– Há uma data na varanda nesta sala – disse Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exatamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão direta da mesma família de lavradores. – Uma espécie de aristocracia ab imo. – E Bernardo riu-se, cheio de uma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda – “Ab imo, da terra”, pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a. Pertencia ele ao ramo da família que do capitalismo ascendera ao posto imediato da intelectualidade e nisso fixara uma aristocracia. Pois que é a aristocracia senão o grau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação – pensava Germana – chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos. Bernardo Sanches era o exemplo duma raça heroica e magnífica enquanto a sua história fora uma questão de sobrevivência, mas que, com a segurança e o conforto, resultara numa brilhante mediocridade. Germana, sua prima, era por seu lado, um tipo fatídico das degenerescências, o artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade imediata. Era ela uma criatura paciente, tímida, e que inspirava confiança sem limites. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. Ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora. Ela balançava-se ativamente numa velha rocking-chair que, a cada impulso mais violento, pulava no sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim. Tal como Quina – pensou. E, absorta, pôs-se a murmurar um lento monólogo, olhando à sua frente o caixilho da porta que comunicava com a cozinha, onde se via a pedra da lareira, arrumada e varrida de cinza. – Você que diz, Germa? – perguntou Bernardo. Perscrutava-a com uma curiosidade passageira, um tanto mortificado porque alguma coisa que não ele próprio o obrigava a inquietar-se. Como ela o fitasse apenas, sorridente e sem lhe falar, achou mais cômodo sentir-se ali o hóspede venerável, e tomar aquele silêncio ainda como uma cortesia. Mas, na verdade, Germa nem sequer pensava nele. Suspeitar isto – ele sabia – seria o bastante para que Bernardo não voltasse mais e estabelecesse no fundo da sua alma permanente disposição de vingança. Preferiu, portanto, ignorar que Germa estava nesse momento totalmente desligada e ausente de si, e que subitamente o ambiente ficara repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, de teto baixo, onde pairava um cheiro de pragana e de maçã, se enchia duma expressão humana e calorosa, como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde viveu, e o seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação. E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina. Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava o seu caráter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotavam folhelhos amontoados em todos os sobrados.
O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante da folha, ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira do milho foi cortada. Desde a morte de Quina, nunca mais a casa tivera aquela emanação de mistério grotesco ou ingênuo; e Germa não encontrava mais sabor nos serões ao borralho, mexendo as achas, fazendo rodinhas de fogo-preso com o atiçador esbraseado, ou catando nos escanos o rapa do Natal, em cujas faces as letras tinham sido desenhadas com tinta venenosa de bagoinhas. Ah, Quina, tão estranha, difícil, mas que não era possível recordar sem uma saudade ansiada, quem fora ela? Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada, setenta e seis anos antes. Era uma menina de aspecto pouco viável, roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor de sépia, motivada pelo fato de sua mãe ter sido salpicada de fígado de porco, por ocasião duma matança, estando ela nos primeiros tempos de gravidez. Era a segunda filha que vingava nummatrimônio de sete anos, porque os primeiros concebidos não atingiam o termo num organismo violentado por desesperados jejuns, angústias de mulher jovem que tem por marido o maior conquistador da comarca. Pois a senhora Maria da Encarnação, escolhida num alfobre de raparigas da casa do Freixo, delicadinha, esguia, os cabelos sobre as fontes, uma cintura muito torneada pelo cinto de cetim, como ficou de moda para todas as mulheres da família, ligara-se a um homem mais velho vinte anos e do qual diziam as avós da freguesia, em tom bonachão e um tanto cúmplice, “que tinha pedrinha de encantar”. Eramesmo. Casara à socapa, numa madrugada em que a noiva, depois da cerimônia, fora retomar o seu lugar no lar paterno, iludindo assim por algum tempo mais o cortejo das desprezadas, entre elas as próprias irmãs. Francisco Teixeira era, de fato um galã feliz. Possuía ele casa de lavoura e bens ao luar de sobejo interesse, e que administrava mal, pois era feirante por índole, amigo de gozos, vida larga, gostando de presumir grandezas, generosidades e essa bazófia genuína, mais feita de discrição do que de alardes pimpões. Se havia homem pronto a vingar afrontas de compadrio, a ensarilhar o pau, a varrer testadas, fazendo acudir a troa entre o escabrear do gado e os gritos das velhas que se esgueiram de rastos, salvando na abada do avental o que restasse do gigo dos ovos, era esse Francisco Teixeira. Tipo pequeno, de muito nervo, prudente e conciso de falas, ciente do prestígio das suas suíças loiras junto das mulheres, para quem o tisnado de árabe merecia descrédito em coisas apolíneas, assim era ele. Com nove anos, Maria da Encarnação apaixonara-se por ele, uma tarde em que, de passagem pelo lugar, se vira impedida de pular um córrego avolumado pela invernia: a água espumejava precipitando-se num barranco entre duas arribas, sobre as quais vergavam os lódãos, muito batidos pelo vento. – Que fazes aqui, menina? Tu de quem és? – disse Francisco Teixeira, que passava, a gola picarça do capote afogando-lhe meio rosto. Maria respondeu com uma vozinha tímida, porém seca e rebelde: – Sou do Freixo… – E tentou apear-se do muro, cuja interrupção oferecia uma espécie de degrau que permitia o acesso às veredas na margem dos campos. O moço disse, serenamente, quase severo: – É já de noite: eu vou levar-te a casa. Eu conheço o teu pai, e sempre lhe vou perguntar se isto são horas de deixar andar por fora uma mulher como tu. – Cantés! – bradou Maria, elevando a voz, para que o fragor da torrente que gorgolejava entre as lajes brancas não lhe sumisse as palavras. Ela conhecia Francisco Teixeira, a quem as irmãs, criaturinhas espigadas e ladinas, celebravam muito, corando só de lhe pronunciar o nome. Lado a lado, caminhavam juntos naquele crepúsculo que a chuva fazia alvacento, brilhando ao cair, espelhando nos charcos, nas lamas, nas folhagens. O homem falava, e a sua voz era cheia duma ternura irônica que comunicava no coração da criança um desejo de esforço e uma emoção quente, de aliança, de gratidão. Chegaram, e disse Francisco Teixeira, antes de se despedir, enquanto do portal iluminado pelo fogaréu do lar o espreitavam as moças, mordendo-se de risos impulsivos, incontroláveis e maganos: – Ora acautelem-me lá esta rapariga, que é com ela que eu vou casar… Adei… – Adei… – sublinhou o pai, que assomara também, cambaleando um pouco sobre os tamancos tachados e que o faziam parecer alto, com enormes pernas anquilosadas, como as figuras do Greco. Houve grandes risadas, e Balbina, a mais velha das irmãs, correu de repente para Maria, a quemencheu de mimos e desvelos, palpando-lhe as roupas molhadas, desnastrando-lhe as trancinhas hirsutas, para que os cabelos enxugassem. Onze anos depois, casavam. Estava nessa altura Francisco Teixeira no seu apogeu de sedutor, e não se dispunha a abdicar da sua liberdade de galaroz, as feiras, as noitadas, as amásias, quase sempre de boa nascença, raparigas de primeira mão, bonitas e muito assopapadas de paixão por ele.
As mulheres perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no ciúme umas das outras para o privar duma preferência fatal que lhes arrebatasse as esperanças para sempre. Os seus amores com Maria passaram despercebidos, tanto ele temia o escândalo das rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas ameaças. Porque ele era afinal um fraco, teria casado com todas as moças que o fitassem combelos olhos marejados, acobardava-se, prometia, enredava-se nas mais ingênuas ciladas do amor, se a mulher se lhe apresentasse como uma vítima indefesa e se lhe rendesse. Com Maria, porém, foi diferente. Havia duas semanas que estavam casados e ela continuava, sigilosamente, em casa dos pais, sem que entre ambos houvesse mais do que os cumprimentos reservados, contrafeitos, de noivos por contrato. Ele amava-a, não teria escolhido nenhuma outra, porque se lhe fixara na alma o romanesco da sua promessa à criança ponderada e austera que ele encontrara uma vez esforçando-se por saltar sozinha a cachoeira, desafiando o seu próprio receio. Maria não mudara nada; era a mesma menina que sob o orgulho oculta uma lealdade sem limites, e possuía essa afeição dos tímidos que erradamente se confunde com velhacaria; fizera-se uma bela mulher, com o acréscimo vantajoso dum dote de dois moinhos e algumas ramadas, educara-se na sujeição e no trabalho, descendia duma tribo de gente prudente e casta. Sem dúvida que Francisco Teixeira a apreciara como um achado raro e se decidira sem hesitação a adquiri-la com todas as garantias legais. Mas todas as outras que choravama seus pés, que se embalavam no seu regaço e se desgrenhavam cheias de apaixonados zelos, e lhe surgiam nas encruzilhadas, desfalecidas de pranto, e lhe rondavam a porta, com agonias de raiva no coração? Isto prolongou-se algum tempo ainda, até que Maria, assediada como Penélope pelos romeiros dos dotes, aos domingos, corrida pelas chufas das irmãs que a achavam mona e a apontavam aos namorados como exemplo doentio de altivez, abalou um belo dia. – Tão séria! É para casar rica? – gritou-lhe Balbina vendo-a cruzar a eira, descalça e com a roupa de cotio, mas levando no pescoço o seu cordão de ouro, donde pendia um pequeno crescente de filigrana. Maria olhou a irmã, que era ruiva e cuja cabeça parecia fosforejar como o cobre, vista através da névoa das suas lágrimas que apenas tinham assomado e se recolhiam sob a rápida pressão das pálpebras. – Cantés! – disse, com voz sonora. E deitou a correr. Essa mesma noite a casa da Vessada recebeu a sua nova ama. Nem um só dia Francisco Teixeira alterou os seus hábitos e os seus princípios de boêmia, e, se abandonava velhos amores, era para sem tardança os substituir. Houve um recrudescer de intrigas e paixões à sua volta, pois as mulheres pareciam vingar a traição daquele casamento, infligindo à escolhida a tortura do abandono, o tributo do ciúme, as impaciências iradas dos que orgulhosamente amam. Uma delas representara uma ligação mais séria, burguesa prendada como era, soberba da sua posição e haveres, criada no desleixo dum lar sem mãe, porque a sua, única legítima da casa de Borba,finara-se muito cedo, deixando a menina, que engatinhava apenas, nas sombras das saias de amas e governantas pingueiras, que mal cuidavam em escamar-lhe a ramela e engomar-lhe os esbicados dos calções de batista que assomavam sob os vestidos curtos de baetilha cor de morango. Chamava-se Isidra, a moça; era de tipo majestoso, com uma cabeleira cuja opulência gostava de exibir ao retratar-se enrolando a trança como uma boa. Sua mãe, nascida numa dessas fidalguias broncas onde os rebentos fêmeas sofrem o desprezo paterno, criara-se pelos casebres dos caseiros, entre a canzoada dos perdigueiros e filhotes de labrego, na promiscuidade das cozinhas térreas onde a fumaça se enovela para a cura do fumeiro, onde a vida do campônio se concentra, onde se come, se projetam tarefas, se louvam e se maldizem os amos, o tempo, as crias, o próprio Deus. Só comdezoito anos a rapariga foi chamada ao solar, a coabitar com os irmãos. Era analfabeta, e tinha como divertimento predileto o aproximar-se à socapa dos cães que lambiam nas escudelas o caldo de abóbora, e cortar-lhes com um podão as caudas que abanicavam. De resto, bonita, de pele clara, comsinaizinhos negros distribuídos com mimo pelas faces. Dizia “milhão” em vez de milho, vestia-se como uma imagem de andor, com muito gosto pelos vidrilhos, as sedas bordadas, não hesitando em retalhar as velhas colchas orientais, para franzir uma saia. Ainda não atingira a maioridade, apareceu grávida. O pai zurziu-a a rebenque de baleia, cruzando-lhe vergões empolados e azuis, dos ombros até às ancas; os seus uivos atravessavam as enormes salas consecutivas cujos reposteiros de damasco as crianças tinham denegrido, e as servas ficavam-se nos corredores, arrepiadas de susto, rezando baixo e correndo em debandada quando ouviam no patamar o estrupir das botifarras dos fidalgos novos que chegavam da caça, um tanto bêbados, altercando entre si.
Um ano depois, a moça foi entregue em casamento a um proprietário rico que a aceitou, escurecendo o percalço havido como dote fabuloso que a acompanhava. O povo recordava ainda a baixela de prata que carregava uma “cibana” e cujo peso fazia oscilar o andamento dos bois. Não foi feliz, a pobre. Sete anos depois nascera-lhe Isidra, e, um pouco além dessa data, ela morrera, no recolhimento da sua alcova, assistida apenas pelo capelão, um homenzinho untuoso e triste e que mascava tabaco, bufando escarros negros nas bacias onde boiavam compressas sujas de vinagre. A clausura fizera-a doente, vivia mergulhada em banhos de farelos, o seu hálito tinha um odor de drogas, e os dentes tinham-lhe caído. O marido chamava-lhe “senhora”, fingindo desconhecer que ela troçava dele e lhe punha alcunhas sórdidas, porque sempre lhe foi odioso e gostava de o vexar lançando-lhe em rosto a sua fidalguia, a sua casa de Borba, enorme, com salões revestidos de chumbo e carrancas de pedra na extremidade das varandas. Dizia-se que um dos próprios irmãos a desflorara e que ela o amava ainda, com desafio, e, pronunciando-lhe o nome, chorava, revendo a sua galhardia, o seu talento para esporear cavalos, fazendo-os caracolear, com placas de espuma sanguinolenta sob a espora de prata. Isidra, com vinte anos, era designada como “boa estampa”, pelo avô. Era grande, com esses olhos sombrios e um tanto vítreos que a palidez dum rosto favorece. Fora sempre relutante à educação, falava mal, gostando de desorientar os homens com a sua bruteza de linguagem e rindo-se quando eles, tolhidos de espanto, enrubesciam. Conhecera Francisco Teixeira numa tarde de romaria que ela presenciava da sacadaaberta sobre o largo da povoação em festa: vestida de tafetá negro, sem joias, a trança dos cabelos um tanto solta nas espáduas, abanava-se com um grande leque de moiré e azeviche, contemplando com o olhar indolente a procissão que descia do adro, as torres dos andores oscilando, com as suas fitas e as suas palmas de papel tremendo e voando entre as copas poeirentas das acácias. Subitamente, um redemoinho de desordem ferveu, alastrando logo com um corricar de cachopos que se arrastavam sob as pernas do poviléu, e o escândalo ainda morno, ainda lento, das mulheres, que reajustavam na nuca os lenços de algodão e buscavam no poial das portas um degrau seguro para abrigadamente presenciarem. Mas a luta embraveceu, magotes como vagas chocaram-se, confluindo das margens do largo, ouvia-se entre gritos o seco rumor dos paus que embatiam, estalavam, eram lançados longe, caindo sobre as tendas ou os arraiais das louceiras. E, então, numa clareira que se foi desenhando mais vazia, mais circular, destacou-se o pequeno vulto de Francisco Teixeira que avançava, grave e tranquilo, repelindo à sua volta o eriçado dos marmeleiros que combatiam, iam cedendo, recuavam, dispersando-se nas alas da multidão que se agitava, ondulando como um corpo que voga na maré. Havia sangue; os andores tinham parado na ladeira e os anjos choravam, não se atrevendo a abandonar o posto, suados sob as vestes debruadas com pele branca, de coelho, as botas amarelas de dusaque muito atufadas na poeira. Sob o pálio, o abade, recolhido, mansamente esperava, entre as opas vermelhas cujas pregas o sol riscara de violeta e as filas de crentes ajoelhados sobre os lenços de bolso. “Então essa guarda?” – impacientavam-se os mesários. Partiam estafetas com ordens e avisos, e, entre suspiros de cólera, as vendedeiras salgavam nos alguidares de barro os tremoços, dispondo, nas mesas adornadas com um ramo de cravos bravos da Índia, os copos embaciados onde vertiam limonadas e refrescos de aguardente. Os foguetes explodiam, deixando no ar pompons de fumo alvo que lentamente se deslocava e diluía. – Quem é o homem? – disse Isidra. Fechara o leque sobre o regaço, repuxando as suas mitenes de malha de seda preta. Olhava Francisco Teixeira, viu como ele, esgotando os adversários, se detivera no largo varrido, verificando a solidez do varapau, que varava o ar com silvos prolongados. Depois, calmo, afastou-se por entre a multidão, e nem uma vez se voltou. Isidra ficou-se na escada até tarde, batendo, absorta, com o leque nos joelhos, fixando os copinhos de papel escarlate que balançavamsuspensos por barbantes e às vezes ardiam, despenhando-se as fagulhas sobre a praçazinha coalhada de povo. Na sala, atrás de si, as senhoras bebericavam chá, comunicando-se as receitas dos acepipes que provavam com suaves estalinhos de língua, de aprovação, de entendimento, de gula.
Erammulheres que se espartilhavam em barbas de baleia, sinistramente iguais, e que usavam cuias bafientas sobre os cabelos que pareciam brunidos, penteados com o único intuito de ficaremarrumados. – Vem para dentro, menina. Olha esse relento. Sobre os tremós cintilavam os pingentes dos candeeiros onde se derretiam as velas. Um largo espelho de caixilho de esmalte branco com filetes de oiro refletia aquela reunião, os homens medonhos, com coletes acolchoados, e que falavam, preguiçosamente, das finanças e da política, as santas criaturas que cochichavamagravos de parentela e de criados, empinando pelas ventas dedadas de rapé. Isidra entrou na sala, mordiscou uma cavaca, chegou-se ao piano, onde apoiou o indicador, experimentando uma escala. “Vida estuporada!” – disse. O fidalgo de Lago, negro como um moiro e que explicava o loiro dos filhos pelo processo de lhes banhar a cabeça com cerveja quando nasciam, observou-a de través. Odiava os de Borba, parentes seus, rivais na opulência das casas, na excentricidade, nas espaventosas histórias de cavalos e de mulheres. “Famoso ninho que tais pegas dá” – falou, para si, como costumava dizer, com essa espécie de espírito que era como um atributo da sua cólera. Isidra captou a frase, sem a ouvir. Quando, logo depois, ele lhe perguntou, com um ressaibo de velha galantaria, quase lânguido, se ela gostava de versos, Isidra disselhe, com uma arrogância fria, sem mesmo o olhar: – Versos? Meta-os pelo rabinho acima… O de Lago passou a temê-la, o que, dizia Isidra, era muito melhor do que se a respeitasse. Caprichou a moça nos seus amores com Francisco Teixeira. Era fogosa e indomável, e, passados os primeiros arroubos da conquista, ele fatigou-se dos seus repentes de despeito, das suas juras que previam desagravos de traições, das suas corridas pela quinta, que ela atravessava noite alta para comparecer aos encontros, embuçada numa mantilha de renda de lã negra, os cabelos escorrendo-lhe pelas costas, pesados, trazendo enredadas as gavinhas secas que se desprendiam dos lódãos. Ela não o amava, apenas se lhe entregava por desafio ao nome que comprometia, pois à vertigem da sua queda sucedera a preocupação pelo seu orgulho. Francisco Teixeira enfadou-se depressa daquele temperamento tão viril, daquela voz ferina e fria que lhe impunha ordens e que, no fim de contas, o desfrutava. Gostava das mulheres submissas, mansas, que o admirassem sem jamais adquirirem a confiança de especificar, decompor, calcular, essa admiração. Mas Isidra ia ser mãe, e ele receavaa. Talvez para evitar a tentação daquela imperiosa criatura cujos ardores, cujos olhares terríveis o venciam e cuja fortuna lhe parecia um subsídio notável para uma vida de camarilha com arruaceiros e ciganas, ele casou precipitadamente com Maria. Esperava manter secreto este passo até que a história de Isidra chegasse a um natural epílogo; ou, possivelmente, preferia não encarar de frente qualquer solução, e o fato de se ligar irremediavelmente a Maria representasse um golpe de defesa que corrigiria muitos dos desvarios a que se sabia sujeito. Este traço do seu caráter transmitiu-se depois a quase todos os filhos, e podia definir-se pelo “estilo hamletiano”, o choco de indecisão, a cobardia da violência, que se resgatam de súbito com um ato que transcende toda a razão. Porém, Maria precipitou aquele enredo, escapulindo-se de casa, para reclamar o seu lugar no novo lar que lhe competia. Não recebeu aplausos por isso, se bem que Francisco Teixeira não resistisse a aceitá-la com honras de noivado. Ele desacompanhava-a muito, deixava-a sozinha na casa, que ela percorria vagarosamente, empunhando a candeia, cuja luz vacilante aplicava nos recantos, no patamar da adega, onde se situavam as talhas do azeite, sobre calços de vimieiro. Seele não chegava, deitava-se sem cear; se ele vinha e dizia, com uma voz acobardada – “Já comi, eu”, Maria ia lançar o seu caldo no bocal de madeira esbeiçado de lavagens e que comunicava com a pia dos porcos, embaixo, sob a cozinha que estava em construção.
Porque a casa tinha totalmente ardido. Não restava um tabique, um fio de bragal; o fogo apenas poupara os caldeiros de ferro que, esbraseados, tinhamrolado sobre os charcos do quinteiro, fazendo soltar uivos de espanto ao povo que acorria comescudelas de água e cântaros que pareciam pairar magicamente à cabeça das mulheres. Acontecera pouco tempo depois da chegada de Maria. Ela sentara-se, exausta, na velha mó de lagar de azeite que estava meio tombada na margem da eira, e olhara os escombros donde o fumo subia misturando-se com a névoa da madrugada. Tinha apenas uma saia mal acolchetada sobre a camisa, e tiritava. Os moços moviam-se à sua frente, enfarruscados pelo travejamento que desabara e sobre o qual pulavam, e que ardia ainda com um serpear de lume no cerne seco; Narcisa Soqueira, vizinha muito afeta à casa da Vessada, chorava, cirandando, seminua, um ombro esquálido aparecendo pelos rasgões do velho chambre. – Ah, mulher, mulher! Isto foi a amiga do teu Chico, que é fêmea que o diabo enjeitava – disselhe, muito sufocada de aflição. – Cantés – murmurou Maria. E voltou o rosto das paredes calcinadas, junto das quais a grande meda de palha centeia se consumira, ficando apenas a armação de ferro onde a velha pintura escamara, derretendo em gotas vermelhas sobre as lajes. Francisco Teixeira não voltara ainda. E ali estava aquela jovem mulher, cujas feições contraídas, porém, frias, se desenhavam na esverdeada luz da madrugada; não confiava uma emoção à turba que a rodeava, que ia e vinha, num afadigado fervor de auxílio, que se aproximava na timidez daquela dor que não sabia como aliviar, e se afastava sem ter proferido senão palavras bruscas e banais, vexada pela própria impotência, desejando apenas distrair-se da desgraça que não podia vencer. Maria não chorava. Com a palma da mão arrepiava às vezes os cabelos frisados das fontes e que lhe descaíam sobre os olhos; o seu coração estava fechado, porém na expectativa de alguma coisa que nele renovasse a felicidade, pois ela pertencia a essa casta rara e invencível dos que, a par da mais crua teoria do pessimismo, se mantêm fiéis à esperança, e que mesmo na morte não sucumbem. Francisco Teixeira veio então, sem se apressar muito em se chegar, alisando-lhe as pregas do xaile, como se, com esse gesto humilde e repetido, quisesse definir um arrependimento. – Eu tinha pensado já fazer umas obras… – disse. – Ainda bem que estou aqui para vigiar isso – contestou Maria. O seu tom possuía a nota irônica que nela testemunhava bom humor e generosidade. As contas estavam saldadas. Assim, ela confessava que o amava através de todos os incidentes e catástrofes, todos os esquecimentos e abandonos. Morreria muito velha e, com a idade, a mente havia de se debilitar, provocando-lhe arrazoados vagos, atropeladas recordações, esse viver retrospectivo cheio de visões passadas, de fatos e pessoas mortas. Mas o seu homem estava sempre presente junto dela, vivendo as suas seduções,fazendo-a vibrar em cuidados e penas, como quando ela era jovem e se entregava às suas íntimas batalhas de cólera e de perdão. “Que culpa tinha ele de ser bonito?” – dizia, tomada duma filosofia gracejadora e doce. E, avistando da janela o filho que tomava o caminho dos lameiros, numdia outoniço em que chovia, alarmava-se, julgando que era Francisco Teixeira que partia desprevenido de abafos. “Vai-se molhar todo, o meu Chico. Levem-lhe um capote, porque se vai molhar”.
No entanto, havia quarenta anos que ele tinha morrido.
.