tivemos o direito de usar os nossos nomes judeus. Tínhamos de escolher entre partir ou mudar de identidade. Quantos nomes usamos nós, quantas vezes os mudamos… Perpétuos mascarados, eis o que somos. Em Portugal, era João Miguez, na Inglaterra, em Veneza, em Ferrara, John Miquez, Juan Micquez ou, ainda, Juan Micas, como queiram; aqui, Yusuf Nasi… E ela, como lhe chamarão os vindouros? Gracia, Hannah ou Beatriz? A Senhora nasceu em Portugal, em 1510, sob o nome cristianíssimo de Beatriz de Luna. Eu vim ao mundo cinco anos mais tarde; era filho de seu irmão mais velho, que tinha, por seu lado, tomado o nome de Miguez. O nosso verdadeiro nome era Nasi, que quer dizer príncipe. Pobres de nós! Nessa época já não éramos príncipes, mas proscritos disfarçados. Quando os reis espanhóis decidiram expulsar o nosso povo, a Senhora não era nascida. Mas a história dessa calamidade marcou, desde o nascimento, os filhos dos primeiros exilados. Ah! A Queda do Templo pode ser a nossa chaga sempre aberta, mas não creio que o primeiro Êxodo tenha sido pior que o de 1492. Os que deixaram o solo da Palestina, nossa pátria perdida, puderam acreditar, durante toda a vida, que voltariam a ver Jerusalém e que reconstruiriam o templo destruído; mas, em 1492, quando a religião judaica foi proibida, quando os nossos antepassados tiveram de abandonar a Espanha e depois Portugal, o exílio era absoluto, e o povo judeu estava condenado a fugir. Durante quinze longos séculos os nossos antepassados tinham vivido em paz sob o domínio dos mouros; tinham aconselhado príncipes, e até reis cristãos eles tinham medicado; o meu próprio pai usava ainda o título de médico do rei. Foi um dos nossos, o pouco clarividente Abraão Sênior, Grande Rabino de Castela, quem favoreceu o sinistro casamento de Fernando e Isabel, os Reis Mui Católicos, a quem devemos toda a nossa desgraça. Fizeram da Inquisição um tribunal real que começou a perseguir-nos. Depois, dez anos mais tarde, quando caiu o pequeno e fraco rei Boabdil, último soberano de Granada, assinaram um édito de expulsão dos judeus da Espanha. O dia 31 de março de 1492 foi um dia de luto para o povo judeu e assistiu ao começo de novo êxodo. Deram quatro meses aos nossos antepassados para deixar tudo; eles partiram em plena canícula, no mês de agosto, pelas estradas calcinadas, e levaram apenas as Toras.

Diz-se que, para os encorajar naquela marcha esgotante, se cantava e que as crianças tocavam tambores; houve mortes, houve nascimentos; uns foram até o mar, ao sul, e alguns embarcaram; outros foram para Portugal. Foi o caso da nossa família, que se instalou na capital. Se os judeus eram pobres, pagavam cada um oito cruzados à chegada e obtinham oito meses de tranqüilidade; se eram ricos, à razão de cem cruzados por pessoa, podiam estabelecer-se emPortugal. Os Nasi tinham dinheiro; permaneceram, mudaram de nome e acreditaram estar salvos. Era não contar com o obstinado fervor de Isabel, a Católica, que deu sua filha Isabel a Manuel de Portugal; quatro anos depois do édito espanhol, era a vez do rei Manuel obter do Papado o direito a expulsar os seus judeus como os soberanos da Espanha. Foi o que em breve aconteceu. Interditados, os judeus de Portugal puderam apenas escolher entre a fuga e a conversão. Alguns decidiram partir; outros, com o coração cheio de raiva, aceitaram o batismo; outros ainda foramarrastados à força para as igrejas. Por fim, vinte mil dos nossos irmãos foram reunidos no cais do porto de Lisboa; por ordem do rei, não lhes foi dado de comer nem de beber para os obrigar a converterem-se. Os que resistissem teriam, se mantivessem a sua posição, o direito de partir. Mas o soberano não devia ter as idéias claras; a história tomou outro rumo. Esse orgulhoso rei usava um título tão longo como os do Padixá que rema no Império Otomano. Fazia-se chamar “Senhor da Conquista, da Navegação e do Comércio da Etiópia, da Arábia, da Pérsia e da índia”. Era a época em que os portugueses iam conquistar tesouros longínquos; o desejo do ouro e das especiarias ardia nos reis, e as naus partiam à procura das índias. Era lá que se encontrava a verdadeira maravilha, o verdadeiro objeto de sua cobiça. Manuel I imaginava-se conquistando o mundo. Não deixava de ter razão: os navegadores portugueses mostravam-se os melhores do seu tempo, como testemunhava o lendário cognome do antepassado real, Henrique, o Navegador. O Senhor das Conquistas hesitou: com os judeus partiria o dinheiro. Entretanto deixou que alguns excessos fossem cometidos no cais. Depois teve uma súbita inspiração. Quando chegou o momento da partida dos exilados, o rei Manuel mandou batizar à força, comgrandes baldes de água benta, os que iam embarcar. Eu nada disso vi, porque corria o ano de 1496, mas contaram-me a cena tantas vezes que a imagino perfeitamente. No cais ventoso de Lisboa, os nossos judeus cheios de fome, com os braços pejados de filhos, foram subitamente aspergidos de água suja e santa enquanto um padre de vestimenta dourada traçava sobre eles, mas de longe, o sinal da cruz… Devidamente molhados, ficavam obrigatoriamente fazendo parte do povo dos convertidos, a quem os inquisidores, esses arrivistas da Igreja, tinham chamado “cristãos-novos”. O rei Manuel, convencido pelos seus navegadores a não deixar escapar o dinheiro dos bancos judeus, de que eles tinham tanta precisão, proclamou cristãos todos os judeus de Portugal. E estes resignaram-se, ajuizadamente, a mudar os seus próprios nomes para nomes bem católicos.

Era apenas o começo das perseguições; os nossos antepassados não percebiam ainda a sorte que lhes estava reservada e continuavam a ter esperança na clemência dos Reis Católicos. Estavamenganados; o terrível ano de 1506 viu os nossos primeiros mártires. Minha velha ama tivera tanto medo que era incapaz de contar o que vira; mas ao cair da noite, se a claridade de um simples incêndio iluminava a cidade, fechava as portas e escondia-se num canto escuro, apertando-me nos braços. Às vezes, sem querer, articulava palavras soltas. Mais tarde eu soube. Portugal vira chegar primeiro as hordas miseráveis de judeus da Espanha com os filhos. Emseguida houvera uma seca horrível; depois declarara-se a peste. As pessoas morriam nas ruas, como aqui, quando estão empestadas, com a boca encarquilhada e o corpo negro; os portugueses começaram a murmurar contra aqueles imigrantes que lhes traziam desgraças. Mas a peste, a seca e o fogo, os mortos nas ruas, não era ainda o pior. Minha ama gritava de pavor quando em sonhos lhe vinha a lembrança do massacre de Lisboa, alguns meses depois da epidemia. Num fim de tarde a igreja dos dominicanos foi iluminada por um clarão vermelho. A imagem da Virgem, a afável Madona de olhos erguidos para o céu, aureolada de chamas imateriais, exigia o sangue dos judeus: era o que proclamavam os frades. Toda a noite a Virgem flamejou. O dia mal começava a nascer quando três padres ascéticos, os rostos cobertos de cinzas, saíram da Igreja e se puseram a correr pelas ruas, em altos brados, brandindo o crucifixo. Ainda me lembro do que gritavam: “Piedade, piedade, acorrei em auxílio de Cristo e da religião cristã! Vinde conosco os que quiserem combater os judeus e dar-lhes a morte!”. De manhãzinha, o marido de minha ama havia sido degolado por um dos três dominicanos. Estava aberta a caça aos porcos. São mesmo essas as palavras que a velha ama dizia em sonhos. “Porco sujo!” Para os portugueses da conquista havíamos nos tornado porcos. Os seus porcos. Eles sabiammuito bem que a carne desse animal nos era proibida pelas leis sagradas da nossa religião. Foi por essa razão que nos chamaram “marranos”, por escárnio, porque essa é a palavra que designa o porco. Um porco, o que merece é que lhe ponham as tripas ao léu. Viram-se então mulheres grávidas espetadas em lanças, crianças cortadas ao meio, pelo gume das espadas, em memória do rei Salomão, e cadáveres rebentados às centenas. Viu-se tudo isto.

Pensando bem, constato poucas diferenças entre tal matança e as que são cometidas pelos janízaros do Império; nada se parece mais com uma criança morta do que outra criança morta. Mas éramos nós essas crianças, nós éramos o rebanho ameaçado. E os terrores de minha ama refletiam os de um povo inteiro que esperava, na agonia de conhecer a sua sina. Os cristãos-novos tornaram-se mais prudentes; o seu cristianismo forçado fez-se mais demonstrativo. Era bem necessário; e depois, no fundo, que importância tinha isso? Na verdade mudáramos de nome. Mas não de alma nem de coração. E assim, minha jovem tia, cujo nome hebreu era Hannah e a quem chamávamos Gracia, foi batizada, ao nascer, com o nome de Beatriz. A mim, quando nasci, cinco anos mais tarde, deram-me em segredo o nome de Josef, mas em público chamavam-me João. *** Quando ela era apenas uma mocinha, tínhamos então uma diferença de idades bastante para que eu a respeitasse, mas insuficiente para impedir-nos de brincarmos juntos. Alguma vez, enquanto criança, pensei que ela era minha tia? Nunca. Já então a considerava a minha Beatriz. Minha tia, aquela menina magra, de cabelos ruços, encaracolados como lã de cordeiro, de olhos negros, brilhantes como contas de vidro? Aquela companheira de jogos, a única amiga da minha infância? E como teria eu sequer podido pensar em tal parentesco? Meus avós e pais moravam todos juntos numa vasta casa escura, atrás do porto. A família Nasi vivia com simplicidade; o exílio arruinara-nos quase por completo. Recordo janelas estreitas que raramente se abriam para a rua, por prudência; em certas salas o chão era ainda de terra batida; tínhamos apenas um criado, Pedro, e duas criadas, sem contar a minha ama. Defronte da porta de entrada, numa parede branca, fora ostensivamente pendurado um grande crucifixo de madeira pintada, e o candelabro de sete braços estava escondido sob uma pilha de panos. De minha mãe guardei a lembrança de uma jovem mulher de preto, de cabelo prematuramente encanecido e um rosto inquieto; mas o seu sorriso bondoso protegeu-me a infância contra as misérias da época, e eu não era infeliz. Meu pai, muito mais velho que a esposa e de caráter mais fatalista, trouxera a muito custo de Córdoba, onde nascera, todos os seus livros, tesouro mais precioso que o ouro, dizia ele; quando não exercia a sua atividade de médico, fechava-se na biblioteca, cuja entrada me estava vedada; muitas vezes ali passava a noite embrulhado num grande gabão à antiga cujas abas tantas vezes roçaram pelo chão que já não tinham cor. Ocupava-se pouco do filho; por vezes fazia-me uma festa e prometia ensinar-me as línguas que me permitiriam ter acesso aos livros dele Arranjou tempo para me ensinar latim, que eu decifrava ao ritmo de uma página por dia num dos seus volumes preferidos, De onginibus rerum, onde se encontravam belas respostas a todas as perguntas do mundo: quem era o inventor da roda e dos sinos, de quando datava o celibato voluntário, e outras maravilhas. Meu avô Luna, também médico, era um velho; perdera muito cedo a primeira mulher, mãe de meu pai, e esperara muito tempo antes de voltar a casar. Na verdade, tomara tal decisão ao chegar a Portugal, como muitos dos nossos, para engendrar novos judeus e reforçar o nosso povo. Sua jovemesposa, mãe de Beatriz, não se parecia nada com a minha; a pele muito branca e os longos cabelos ruivos causavam espanto, mas a beleza regular dos seus traços seduzia os corações; arrebatada, autoritária, enchia a casa com as suas gargalhadas ou com as suas cóleras; vestia-se de cores garridas, nunca parava quieta. Alguns anos depois do nascimento de Beatriz, deu à luz uma segunda filha, Brianda. Em criança eu era inquieto como mercúrio; minha ama já não dava conta do recado e o velho Pedro, que a idade impedia de correr, queixava-se das minhas fugas incessantes. As criadas ocupavam-se da casa e de Brianda, a minha tia pequenina, e minha mãe andava cansada. Eu passava todo o dia fora de casa e procuravam-me ansiosamente por todo lado; as ruas do porto não eram seguras, os marinheiros rondavam por ali, os dominicanos também, e eu poderia fazer disparates, falar do candelabro, deixar escapar inadvertidamente uma palavra de hebraico ouvida por acaso… Para libertar minha mãe de um filho demasiado turbulento, confiaram-me à jovem irmã de meu pai.

Beatriz era uma criança triste; pensavam que ela tomaria conta de mim e que eu a alegraria. Filo, de fato, sem sequer pensar; eu era estouvado, irrequieto, às vezes imprudente, e não obedecia a nada. A pobre Beatriz habituou-se a seguir-me para todo lado, sem conseguir controlar-me. Assim que púnhamos o pé fora de casa era eu o chefe. Durante muito tempo, Beatriz fora uma menina calada, criada na sombra da casa, e que nunca chorava. A primeira vez que prestei atenção à minha jovem tia foi por ocasião de uma daquelas festas familiares que organizávamos tantas vezes, apesar da falta de dinheiro e dos perigos. Os pais ocupavam-se de assuntos muito importantes; sentados à mesa, diante de um cozido de couves e de aves, falavam certamente dos dominicanos e Inquisição, a única coisa que os preocupava; as crianças aborreciam-se mortalmente. Eu devia ter cinco ou seis anos. Atrás da ampla saia de seda carmesim de minha tia-avó Luna estavam duas meninas. Uma não passava de um bebê barulhento, uma criança minúscula de cabelos ruivos encaracolados, corada de raiva e que berrava. Era minha tia Brianda, irmã mais nova de Beatriz. Meu avô avisou-me que a outra tia, Beatriz, ficava, daí em diante, encarregada de tomar conta de mim, mas Brianda gritava tanto que eu mal ouvi. Os pais chamaram a ama que levou a criança. Vi então a minha guardiã luminosa e perdida. Beatriz, de camisa de gola branca, bordada, e corpete verde, Beatriz de cabelos encaracolados, pálidos como a penugem dos dentes-de-leão que sopramos para fazer voar. Fitava-me muito séria, com um olhar de esquilo, ao mesmo tempo fixo e um pouco trêmulo, intenso e amedrontado. Mas, na realidade, não me via; através de mim era o vazio que ela olhava. Senti logo o desejo de animar aquela delicada boneca demasiado ajuizada. Mas ela não queria jogar pião; ela recusava-se a correr em casa, e olhava-me sempre um pouco espantada, sem se mexer, mesmo quando eu lhe puxava os cabelos. Então eu entreabria a porta devagarinho e fugia para o porto, lugar de delícias. Pequenino, agarrado à mão de minha ama, já ia ver os barcos levantar ferro. Meu pai falava-me muitas vezes dos navegadores que partiam à conquista, para os reis de Portugal, de uma ilha desconhecida, ou que procuravam descobrir um cabo, uma terra. Eles continuavam a perseguir essas índias obsidiantes que se encontravam dos dois lados do oceano, como se a Terra fosse redonda. Meu pai não apreciava muito essas expedições que custavam caro ao remo; dizia não compreender o porquê da substituição dos navios mercantes, que asseguravam há muito o comércio das especiarias, pelas naus de guerra dos soldados… As palavras “Novo Mundo” faziam-no encolher os ombros; resmungava contra essa paixão dispendiosa e entregava-se a um interminável elogio das velhas terras do Mediterrâneo, mais familiares e mais hospitaleiras. Ele não gostava do oceano; uma vez, uma só, subiu a bordo de um navio que partia para Londres.

Desceu antes do barco zarpar. Não tinha alma de marinheiro. Eu sim, e adorava o mar. Sabia tudo sobre as histórias lendárias do nosso país de adoção: como os conquistadores portugueses tinham descoberto Ascensão, Santa Helena, Trindade, cerca de vinte anos antes. Perdido de admiração pelo Rei Navegador e pelo seu casto isolamento nas terras desérticas de Ceuta, não cessava, apesar das irritações paternas, de fazer perguntas sobre aquele de nós que, sob o nome cristão de Cristóvão Colombo, partira em busca de novas terras, com o dinheiro judeu e a bênção da rainha Isabel, no dia seguinte àquele, maldito, em que fomos expulsos da Espanha. Por que não embarcara meu pai com ele? Estaríamos então no paraíso em vez de morrer de frio ao vento do porto; ele inventara para nós um novo reino e eis que dele estávamos privados! Era ainda um menino quando assisti ao regresso de Sebastião de El-cano, um basco. Foi em1522. A nau de alto bordo avistava-se de longe, com os costados redondos cheios de aberturas para os canhões. Enorme, avançava para o porto como um ganso majestoso, balançando aos últimos sopros do vento. À medida que se aproximava, eu distinguia as velas esburacadas, os cabos partidos, a madeira bolorenta. Alguns marinheiros esfarrapados mal se tinham de pé no barco fantasma; espetáculo de miséria… O capitão desceu da nau no maior silêncio. Era Dom Sebastião de Elcano; mas não era ele quem esperávamos. Dom Sebastião de Elcano fora o imediato do grande Magalhães, que descobrira um novo mar, tão calmo e tranqüilo que lhe dera o nome de Pacífico. Magalhães fora assassinado nas Filipinas, a sua brilhante expedição regressava com um oceano novinho em folha, um novo capitão e um herói morto. No entanto, tudo aquilo me exaltou o ânimo; cada uma das chagas do barco me parecia uma gloriosa cicatriz. É a primeira nau de que me lembro; cheia de remendos, de costuras, lamentável e fúnebre. Na época falava-se com entusiasmo do almirante Dom Vasco; em pleno coração de Lisboa erguia-se a enorme Casa das índias, que tratava de todos os assuntos relativos à terra de Vera Cruz e organizava esses mundos: a África, de onde vinha a malagueta, Nicobar, Sumatra e a Etiópia. Fora preciso cerca de um século para o encontrar, mas afinal havia-se conseguido: acabavam de descobrir naquela terra africana o Preste João, o imperador lendário de barba branca encaracolada, de pele negra, mas cristão. Eu sabia o nome de todos os navegadores—Rodrigo de Lima, Baltazar de Castro, Manuel Pacheco, Cabral—,gostava de todos eles, e tinha certeza de que, mais tarde, eu próprio iria pelos mares conquistar novas terras… E quando me confiaram à guarda de minha jovem tia, todos os dias, sem ela sequer se aperceber, a conduzia para o universo mágico e infinito do porto, onde ninguém nos poderia encontrar… Decidi que um dia ela partiria num barco comigo. Em casa chamávamos-lhe Beatriz. Minha mãe, para ter a certeza de que eu não usaria o nome secreto de Hannah, não o revelara para mim. Mas os ouvidos das crianças andam atrás das conversas dos adultos e eu não tardaria.a surpreender o outro nome clandestino, Gracia, tão doce, e que às vezes murmuravam entre eles. Um dia, brincávamos no cais escondendo-nos dos guardas entre as sacas de moedas de prata e os pacotes de coral, quando chegou uma nau que vinha da Guiné. Paramos para ver o desembarque; de repente, Beatriz mostrou-me, em cima de uma saca de malagueta, a pimenta africana cujo cheiro forte provocava dores de cabeça, um pobre negro, tintando de frio; falava na sua língua com umpapagaio cinzento, de penas quase brancas, uma linda ave de bico cor-de-rosa, que repetia as palavras numa voz estridente.

Então chegaram os ciganos. Eu adorava-os e puxei Beatriz. Os ciganos traziam preso à coleira um urso amordaçado e ummacaco comicamente vestido com um saiote escarlate bordado a ouro. Beatriz recuou um pouco, senti-lhe a mãozinha tremer; ela tinha medo de tudo. O macaco andou à volta dela, compassadamente, ao ritmo de um pandeiro. Os ciganos sorriram para Beatriz; tinham dentes de um branco resplandecente, pareciam fortes e alegres. Beatriz riu nervosamente e apertou-me a mão. O urso começou a bambolear-se, pesadamente, ora numa pata ora noutra, e o macaco saltou cadenciadamente por cima de um pau comprido. Então Beatriz riu mesmo; eu estava radiante. De repente, vindos não sei de onde, os arqueiros do rei correram para os ciganos e começaram a bater. Ignorávamos que o rei de Portugal decretara havia pouco a expulsão desses estrangeiros de pele tisnada que, segundo se dizia, tinham vindo das índias. Desde 1521, o rei já não era Manuel I, mas João, o terceiro do nome. A Inquisição não estava ainda oficialmente instalada em Portugal, mas fizera grandes progressos desde o triunfo dos Reis Católicos na Europa inteira. Os ciganos não eramjudeus, claro; mas o fato de serem estranhos bastava para serem expulsos. Corri contando que Beatriz, por sua própria iniciativa, fazia o mesmo. Ela era maior que eu; pelo menos, aos dezesseis anos, mais razoável… Mas não! Parecia paralisada. Sempre a conheci assim, pasmada diante da violência dos homens. Eu já estava longe, atrás dos edifícios do porto e ela permanecia imóvel, no meio dos ciganos, à mercê das pancada*s que choviam e que iam atingi-la… “Gracia!” Esquecera a regra. Gritara o nome proibido. Surpreendida, voltou a cabeça, viu-me, e pôs-se finalmente a correr para mim. Precipitou-se nos meus braços gritando o meu nome. “Josef.” Eu ainda não sabia que era esse o meu nome. Meus pais sempre me tinham chamado João. Nunca mais, desde o dia dos ciganos, ela me chamou de outro modo.

Não voltamos a vê-los. E durante muito tempo não voltei a chamá-la pelo nome judeu. O porto tornou-se o nosso único universo. Foi aí que lhe ensinei a gostar das viagens; foi aí que ela me ensinou a ver. Ela reparara no negro do papagaio cinzento muito antes de mim. Eu estava certo; a Senhora e eu fomos conquistadores. Mas a nossa história não tomou exatamente o rumo do meu sonho. Imaginava longas viagens onde descobriria com ela novas especiarias e coroas de pedras preciosas que lhe pousaria sobre a fronte grave para lhe arrancar umsorriso. O aroma das especiarias era inseparável do ouro e do triunfo, e esse perfume misto de canela, de noz moscada e de cardamomo permaneceu para mim o mais penetrante de toda a minha infância. Talvez ele representasse também a sede de coisas novas, já que nas nossas famílias, e segundo o costume, não se usavam especiarias. Beatriz detestava-as. Um dia quis obrigá-la a cheirar gengibre através das aberturas grosseiras dos fardos entrepostos no cais. Rasguei um pedaço de tela para tirar uma raiz muito seca e torcida, onde permanecia a delicada cor prateada da casca. Pus debaixo de suas narinas; agoniou-se e fugiu correndo. Para a fazer voltar, esburaquei um saco que transitara pela França e que continha um belo trigo de Dantzig que nos escorria entre os dedos; ficou extasiada, acariciou os grãos com as longas mãos de dedos finos enquanto eu mascava a minha raiz. Agarrar o trigo às mãos cheias era mesmo dela; e chupar o gengibre vindo das índias era mesmo meu. As especiarias não entravam no universo dos Nasi. Mas fundavam o império dos Mendes, os mais famosos conversos de Lisboa, que reinavam simultaneamente sobre as pimentas vindas do fimdo mundo e sobre as dívidas dos príncipes. Antes do regresso de Dom Sebastião de Elcano, a expedição de Magalhães conseguira escoltar até Lisboa trinta mil quintais de especiarias da Ásia, quase todas para os Mendes. Eu também assistira a esse primeiro desembarque. Que bela chegada! Os marinheiros cantavam já não sei que canção portuguesa onde o mouro deixara, de passagem, estranhas sementes musicais; no porto, os mercadores, no número dos quais se contavam os empregados da casa Mendes, esfregavam as mãos. Sim, fora verdadeiramente uma bela chegada, um soberbo espetáculo, com os tradicionais tiros de canhão. Quando desceram, os marinheiros contaram de que modo, para conquistar as especiarias, tinham enforcado nas vergas dos barcos umas quarenta tripulações. O Samoudir, rajá de Calicute, quisera resistir: fora preciso castigá-lo. Em seguida, vangloriaram-se de terem pilhado e incendiado um barco de peregrinos que regressava de Meca; e os mercadores extasiavam-se.

Eu também. Ficara alegre com a alegria deles como se tivesse comandado o ataque a Calicute e, infatigável, recomecei mil vezes a narrativa daquele dia memorável. Mais tarde, contei, exultante, a Beatriz como os nossos portugueses tinham por três vezes bombardeado Calicute antes de a conquistarem. A cada uma das vezes ela me largava a mão, com lágrimas nos olhos; uma estranha vergonha tomava conta de mim. Mas a culpa não era minha se tinham enforcado hindus em Calicute! E que importava um barco de infiéis queimados ? Outros tantos pagãos que não mais insultariam o reino de Portugal! Ah, eu era mesmo João, um portuguesinho no porto de Lisboa… Beatriz já era Gracia. Pouco importa. Foi comigo que ela descobriu o mar e os navios. Comigo ela foi, todos os dias, ver crescer a carraca gigante que levou mais de dez anos para ser construída e que devia chamar-se São João. Era o meu nome, seria a minha carraca. Escondidos atrás de um monte de toras de madeira recém-cortadas, vigiávamos o estaleiro como se fôssemos nós os secretos senhores dessa empreitada. De longe, falando baixo, ajudávamos os operários; às vezes, saindo do esconderijo, íamos levar-lhes água, fruta; eles conheciam-nos bem. Quando iam embora, trepávamos pelo imenso casco do qual se viam ainda apenas os costados; acariciávamos os troncos aparados e lisos, a marca dos nós da madeira, macia ao tato como a pele acabada de barbear. Era a minha carraca, mas Beatriz falava como se fosse sua. — Um dia, Josef, hei de levar-te na minha carraca. A primeira vez que ela disse isso, fiquei estupefato com a mudança. O tom autoritário não me deixava margem para dúvidas; Beatriz comandava. A minha Beatriz não era mais uma criatura medrosa que era necessário proteger, não. Era… como dizê-lo de outro modo? Era uma espécie de jovem varão. Para me tranqüilizar, punha-me a imaginar que ela falava da sua carraca como da nossa, e que ela me oferecia um presente para as nossas núpcias. Ai de mim! Já então esquecia que ela era minha tia. Creio bem que o ano dos ciganos e do regresso das naus de Calicute foi também aquele em que Carlos V assinou o decreto autorizando os judeus a instalarem-se em Antuérpia. Não prestávamos atenção; pensávamos nós, crianças, em tais coisas? As nossas famílias tinham o cuidado de não nos informar. Eu, excetuando o porto de Lisboa, não sabia nada da Terra, a não ser que era plana, e conhecia melhor a rota das especiarias que os caminhos do Império. Os capitães que voltavam do outro mundo como gloriosos fantasmas, mortos ou vivos, pareciam maiores que os reis coroados. Eu queria ser um deles, um rei dos mares.

Beatriz queria simplesmente partir. Percebi isso verdadeiramente apenas no momento da última partida, quando o seu lenço, qual gaivota, esvoaçou através do Bósforo. No tempo em que brincávamos no cais, ela era doida por aquelas maçãs pequenas, vermelhas e douradas, a que se dá brilho com um pedaço de lã, e que se tornam lustrosas como madeira encerada. Eu roubava-as para Beatriz; esfregava-as no meu calção e ela as mordia ainda com casca. Descansávamos sobre os montes de madeira úmida que cheirava a Trópicos e maresia; o vento vivo de Lisboa coloria-nos as faces; as nuvens ao passar lançavam sobre nós sombras caprichosas, e depois, fugindo, libertavam o azul do céu; e o sol, saindo bruscamente da cinzenta prisão, era como um grande martelo batendo-nos com força na testa. Os dentes de Beatriz cravados na polpa da maçã produziam um ruído seco e doce, e um pouco de sumo branco escorria-lhe para o queixo. Olhava-me por cima do fruto com um tal brilho de alegria nos olhos cor de avelã… A Maçã Vermelha. É o nome de um oráculo otomano que, de um século para cá, alastrou-se por toda a Europa e com o qual se mete medo às crianças: “O nosso imperador virá. Apoderar-se-á do reino de um príncipe infiel, tomará também uma maçã*vermelha e chamar-lhe-á sua. Construirá casas, plantará vinhas, porá sebes nos jardins, engendrará filhos; ao fim do décimo segundo ano de submissão da Maçã Vermelha, a espada do Cristianismo aparecerá e porá o Turco em fuga”. A Maçã é a capital do Império, que, no tempo do “príncipe infiel”, se chamava ainda Bizâncio. As primeiras casas foram construídas, nos bairros de Stambul, de Pera e Gaiata, que vieram a constituir a cidade de Istambul. Os jardins tiveram sebes e os sultões, filhos. Falta a espada, a fuga, o desastre. E aconteceu. Por culpa minha, a profecia cumpriu-se. E eis-me aqui, neste bairro grego a que chamam Gaiata, na varanda do meu palácio de onde o olhar abrange a Maçã Vermelha com as suas mesquitas, sinagogas, igrejas e, defronte, o Serralho de Topkapi, cujas tochas brilham suavemente no escuro. Arruinei a Maçã Vermelha, que oferecia à minha Beatriz quando ela tinha quinze anos sob a forma de um fruto de outono, polido pela fazenda do meu calção. Poderia eu adivinhar o que lhe oferecia o futuro? Uma manhã—seria manhã ou tarde? Já não me lembro… Ia buscá-la para um passeio pelo cais, e tinha justamente na mão uma bela maçã. Bati à porta do quarto das meninas, e, sem refletir, entrei como costumava. Beatriz, vestida de cetim branco bordado a ouro, estava rodeada pelos pais e importantes personagens de preto. Mantinha-se muito direita, um pouco pálida, e fitou-me sem dizer nada. Olharam-me como a um intruso, com algum espanto. A mãe de Beatriz, minha tia-avó Luna, empurrou-¦ me para o lado e indicou-me a porta; tinha de sair. Levantei, como um tolo, a maçã na palma da minha mão e Beatriz pegou-a com um sorrisinho triste.

Depois, em vez de a morder pousou-a na mesa e afastou-se. Foi assim que compreendi que iam casá-la. Eu tinha apenas treze anos, ela dezessete. A barba ainda não me nascera completamente, e tinha, às vezes, notas femininas na voz. Outro roubava-me Beatriz, e eu não mais a veria. Quem se preocupava com o sofrimento de um rapaz de treze anos? O futuro de Beatriz era umMendes, um homem de bem, poderoso e afortunado, convertido, respeitador em segredo da religião de nossos antepassados… Havia quem dissesse na comunidade marrana que antes da sua conversão fora um jovem rabino erudito; de todos nós, ele era o mais rico, o mais sábio e o mais intocável. O casamento de minha tia Beatriz com Francisco Mendes constituía uma boa nova para os adultos e uma excelente aliança para a família Nasi. E, com as entranhas trituradas por aguçadas garras, eu imaginava me noivo: um homem sombrio, grande como uma ave de rapina, com um olhar agudo e mau. À noite, quando fiquei com meus pais, meu pai disseme simplesmente, com um olhar fugidio: “Vais ter de esquecer os passeios com a tia Beatriz”. Fugi para o cais onde andaria sozinho a partir de então. O vento estava fraco, as ondas amigáveis, o céu transparente; a Torre de Belém, finalmente terminada, tinha nesse dia o brilho e a nitidez do açúcar branco. Fiz questão de não chorar. Roubei uma maçã e, com toda a força, lancei-a no oceano. Acabavam-se as maçãs vermelhas. Acabava Beatriz que me traíra. Acabados os seus risos e tristezas, acabada aquela menina má de cabelos claros, não queria voltar a saber dela… Casaram-na um ano mais tarde, quando fez dezoito anos. Não foi um casamento faustoso; os marranos não ousavam ostentar as riquezas, que eram já para muitos motivo suficiente de reprovação. Vestiram-me de cinza, com berloques de prata; parecia o macaco dos ciganos; e puseram-me no pescoço, pela primeira vez, uma verdadeira gola de cambraia plissada presa por umcordão de ouro. Detestei aquele casamento. A saia inteiriça que minha mãe vestia oscilava diante dela como os élitros de um grande inseto, meu pai mascava, às escondidas, cardamomos, que não me dava, as minhas roupas apertavam-me, e Beatriz escapava-me, irreconhecível. Seria realmente Beatriz aquela cuja touca de veludo negro, aureolada de pérolas brancas como as Virgens Santas das igrejas, eu avistava? Não queria vê-la. Mas empurraram-me, de saia em saia, e de repente estava à sua frente. Também ela parecia uma libélula, com o corpete negro e ouro, tão frágil que me apetecia quebrá-la. Não lhe reconheci o rosto empoado de branco, o colo, que jamais vira, descoberto e ornado de um colar senhoril, nem as orelhas de onde pendiam duas pérolas negras. Ela mal me olhou.

Um estranho clarão orgulhoso animava-lhe as pupilas, perdidas no vácuo. Baixei o rosto e vilhe a pequena mão escondida na mão do marido. Fui obrigado a saudar aquele Francisco Mendes. Parecia um velho príncipe benévolo, com umformoso rosto pleno de uma austera bondade. Nada nele se assemelhava ao pesadelo que eu imaginava para Beatriz. Sorriam um ao outro. O pior foi aquele sorriso. O pior foi a cor das faces dela, como que afogueadas de felicidade. Ela reparou finalmente em mim e disse ao marido que eu era João, seu sobrinho preferido, uma espécie de irmão. Foi certamente a única ocasião em que ela me deu o nome português. Renegavame. Corei de raiva. Então, mas nem sequer reparei bem nisso, ela tirou bruscamente a mão da do novo esposo e corou por sua vez. Não entendi nada. Aliás não entendi nada da nossa infância. Creio bem que desde essa noite nunca mais chorei. — Mentes, Josef!—murmurou na sombra uma voz estridente. — Quem ousa?—bradou o ancião voltando-se de repente. — Quem ousaria, Senhor, senão o pobre Caraffa?—guinchou a voz. — És tu, bufão! E quem mais, de fato, se atreveria a perturbar-me a noite? — De fato, e afirmo que mentes! Muitas vezes te ouvi chorar! — Como sabes tu que eu pensava nas minhas lágrimas, macaco horroroso? Admito que troces das minhas palavras quando as ouves, mas como poderias tu escutar-me os pensamentos? — Oh—disse a voz—,é simples. Há um bom pedaço que falas alto, meu amo. Basta prestar atenção. O velho duque deixou o terraço e procurou a silhueta invisível na obscuridade. — Não! Deixa-me no escuro, está bem?—suplicou a voz.—Tenho os meus pudores.

Se me descobres, nada mais poderei dizer-te, para além das frivolidades habituais que, há muito, não te fazem rir. Deixa-me na sombra, é melhor assim. Primeiro, disseram-me que choraste lágrimas amargas no dia da partida da Senhora. Segundo, também choraste no dia em que chegou a notícia da sua morte. Pensas que não sei? — É verdade o que dizes—suspirou o velho duque.—Tinha esquecido. Repara—acrescentou, estendendo os dedos—,as minhas mãos estão todas cobertas de flores de cemitério. Vejo-as mesmo à luz da lua; vou morrer em breve, Caraffa. Não te agites como um diabo no teu esconderijo, fica quieto. Chegou o momento da minha vida ser iluminada pela sua verdadeira luz. Basta de mentiras. O sofrimento que sentia era verdadeiro. A Senhora levava, de verdade, um vestido preto e dourado, uma touca de veludo combinando e pérolas nas orelhas, estás ouvindo? O resto já não sei… — Mas choraste no dia do casamento, hem? Há aí qualquer coisa que não está bem… — Tu não sabes absolutamente nada, imbecil. Eu era apenas o bobo da Senhora, como tu és o meu. Deixei de te ouvir. Ainda estás aí? Caraffa! Responde!… Está bem, cala-te se quiseres. Continuarei a falar em voz alta. Já que decidiste espiar-me, pelo menos alguém saberá a verdade. Alguém saberá a verdade, se eu conseguir inteirar-me dela. É estranho, nunca antes pensara nisso, no mesmo ano em que Beatriz se casou, Carlos de Habsburgo, que não era ainda Carlos V, desposou a prima. Espalhou-se a notícia da magnificência dos arcos de triunfo que se ergueram em Sevilha, e da transparente beleza de Isabel, princesa de Portugal, sua esposa. Só mais tarde eu soube que ele nunca amara antes de a conhecer e que dela se enamorara ao primeiro olhar, Havia quem dissesse que até o dia da cerimônia ele sofrerá de epilepsia; tinham-no visto numa igreja, num dia de calor, cair duro no chão, babando. A inefável Isabel soube curar aquela doença imperial. Não imagino o Habsburgo espumando; não o homem que conheci. Carlos V era um glutão, doido por especiarias e vitualhas.

O filho de Joana, a Louca, não podia senão enlouquecer de desejo. Com aquela paixão na alma reencontrava a demência da família e as inspirações divinas que herdara com a raça. Para esse mal de amor não podia ele achar a cura. Pouco depois desejou dinheiro sem saber qual seria o preço. Mas para tal não soube ele achar a cura. Eu sou como ele. Num dia de torneio mandou gravar no escudo, com letras de ouro, a divisa que me inspirou ao longo da vida: “Nondum”. Ainda não. Eu também sei esperar quando quero. Depois das núpcias de Beatriz, porém, eu não esperava mais nada. Regressei ao cais à procura de um barco que não encontrei. Mil vezes estive para embarcar, mas o medo de trair o nosso povo reteve-me. Trair

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