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A situacao humana – Aldous Huxley

Como todos sabemos, aprender pouco é algo perigoso. Mas uma boa porção de aprendizado altamente especializado também é uma coisa perigosa, e por vezes pode ser ainda mais perigoso do que aprender só um pouco. Um dos principais problemas da educação superior agora é conciliar as exigências da muita aprendizagem, que é essencialmente uma aprendizagem especializada, com as exigências da pouca aprendizagem, que é a abordagem mais ampla, mas menos profunda, dos problemas humanos em geral. Esse é, sem dúvida, um problema novo. Meu avô, T. H. Huxley, um homem que jamais se sentia feliz exceto quando tinha três ou quatro empregos de tempo integral de uma só vez, participou entre esses empregos de tempo integral da criação, em 1870, da moderna educação inglesa. Trabalhou muito em educação elementar e secundária em Londres e também muito fez para transformar a Universidade de Londres numa universidade moderna, quer dizer, uma universidade com alto grau de especialização em vários campos. O interessante é que, no começo de 1890, ele já estava profundamente preocupado com o problema da especialização excessiva. Três anos antes de morrer, elaborou um plano para coordenar vários departamentos especializados da Universidade de Londres, de modo a criar alguma espécie de educação integrada. Não preciso acrescentar que os planos de meu avô jamais foram executados, e que o problema da educação integrada permanece exatamente o que era — apesar de dizer respeito a todos os que se ligam a esse campo de atividade, e apesar de ter-se efetuado uma série de tentativas de resolvê-lo. Essas tentativas incluíram o simples acréscimo de informações humanísticas à informação científica especializada; a coordenação entre ciência e humanidades através de uma abordagem histórica, o que tem certos méritos; e os programas dos Cem Grandes Livros, estreitamente relacionados a isso. Não creio que nenhuma dessas tentativas seja plenamente satisfatória. Meu sentimento pessoal é que uma educação integrada ideal exige uma abordagem do tema em termos de problemas humanos fundamentais. Quem somos? Qual a natureza da natureza humana? Como devemos nos relacionar como planeta em que vivemos? Como viveremos juntos satisfatoriamente? Como devemos desenvolver nossas potencialidades individuais? Qual a relação entre natureza e formação? Se começarmos comesses problemas, e os tornarmos centrais, poderemos reunir informações de uma série bastante grande das disciplinas atualmente separadas. Penso que provavelmente esse é o único modo de criar uma forma realmente integrada de educação. Entrementes, porém, essa educação integrada não existe. Aqui, penso, está o motivo pelo qual uma pessoa como eu, que tem o que podemos chamar de ignorância enciclopédica em muitos campos, pode ser útil a uma instituição de aprendizagem altamente especializada como esta. Um homem de letras pode exercer uma função valiosa no mundo, juntando uma porção de assuntos e mostrando as relações entre eles. É uma questão de construir pontes. Temos uma palavra interessante, pontifex, ou construtor de pontes. É o termo latino para ummembro do colégio de sacerdotes em Roma, cujo chefe é chamado pontifex maximus. (Na verdade, a etimologia aceita de pontifex provavelmente é falsa. Estou quase certo de que a palavra original não era pontifex, mas puntífex, o que, em linguagem antiga, pré-latina, o oscano, significava aquele que realiza sacrifícios aplacadores. Os romanos traduziram a palavra em sua língua como pontifex, fazedores de pontes.


) Num contexto religioso, pontifex significa o que constrói uma ponte entre Terra e Céu, entre material e espiritual, entre humano e divino. Toda a ideia de pontifex, construtor de pontes, é muito proveitosa, e podemos meditar sobre ela e usá-la de maneira muito produtiva. No contexto presente, a função do literato é pois, precisamente, construir pontes entre arte e ciência, entre fatos objetivamente observados e experiência imediata, entre moral e avaliações científicas. Há toda a sorte de pontes a construir e é isso que tentarei fazer no decurso destas palestras. Mas resta um grande problema com o qual o homem de letras se defronta quando tenta construir pontes. É interessante retroceder na história da literatura e ver que esse problema foi considerado com atenção por Wordsworth, no fim do século dezoito, no prefácio de Lyrical Ballads [Baladas líricas].[2] Diz ele que “as mais remotas descobertas do químico, do botânico, do mineralogista, não são tema menos adequado ao poeta do que qualquer outro tema, desde que sejam assuntos interessantes para os seres humanos em geral e possam ser analisados na medida do que fazem ao homem como Ser que goza e sofre”.[3] Isso é muito verdadeiro. Se os efeitos da ciência devem ser incorporados à arte, precisam tornar-se algo mais do que meras abstrações e generalizações: precisam tornar-se fatos da experiência imediata que signifiquem algo, fatos com conteúdo emocional. Mas aqui enfrentamos mais uma vez um círculo vicioso, pois, se está claro que os fatos da ciência não podem ser material adequado para poesia e literatura em geral, enquanto não assumirem conotações emocionais, envolvendo-nos como pessoas, também está claro que dificilmente assumirão esse matiz emocional, inserindo-se na sensibilidade humana geral, a não ser que já tenham sido artisticamente expressos — pois é função do artista abrir ao resto da comunidade vastas áreas de valor e significado. Pode-se dizer que os padrões de emoção e valor da vida humana são criados pelo artista, que encontra expressão e forma verbal adequadas para tornar conhecido e interessante o que antes era desconhecido ou desinteressante. Assim, pegamos o dilema pelos chifres: precisamos de fatos científicos tingidos de emoção antes que os possamos avaliar inteiramente em termos emocionais. Suponho que o caminho para fora desse círculo vicioso será a chegada providencial e eventual de algum gênio imenso, que romperá esse círculo e de alguma forma criará para nós o aparato verbal necessário para que os fatos e as teorias da ciência possamtransformar-se em um material apropriado para a arte. Naturalmente não podemos prever como e quando tal gênio aparecerá, mas o vento sopra onde quer e possivelmente esse misterioso construtor de pontes, esse pontifex maximus, algum dia existirá. Certamente não sou um pontifex maximus, mas um pontifex minimus pode servir de momento. O problema é encontrar um vocabulário adequado com o qual tratar esses problemas. De momento, temos uma grande variedade de vocabulários: o da fala comum, o da prosa literária, o sublime vocabulário da poesia e o vocabulário abstrato da teoria científica (também temos o vocabulário absolutamente catastrófico dos livros-textos, que acho muito penosos de ler). Não admira que, revestidos de tal vocabulário, os fatos e teorias científicos não nos pareçam importantes, a nós “seres que gozam e sofrem” — ou talvez os achemos importantes se causadores de sofrimento, não de gozo). O que de momento nos falta é a forma verbal para expressar a combinação do fato e teoria científicos com nossa experiência direta. Não há como exagerar a necessidade de palavras. Há uma história muito interessante e instrutiva ligada ao pintor francês Degas e ao poeta francês igualmente grande, Mallarmé. Degas costumava escrever versos nas horas livres. Um dia encontrou Mallarmé e disse-lhe: “Mallarmé, é uma coisa terrível, não sei o que está acontecendo. Tenho ideias tão maravilhosas, mas quando as escrevo, os versos são muito ruins, e não é realmente poesia”. Mallarmé respondeu: “Meu caro Degas, poesia não se faz de ideias, faz-se com palavras”.

É exatamente essa capacidade de colocar ideias em palavras com um poder de penetração de raios X que identifica o grande homem de letras. Podemos dizer que todo o programa que precisamos executar se quisermos obter um ponto de vista integrado resume-se numa extraordinária passagem de Shakespeare, em que Hotspur diz: Mas o pensamento é o escravo da vida, e a vida, o bobo do tempo; E o tempo, que vigia o mundo inteiro, Precisa ter um fim.[4] É uma dessas coisas fantásticas que encontramos em Shakespeare; numa linha e pouco ele esboça toda uma filosofia, e depois passa para outro assunto. “O pensamento é o escravo da vida”, não podemos pensar abstratamente sem nos envolver como seres fisiológicos, como membros desta comunidade viva no planeta; e “a vida é o bobo do tempo”, o tempo que passa corrói as coisas todas e produz mudanças constantes; e ainda assim, “o tempo, que vigia o mundo inteiro, precisa ter umfim”, pois existe também um lado espiritual e religioso da vida — o tempo precisa ter um fim no mundo atemporal e eterno. São esses três mundos — o da abstração e dos conceitos, o da experiência imediata e observação objetiva, e o mundo da visão espiritual — que precisam ser reunidos emqualquer ponto de vista integrador. Não preciso dizer que é uma proposta bastante difícil. Como poderemos descrever, por exemplo, uma experiência mística? O que precisamos é de uma linguagem que nos permita falar de uma profunda experiência pessoal em termos de conceitos filosóficos, em termos de bioquímica e emtermos teológicos. De momento esses são três vocabulários totalmente separados e desconectados; nosso problema é descobrir um vocabulário literário, artístico, que nos possibilite passar semruptura grave de um ponto de vista a outro, de um universo do discurso a outro. Quando o problema é colocado numa forma específica como essa podemos ver o quanto é difícil. Realmente precisamos de um poeta como Shakespeare — um pontifex maximus — para resolvê-lo por nós. Entrementes, farei o que puder, com meus limitados recursos, para continuar e verei o que posso fazer para construir pontes. Mudemos agora nossa metáfora de engenharia para uma metáfora muito expressiva da vida doméstica, e falemos do que se chamou de “celibato do intelecto”. O problema de todo o conhecimento especializado é ser uma série organizada de celibatos. Os diversos assuntos vivem emsuas celas monásticas, apartados uns dos outros, e simplesmente não se casam entre si nem produzemos filhos que deveriam produzir. O problema é tentar arranjar casamentos entre esses vários assuntos, na esperança de produzir uma geração valiosa. E o celibato não existe apenas entre os diferentes aspectos do intelecto; é também um celibato das paixões, um celibato dos instintos. O tema do isolamento das paixões é um traço muito característico da literatura contemporânea. Se formos assistir a certas peças de teatro — por exemplo, de Tennessee Williams, um dramaturgo de enorme talento, que admiro muito — veremos um celibato quase absoluto das paixões. Elas existem numestado quimicamente puro, sem nenhuma ligação com o intelecto. Vivem uma vida inteiramente própria. Se tomássemos essas peças como um retrato da vida contemporânea, certamente, ficaríamos muito decepcionados, como estive pensando outro dia quando assisti a uma delas, muito bemrepresentada, no teatro. O simples fato de representá-la exigiu uma apaixonada combinação de pessoas usando seus intelectos e mantendo suas vontades firmemente fixadas no tema, que era uma negação completa da realidade, do ponto de vista do qual as paixões são divorciadas da inteligência e das atividades voluntárias dos seres humanos. De qualquer modo, o que precisamos fazer é arranjar casamentos, ou melhor, trazer de volta ao seu estado original de casados os diversos departamentos do conhecimento e das emoções, que foramarbitrariamente separados e levados a viver em isolamento em suas celas monásticas. Podemos parodiar a Bíblia e dizer: “Que o homem não separe o que a natureza juntou”; não permitamos que a arbitrária divisão acadêmica em disciplinas rompa a teia densa da realidade, transformando-a emabsurdo. Mas aqui deparamos com um problema muito grave: qualquer forma de conhecimento superior exige especialização.

Precisamos nos especializar para entrar mais profundamente em certos aspectos separados da realidade. Mas se a especialização é absolutamente necessária, pode ser absolutamente fatal, se levada longe demais. Por isso, precisamos descobrir algum meio de tirar o maior proveito de ambos os mundos — aquele mundo altamente especializado da observação objetiva e da abstração intelectual, e aquele que podemos chamar o mundo casado da experiência imediata, no qual nada pode ser apartado. Somos as duas coisas, intelecto e paixão, nossas mentes têm conhecimento objetivo do mundo exterior e experiência subjetiva. Descobrir métodos para unir esses mundos separados, mostrar a relação entre eles, é, penso eu, a mais importante tarefa da educação moderna. Gostaria de citar uma frase muito bela, de uma carta escrita por T. H. Huxley a Charles Kingsley, por ocasião da morte do filho pequeno de Huxley, de quatro anos de idade. Kingsley escrevera-lhe uma carta de condolências, e meu avô respondeu escrevendo extensamente sobre todo o problema da imortalidade e da posição do cientista no mundo moderno. Ele disse: Parece-me que a ciência ensina da maneira mais elevada e firme a grande verdade, personificada na concepção cristã de uma submissão absoluta à vontade de Deus. Sentarmo-nos diante do destino como uma criança pequena, e estarmos preparados para renunciar a qualquer noção preconcebida, seguindo humildemente para seja quais forem os abismos aos quais a natureza nos guia, ou não aprenderemos coisa alguma.[5] Vemos que o processo científico é intrinsecamente um processo ético, um lado da ciência muito pouco enfatizado no presente. A humildade do cientista diante do fato e da observação é de tremenda importância do ponto de vista ético. Viu-se isso claramente no tempo de Francis Bacon, que, embora não sendo um cientista muito sério, expôs uma série de ideias gerais de grande significação para o desenvolvimento da ciência nos séculos dezessete e dezoito. Bacon era hostil aos filósofos escolásticos, até mesmo aos filósofos gregos, que atreviam-se a fazer afirmações sobre o universo sem se darem ao trabalho de descobrir o que os fatos realmente eram. Há uma porção de passagens notáveis em Bacon, em que ele fala sobre a iniquidade desses filósofos. Fala de Platão e Aristóteles como criminosos (a hostilidade de Bacon em relação a Platão e Aristóteles era bastante injusta. Afinal, Aristóteles foi um importante observador científico). Há uma famosa passagem em Advancement of Learning [Progresso da aprendizagem] em que ele diz que os escolásticos eramcomo aranhas tecendo teias com fios que saíam de suas próprias cabeças, sem consideração para com o que acontecia no mundo, e que as teias eram admiráveis pela finura do fio e pelo artesanato, mas sem qualquer substância ou fruto.[6]Da mesma forma, no prefácio a um de seus livros menores, A história dos ventos, fala de maneira muito eloquente e intensa sobre a qualidade ética da ciência, dizendo: Por isso, se tivermos alguma humildade em relação ao Criador; se tivermos alguma reverência e amor pelas Suas obras; se tivermos alguma caridade para com os homens ou algum desejo de aliviar suas misérias e necessidades; se tivermos algum amor pelas verdades naturais; alguma aversão pelas trevas; e algum desejo de purificar o entendimento, a humanidade deverá ter o maior interesse e desejo de, pelo menos por algum tempo, deixar de lado suas filosofias prepósteras, fantásticas e hipotéticas (que cativaram a experiência e infantilmente triunfaram sobre as obras de Deus;) agora, porém, com submissão e veneração, aceitam pegar e examinar o Volume da Criação; meditar algum tempo sobre ele; e, fazendo operar uma mente bem purgada de opiniões, (dolos e falsas noções), familiarizar-se com ele.[7] Essa é uma passagem esplêndida e sobre a qual se devia meditar, porque é exatamente a relutância em aceitar noções preconcebidas e em transformar a sua própria opinião numa tese, e não numa hipótese de trabalho, que identifica um cientista genuíno e constitui a natureza ética essencial da atividade científica. Bacon tinha certeza de que um dos valores da ciência estava em seus frutos, que ela poderia fazer muito para abrandar a indigência e os sofrimentos do homem. Sabemos que é realmente assim. Mas a ciência pode fazer também outras coisas, coisas das quais hoje estamos dolorosamente conscientes. Como Bacon jamais se cansou de dizer, conhecimento sem amor pode ser muito corrupto, até mau.

Ele censurava filósofos como Platão e Aristóteles, não apenas porque lhes faltava humildade para estudar fatos objetivos e basear seus raciocínios sobre esses fatos, mas porque tinham perseguido o conhecimento unicamente pela satisfação intelectual, não por amor ou para ajudar os seres humanos. Agora, o sapato passou para o outro pé: os vaidosos filósofos da atualidade são membros da escola científica que esqueceu a humildade científica. Todos estamos familiarizados, por exemplo, com a extrema arrogância dos primeiros behavioristas. Lendo alguns dos primeiros escritos de J. B. Watson, ficamos absolutamente espantados de ver que qualquer pessoa que se dissesse cientista pudesse fazer afirmações tão mirabolantes, ignorado extensões tão enormes da experiência humana. A “cientistas” desse tipo, Bacon teria certamente feito a acusação de serem a) presunçosos e b) sem amor, única coisa que pode tornar precioso e valioso o conhecimento. Nosso problema é reunir de alguma forma os diferentes aspectos do mundo assim como o conhecemos, recriar o estado de união com o qual nos familiariza a experiência direta. Pois estamos familiarizados com o fato de que o mundo dos conceitos e abstrações é equilibrado pelo mundo da experiência imediata, e que a experiência interior existe simultaneamente com a descrição objetiva da natureza construída sobre inferências. Mas qual a relação filosófica entre esses dois lados do nosso conhecimento, interior e exterior? Inclino-me a pensar que cientistas com mente filosófica, como Max Planck, estão certos ao imaginar que os dois mundos, abstrato e imediato, são apenas aspectos da mesma realidade, que a Realidade básica é um monismo neutro, visto de um lado como física atômica (por exemplo) e de outro como experiência imediata de valor, amor, emoção. Não podemos entrar nesse tema no momento, mas eu queria mencioná-lo e frisar que a construção dessa ponte fundamental é um problema muito, muito urgente em nosso mundo. Deliberadamente mantive este curso o mais vago e geral que me foi possível, para não avançar demais nem fingir que sei demais. Nossa tarefa será analisar vários aspectos da situação humana, para ver como se pode construir pontes entre fatos e valores. Começarei com uma consideração sobre o homem em relação ao planeta, pois vivemos neste planeta e, gostemos ou não, temos de nos ajeitar com isso indefinidamente. Lamento dizer que toda essa história de ir a Marte e coisas assimme parece um absurdo. É muito mais importante vermos o que podemos fazer com a Terra, e infelizmente o que estamos fazendo com ela é desastroso. Tentarei primeiro mostrar o que estamos fazendo com nosso ambiente planetário, e considerar os corolários desses fatos, e ver que Weltanschauung nos ajudaria a remediá-los. Depois falarei sobre a relação entre as fontes de que dispomos agora e aquelas de que disporemos no futuro. Construirei uma tênue ponte hipotética até o futuro. Depois disso, penso que deveremos nos voltar para os problemas estritamente biológicos do indivíduo, discutir o homem do ponto de vista da hereditariedade e do ponto de vista do seu meio ambiente, e tentar estabelecer uma espécie de equilíbrio entre esses dois fatores que influenciam tão profundamente nossa existência. O problema do homem na sociedade virá a seguir, e nele gastarei algum tempo discutindo o que me parece o fator sociológico mais importante dos tempos modernos: o crescimento da tecnologia e o que podemos chamar de tecnicização de todos os aspectos da vida humana. Depois passarei a outros aspectos da vida social e espero, no momento devido, conseguir chegar ao problema do indivíduo, ao problema das potencialidades humanas e do que pode ser feito para que se realizem aquelas que de momento permanecem em grande parte latentes em muitas pessoas. Não é preciso dizer que nessa relação haverá debates sobre arte e problemas da criação e compreensão. Andaremos muito longe nessa busca de pontes. Quando chegarmos ao fim, teremos coberto uma boa porção de terreno e também estaremos muito entediados com o que tenho a dizer, mas felizmente poderei então sumir discretamente.

O HOMEM E SEU PLANETA[8] Qual nossa relação com o planeta? O que estamos fazendo com o mundo no qual vivemos e como estamos tratando esse mundo? Como ele provavelmente nos tratará se continuarmos tratando-o dessa maneira? Começarei a responder com duas citações da Bíblia. A primeira vem dos Salmos: “As árvores do Senhor estão cheias de seiva: os cedros do Líbano que ele plantou” (Salmos 104:16). A segunda vem dos Cânticos de Salomão, no versículo em que o rosto da amada é comparado aos cedros: “Sua face é como o Líbano, bela como os cedros” (Cânticos de Salomão 5:15). Essas grandes árvores têmuma qualidade mística. Todos ouvimos falar nelas em nossa infância; há hospitais com seu nome, que tornou-se uma palavra familiar. Lembro-me de que, na primeira vez em que fui ao Oriente Médio, uma das coisas que mais me interessaram foi exatamente ver os cedros do Líbano. O Líbano é um país muito pequeno, que consiste numa faixa costeira com apenas alguns quilômetros de largura, ao pé de altas montanhas que se erguem a mais de dois mil metros. A extensão da cordilheira é de 160 a 240 quilômetros, com 40 a 48 quilômetros de largura, e quando fui subindo por ela de carro esperei encontrar cedros do Líbano em profusão, como sem dúvida outrora existiram. Rodamos e rodamos horas a fio subindo imensas colinas e finalmente, depois de muitas milhas de terra absolutamente estéril, chegamos a um lugar no qual havia aproximadamente quatrocentos cedros. Sobrevoando essa região mais tarde, vi dois ou três desses bosques e creio que restam cerca de 1,5 ou 2 mil cedros. É tudo o que sobra de uma gigantesca floresta que forneceu ao rei Salomão os madeiramentos para seu templo — se estão lembrados, Salomão fez um tratado comHirão, rei de Tiro, no qual Hirão concordou em que as vigas deviam ser trazidas até a costa, levadas de balsa para qualquer porto que Salomão indicasse e depois arrastadas até Jerusalém; e isso forneceu suprimentos de madeira ao Egito por séculos a fio, pois esse país não tem árvores próprias, exceto palmeiras. Isso ilustra de maneira muito impressionante o que o homem tem feito ao seu planeta no curso dos séculos. Tem encontrado abundância na natureza, e em quase todos os casos devastou inteiramente o que encontrou. Aqui tivemos uma floresta magnífica, com árvores excelentes. Vocês as devem ter visto em jardins botânicos — os espécimes agora crescem por toda a Europa, para onde foram exportados, e adaptam-se muito bem em climas temperados. Mas, como disse Chateaubriand, “les forêts précedent les peuples, et les déserts les suivent” [as florestas precedem as civilizações, e os desertos as seguem]. Durante o tempo em que tem estado na Terra — algo entre meio milhão e um milhão de anos — o homem tem sido, mais e mais, uma profunda força geológica. Mudou a face do planeta sobre o qual vive, por vezes para melhor, mas demasiadas vezes para pior. No século xix, a escola ambiental falou do ambiente como culturas condicionantes e criadoras, mas deixou de lado o fato de que as culturas condicionam o ambiente; que o homem certamente fez quase tanto para mudar o seu ambiente quanto o ambiente fez para moldar o curso da história. De modo geral, podemos dizer que a compreensão do homem como transformador da natureza não existia antes do século xviii. A primeira grande obra clássica sobre o assunto foi escrita em 1865 por George Perkins Marsh, que foi o primeiro embaixador americano no novo reino da Itália. Nesse livro, Marsh colecionou todo o material possível sobre o assunto homem e natureza, e trabalhou numa espécie de contexto filosófico. Um dos precursores nesse campo, o livro ainda é muito valioso.[9] Comecemos falando sobre as contribuições positivas que o homem deu para a mudança do planeta. Por exemplo, a maioria dos ecólogos agora concorda em que as pastagens tropicais, e possivelmente as temperadas, foram realmente criadas pelo homem e foram por ele mantidas em seu estado de campos abertos por centenas de milhares de anos.

Penso que a mais importante contribuição do homem foi levar plantas ou animais valiosos de uma parte da Terra à outra. Em épocas clássicas, árvores como o pessegueiro, a ameixeira, a nogueira e a amendoeira foram levadas do Oriente Próximo, do Oriente Médio e mesmo do Extremo Oriente para o Mediterrâneo; plantas forraginosas de valor, como a alfafa e certos tipos de trevo, foram trazidas do Mediterrâneo e aclimatadas em toda a Europa e mais tarde no Novo Mundo; plantas como ervilhas e vinhas foramtransportadas do ocidente à China. A introdução de batatas no Velho Mundo, vindas do Novo, foi algo revolucionário, assim como a importação de trigo indiano da América Central e do Sul para África, Ásia e Sul da Europa. O que é verdade quanto às plantas também é em relação aos animais. O caso mais evidente é a importação do cavalo para o Novo Mundo. Os índios americanos caçavam sempre a pé antes de os espanhóis e os primeiros colonizadores ingleses introduzirem o cavalo no continente. Os índios da América do Norte adaptaram-se rapidamente a esse novo quadrúpede, e o mesmo aconteceu na América do Sul. O único animal doméstico que os incas, por exemplo, possuíam, era a lhama — a alpaca e a vicunha — que pode carregar cerca de dez ou quinze quilos no lombo. Mas era tudo o que tinham, exceto pelos “animais de carga” humanos, para transportar coisas acima e abaixo dos extraordinários caminhos montanhosos dos Andes. Também adotaram o carneiro, que entrou no folclore dos povos andinos e tornou-se uma espécie de animal nativo. Uma importação interessante do leste para a Europa foi a do gato. Ele veio do Egito (o gato selvagem nativo da Europa Ocidental jamais foi domesticado) e não se adaptou muito bem na Europa Ocidental, até o começo da Idade Média. Podemos ver na antiga história de fadas de Dick Wittington, por exemplo, como gatos eram valiosos e admirados. Na lei saxônica anterior à Conquista da Inglaterra, o gato era tão valioso que um homem que matasse o gato de outro devia pagar por isso com trigo suficiente para fazer uma pilha que cobrisse o gato suspenso pela cauda. Outra importação animal do oriente para a Europa foi a preciosa galinha doméstica. Ela foi trazida da Índia para o mundo clássico e desde então tem estado conosco pondo ovos. É estranho pensar que no começo do período clássico as pessoas não dispunham de ovos para comer. Essas são algumas das transformações boas de enorme importância que o homem trouxe ao planeta. Agora temos de considerar o reverso da medalha. O homem tem vivido demasiadamente no planeta à moda de um parasita que se sustenta daquele a quem infesta. Se muitos parasitas são bastante ajuizados para não destruírem seu hospedeiro porque destruiriam a si mesmos, o homem não é um desses parasitas ajuizados. Ao contrário, muitas vezes viveu em seu hospedeiro fazendo tudo para arruiná-lo totalmente. Quais são algumas das maneiras pelas quais o homem se mostrou mais destrutivo? Começaremos com os animais — uma história muito deprimente, pois estamos eliminando criaturas de extraordinária beleza e interesse, e fazemos isso com rapidez cada vez maior. Se olharmos as estatísticas compiladas pela Sociedade Internacional de Proteção à Natureza, aprenderemos que cinquenta espécies, só de mamíferos, foram eliminadas durante o século xix, outras quarenta perderam-se desde 1900, e seiscentas espécies provavelmente estão condenadas à extinção no presente. Há o caso do pombo-viajante, que existiu outrora em quantidades tão fantásticas que seus revoos escureciam o sol.

Nos dias da colonização, e logo depois da Independência, uma das diversões dos habitantes era sair para as florestas onde os pombos faziam ninho, derrubar os ninhos com os filhotes, encher carroças inteiras com essas criaturinhas e rodar para casa. Obviamente não conseguiam comer a maior parte, e muitos eram simplesmente jogados fora para apodrecer à margemdo caminho. A mesma coisa aconteceu com o bisonte, do qual outrora havia de 50 a 60 milhões de cabeças nas pradarias. Agora, o pombo-viajante está completamente extinto, e restam apenas alguns poucos milhares de bisontes. Outro caso muito singular é o do rinoceronte indiano, hoje praticamente extinto devido à superstição humana, especialmente dos chineses: encarava-se o chifre do rinoceronte como uma espécie de filtro ou amuleto amoroso, e pagavam-se preços enormes por ele. Lembro que anos atrás visitei o grande armazém nas docas de Londres, onde se descarregavam e leiloavam marfim, chifre, casco de tartaruga e conchas de ostras. Fiquei muito surpreendido ao ver que chifre de rinoceronte era vendido a um preço consideravelmente superior ao do marfim, unicamente por causa do vasto mercado chinês para aquilo que se supunha um afrodisíaco — coisa que o chifre obviamente não era. Para satisfazer a superstição humana, essas interessantes criaturas foram carneadas, e sua espécie está desaparecendo rapidamente na África. Em muitos lugares do mundo o crocodilo também está desaparecendo. Sentiremos falta desse animal tão pouco simpático porque ele realiza uma função muito importante, que agora está sendo descoberta: os crocodilos matam os inimigos dos peixes, bem como os elementos fracos e enfermos entre os peixes. A pesca tornou-se bem pior nos lugares em que os crocodilos desapareceram. As grandes espécies selvagens da África apenas sobrevivem porque em várias partes da África há parques nacionais onde esses animais são cuidadosamente protegidos. Provavelmente continuarão a sobreviver, para benefício da ciência e encanto das pessoas que desejam sair do mundo humano, demasiadamente humano, e ver como se parece o resto da criação. Pensemos agora no mundo vegetal. Começaremos com as florestas. Já falei sobre os cedros do Líbano, uma imensa floresta de árvores magníficas que praticamente desapareceram, deixando as montanhas expostas à erosão. Em muitos lugares todo o topo foi lavado, e nada resta senão a rocha nua; tais lugares, é óbvio, jamais poderão ser reflorestados, e essa mesma situação ocorre a toda hora em todas as partes do mundo. O homem destruiu florestas deliberadamente desde o período da caça: para limpar as florestas — e aumentar a visibilidade — as tribos caçadoras tendiam a queimar a vegetação rasteira, permitindo que o cervo fosse caçado muito mais facilmente do que seria em uma floresta densa. E desde que começou a agricultura, provavelmente em cerca de 8000 a. C., os homens têm cortado (e queimado) florestas a fim de criarem novos lugares onde plantar alimento. Todo o processo foi apressado depois do início da Idade do Ferro, quando se tornou possível romper, com os arados de ferro, solos duros demais para os arados de madeira usados no passado. Outro invento importante para apressar o desenvolvimento da agricultura apareceu pelo século xviii, quando um recurso aparentemente muito simples, o arreio de peito, permitiu aos cavalos puxarem um peso muito maior e com muito mais força do que com a antiga forma de arreios. Esses avanços tecnológicos, somados a um lento mas constante aumento de população, naturalmente causaram o abate de imensas florestas. Igualmente importante em tempos mais recentes, em especial na destruição das florestas que rodeavam centros urbanos, foi o uso da madeira como combustível.

Se lermos a Encyclopaedia de Diderot, encontraremos um relato muito, muito interessante de como se fornecia madeira a Paris para aquecimento. Todas as florestas ao redor de Paris tinham sido exauridas, e a madeira vinha de centenas de quilômetros além, flutuando em grandes balsas pelo Sena e seus afluentes abaixo. Depois as balsas eram ancoradas nos cais de Paris, e a madeira distribuída. Diderot, um dos poucos intelectuais do século xviii que se interessou profundamente pelo progresso tecnológico de seu tempo, afirmou que isso não podia continuar, e que a única esperança era usar carvão para aquecimento; na verdade, nesse período começou-se a empregar carvão em grande escala, o que ajudou a salvar as florestas da destruição total. Além do aquecimento, a madeira era empregada na indústria. Todos os minérios eram fundidos à base de carvão, até que pela primeira vez se fabricou aço com coque, no começo do século xviii, de modo que, onde havia metalurgias, deu-se uma prodigiosa destruição de florestas. O mesmo aconteceu onde quer que houvesse indústrias de fabricação de vidro. Embora o vidro seja uma invenção bastante antiga — cerca de 3000 a. C. —, era muito caro e difícil de produzir até o aperfeiçoamento da arte de soprar vidro, no primeiro século de Era Cristã. Essa invenção levou rapidamente à formação de indústrias de vidro ao redor do Mediterrâneo e mais ao norte, como na Inglaterra e em Colônia, resultando num enorme abate de florestas. Outra razão muito importante para a destruição de florestas foi a construção de casas e, mais significativo ainda, de navios. É interessante ver como as madeiras adequadas para construir navios se exauriram depressa na Europa Ocidental. A armada francesa não conseguia encontrar madeira adequada em seu próprio território desde o fim do século xvii, e teve de ser suprida com madeira vinda até da Albânia. No tempo de sua grande expansão naval no século xvi, os espanhóis dependiam não apenas de madeira da Espanha, mas de madeira vinda do Báltico. Encontraremos uma referência a isso no Diário de Pepys, dizendo: “Sabe Deus de onde virá o nosso carvalho”. E, na verdade, o carvalho estava acabando. No século xviii, período da supremacia naval britânica, o carvalho para os navios vinha predominantemente do Novo Mundo, Nova Inglaterra e costa leste dos eua. Quanto ao resto, era teca do Império Indiano. Afortunadamente, talvez, a batalha de Hampton Roads, em 1862, mostrou que o navio de ferro era infinitamente superior ao de madeira, e consequentemente a construção de navios deixou de ser motivo para arrasar florestas de crescimento lento. A área onde melhor vemos a devastação de árvores é no Velho Mundo, mais visivelmente ainda no antigo mundo civilizado ao redor do Mediterrâneo. Também aparece com terrível nitidez no noroeste, aqui e ali nos Grandes Lagos. Naturalmente ainda há grandes florestas nos Estados Unidos, mas o corte anual de madeira excede em 50% o crescimento anual. É bastante óbvio que não se pode continuar com esse tipo de coisa por muito tempo e esperar ter muitas florestas. As florestas na Europa costumavam descer da parte norte até a costa do Mediterrâneo.

Hoje há muito poucas áreas na costa do Mediterrâneo em que ainda se podem ver traços das antigas florestas. Ao sul da França, a leste de Hyeres, há uma floresta de 160 quilômetros quadrados, chamada Forêt des Morts; é tudo o que resta da grande floresta primitiva, que já desaparecera em grande parte mesmo nos tempos clássicos, e que simplesmente sumiu na Idade Média, em grande parte por causa das indústrias de vidro e sabão de Marselha, e da construção de navios em Toulon e Marselha. Para os que se interessam por pintura de paisagens, é uma coisa curiosa notar que a paisagemconsiderada típica da Provença, assim como a vemos nos quadros de Cézanne, é uma paisagemrelativamente moderna. Representa colinas que foram devastadas, deixando seus ossos expostos. Provavelmente muitas delas são casos sem esperança e jamais poderão ser reflorestadas. Parecemmuito pitorescas, mas devemos lembrar que são produto de degeneração e destruição. A mesma coisa aplica-se a outras partes do Mediterrâneo. Se formos à Tunísia e entrarmos terra a dentro, partindo do Sousse, veremos um gigantesco anfiteatro romano, El Djem, que perde em tamanho só para o Coliseu e está plantado no meio do deserto. El Djem situava-se numa província que se chamava Frugifera no tempo dos romanos, isto é, a província que dava frutos. Hoje em dia está quase totalmente deserta, com algumas choupanas árabes espalhadas ao pé da grande construção. Esse quadro ocorre repetidamente. Homero fala nos altos carvalhos e pinheiros da Sicília. Agora, pode-se cruzar a Sicília de um lado a outro e dificilmente ver uma só árvore. Há alguns poucos lugares emque se tentou o reflorestamento, mas essa região outrora extremamente bem provida de florestas e de madeiras está quase totalmente nua. O mesmo acontece na Grécia, Palestina, Síria, Espanha e no sul da Itália.

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