A relação da pluralidade de pessoas com a pessoa singular a que chamamos “indivíduo”, bem como da pessoa singular com a pluralidade, não é nada clara em nossos dias. Mas é freqüente não nos darmos conta disso, e menos ainda do porquê. Dispomos dos conhecidos conceitos de “indivíduo” e “sociedade”, o primeiro dos quais se refere ao ser humano singular como se fora uma entidade existindo em completo isolamento, enquanto o segundo costuma oscilar entre duas idéias opostas, mas igualmente enganosas. A sociedade é entendida, quer como mera acumulação, coletânea somatória e desestruturada de muitas pessoas individuais, quer como objeto que existe para além dos indivíduos e não é passível de maior explicação. Neste último caso, as palavras de que dispomos, os conceitos que influenciam decisivamente o pensamento e os atos das pessoas que crescem na esfera delas, fazem com que o ser humano singular, rotulado de indivíduo, e a pluralidade das pessoas, concebida como sociedade, pareçam ser duas entidades ontologicamente diferentes. Este livro concerne àquilo a que se referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade” em sua forma atual, ou seja, a certos aspectos dos seres humanos. Oferece instrumentos para pensar nas pessoas e observá-las. Alguns deles são bastante novos. É incomum falar-se em uma sociedade dos indivíduos. Mas talvez isso seja muito útil para nos emanciparmos do uso mais antigo e familiar que, muitas vezes, leva os dois termos a parecerem simples opostos. Isso não basta. Libertar o pensamento da compulsão de compreender os dois termos dessa maneira é um dos objetivos deste livro. Só é possível alcançá-lo quando se ultrapassa a mera crítica negativa à utilização de ambos como opostos e se estabelece um novo modelo da maneira como, para o bem ou para o mal, os seres humanos individuais ligam-se uns aos outros numa pluralidade, isto é, numa sociedade. Que esse é um dos problemas cardeais da sociologia foi algo que se tornou claro para mim há cerca de 50 anos, quando trabalhava em meu estudo intitulado O processo civilizador. II Na verdade, os primeiros esboços de A sociedade dos indivíduos foram concebidos como parte da teoria abrangente contida no segundo volume daquele livro. Tenho ainda algumas provas do livro sobre a civilização, cujo conteúdo compõe a Parte I do texto aqui publicado. No decorrer de meu trabalho no livro anterior, o problema da relação entre indivíduo e sociedade aflorava constantemente. É que o processo civilizador estendia-se por inúmeras gerações; podia ser rastreado ao longo do movimento observável, numa determinada direção, do limiar de vergonha e constrangimento. Isso significava que as pessoas de uma geração posterior ingressavam no processo civilizador numa fase posterior. Ao crescerem como indivíduos, tinham que se adaptar a um padrão de vergonha e constrangimento, em todo o processo social de formação da consciência, posterior ao das pessoas das gerações precedentes. O repertório completo de padrões sociais de auto-regulação que o indivíduo tem que desenvolver dentro de si, ao crescer e se transformar num indivíduo único, é específico de cada geração e, por conseguinte, num sentido mais amplo, específico de cada sociedade. Meu trabalho sobre o processo civilizador, portanto, mostrou-me com muita clareza que algo que não despertava vergonha num século anterior podia ser vergonhoso num século posterior e vice-versa. Tinha plena consciência de que também eram possíveis os movimentos no sentido oposto. Mas, qualquer que fosse a direção, a evidência da mudança deixava claro a que ponto cada pessoa era influenciada, em seu desenvolvimento, pela posição em que ingressava no fluxo do processo social. Depois de trabalhar por algum tempo, ficou claro para mim que o problema da relação do indivíduo com os processos sociais ameaçava desarticular a estrutura do livro sobre a civilização, apesar dos estreitos vínculos entre os dois temas.
O livro sobre a civilização, de qualquer modo, já estava bastante longo. Assim, tratei de concluí-lo, retirando dele as partes em que tentava esclarecer a relação entre sociedade e indivíduo. Esse tema me fascinava. Sua importância para os fundamentos da sociologia como ciência foi ficando cada vez mais clara para mim. Continuei a trabalhar nele, produzindo inicialmente o texto aqui impresso na primeira parte. Ele mostra uma etapa inicial de meu esforço de abordar o problema. Mas demonstra também que o relato de uma fase relativamente inicial da investigação de um problema fundamental possui um valor próprio, mesmo que o trabalho a esse respeito, mais tarde, tenha avançado. É difícil deixar de pensar que, ao se reconstruir o desenvolvimento das soluções posteriores e mais abrangentes de um problema documentando as diferentes etapas da investigação, o acesso às etapas posteriores da solução torna-se mais fácil. Facultando-se ao leitor a possibilidade de refletir sobre as limitações presentes nas soluções anteriores, ele é poupado da dificuldade de tentar compreender as idéias posteriores como se houvessem surgido do nada, sem nenhuma reflexão prévia, na cabeça de determinada pessoa. Subjazendo à estrutura deste livro, há uma concepção muito diferente de como se formam as idéias. As três partes que o integram foram redigidas em épocas diferentes. A primeira mostra a etapa mais inicial de minhas reflexões sobre o problema da pessoa singular dentro da pluralidade de pessoas, tema anunciado pelo título do livro. A segunda parte é um exemplo do trabalho posterior sobre essa mesma questão; a terceira é a etapa mais recente e final desse trabalho contínuo. A mudança em minha abordagem do problema da relação entre indivíduo e sociedade, que se deu ao longo de uns bons 50 anos, sem dúvida reflete modificações específicas ocorridas nos indivíduos e sociedades nesse mesmo período. Reflete, portanto, mudanças na maneira como a sociedade é compreendida, e até na maneira como as diferentes pessoas que formam essas sociedades entendem a si mesmas: em suma, a auto-imagem e a composição social — aquilo a que chamo o habitus — dos indivíduos. Mas, por outro lado, como veremos, o modo global de abordagem do problema tambémse alterou consideravelmente. O problema tornou-se mais concreto. Os conceitos utilizados conformam-se mais estreitamente à situação observável de cada pessoa dentro da sociedade. Paradoxalmente, isso é acompanhado por uma elevação do nível da discussão que leva a uma síntese num plano mais elevado. Isso se expressa no conceito fundamental da balança nós-eu, o qual indica que a relação da identidade-eu com a identidade-nós do indivíduo não se estabelece de uma vez por todas, mas está sujeita a transformações muito específicas. Em tribos pequenas e relativamente simples, essa relação é diferente da observada nos Estados industrializados contemporâneos, e diferente, na paz, da que se observa nas guerras contemporâneas. Esse conceito faz com que se abramà discussão e à investigação algumas questões da relação entre indivíduo e sociedade que permaneceriam inacessíveis se continuássemos a conceber a pessoa, e portanto a nós mesmos, como um eu destituído de um nós. Parte I A Sociedade dos Indivíduos (1939) I Todos sabem o que se pretende dizer quando se usa a palavra “sociedade”, ou pelo menos todos pensam saber. A palavra é passada de uma pessoa para outra como uma moeda cujo valor fosse conhecido e cujo conteúdo já não precisasse ser testado. Quando uma pessoa diz “sociedade” e outra a escuta, elas se entendem sem dificuldade.
Mas será que realmente nos entendemos? A sociedade, como sabemos, somos todos nós; é uma porção de pessoas juntas. Mas uma porção de pessoas juntas na Índia e na China formam um tipo de sociedade diferente da encontrada na América ou na Grã-Bretanha; a sociedade composta por muitas pessoas individuais na Europa do século XII era diferente da encontrada nos séculos XVI ou XX. E, embora todas essas sociedades certamente tenham consistido e consistam em nada além de muitos indivíduos, é claro que a mudança de uma forma de vida em comum para outra não foi planejada por nenhum desses indivíduos. Pelo menos, é impossível constatarmos que qualquer pessoa dos séculos XII ou mesmo XVI tenha conscientemente planejado o desenvolvimento da sociedade industrial de nossos dias. Que tipo de formação é esse, esta “sociedade” que compomos em conjunto, que não foi pretendida ou planejada por nenhum de nós, nem tampouco por todos nós juntos? Ela só existe porque existe um grande número de pessoas, só continua a funcionar porque muitas pessoas, isoladamente, querem e fazemcertas coisas, e no entanto sua estrutura e suas grandes transformações históricas independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa em particular. Examinando as respostas que hoje se oferecem a essas questões e a outras similares, defrontamonos, em termos gerais, com dois campos opostos. Parte das pessoas aborda as formações sóciohistóricas como se tivessem sido concebidas, planejadas e criadas, tal como agora se apresentam ao observador retrospectivo, por diversos indivíduos ou organismos. Alguns indivíduos, dentro desse campo geral, talvez tenham certo nível de consciência de que esse tipo de resposta realmente não é satisfatório. É que, por mais que distorçam suas idéias de modo a fazê-las corresponderem aos fatos, o modelo conceitual a que estão presos continua a ser o da criação racional e deliberada de uma obra — como um prédio ou uma máquina — por pessoas individuais. Quando têm à sua frente instituições sociais específicas, como os parlamentos, a polícia, os bancos, os impostos ou seja lá o que for, eles procuram, para explicá-las, as pessoas que originalmente criaram tais instituições. Ao lidarem com um gênero literário, buscam o escritor que constituiu o que os outros seguiram como modelo. Ao depararem com formações em que esse tipo de explicação é difícil — a linguagem ou o Estado, por exemplo —, ao menos procedem como se essas formações sociais pudessem ser explicadas da mesma forma que as outras, aquelas que seriam deliberadamente produzidas por pessoas isoladas para fins específicos. Podem argumentar, por exemplo, que a finalidade da linguagem é a comunicação entre as pessoas, ou que a finalidade do Estado é a manutenção da ordem — como se, no curso da história da humanidade, a linguagem ou a organização de associações específicas de pessoas sob a forma de Estados tivesse sido deliberadamente criada para esse fim específico por indivíduos isolados, como resultado de um pensamento racional. E, com bastante freqüência, ao serem confrontados com fenômenos sociais que obviamente não podem ser explicados por esse modelo, como é o caso da evolução dos estilos artísticos ou do processo civilizador, seu pensamento estanca. Param de formular perguntas. Já o campo oposto despreza essa maneira de abordar as formações históricas e sociais. Para seus integrantes, o indivíduo não desempenha papel algum. Seus modelos conceituais são primordialmente extraídos das ciências naturais; em particular, da biologia. Mas nesse caso, como tantas vezes acontece, os modos científicos de pensamento misturam-se, fácil e imperceptivelmente, com os modos religiosos e metafísicos, formando uma perfeita unidade. A sociedade é concebida, por exemplo, como uma entidade orgânica supra-individual que avança inelutavelmente para a morte, atravessando etapas de juventude, maturidade e velhice. As idéias de Spengler constituem bom exemplo dessa maneira de pensar, mas hoje se encontram noções análogas, independentemente dele, nos mais variados matizes e cores. E, ainda quando não se vêem levados, por força das experiências de nossa época, ao equívoco de conceber uma teoria geral da ascensão e declínio das sociedades como algo inevitável, ainda quando antevêem um futuro melhor para nossa sociedade, até os adversários dessa perspectiva spengleriana compartilham — por estarem dentro desse mesmo campo — uma abordagem que tenta explicar as formações e processos sócio-históricos pela influência de forças supra-individuais anônimas. Vez por outra, muito particularmente em Hegel, isso dá margem a uma espécie de panteísmo histórico: um Espírito do Mundo, ou até o próprio Deus, ao que parece, encarna-se num mundo histórico em movimento, diferente do mundo estático de Spinoza, e serve de explicação para sua ordem, periodicidade e intencionalidade. Ou então esse tipo de pensador ao menos imagina formações sociais específicas, habitadas por um espírito supra-individual comum, como o “espírito” da Grécia antiga ou da França. Enquanto, para os adeptos da convicção oposta, as ações individuais se encontram no centro do interesse e qualquer fenômeno que não seja explicável como algo planejado e criado por indivíduos mais ou menos se perde de vista, aqui, neste segundo campo, são os próprios aspectos que o primeiro julga inabordáveis — os estilos e as formas culturais, ou as formas e instituições econômicas — que recebem maior atenção.
E enquanto, no primeiro campo, continua obscuro o estabelecimento de uma ligação entre os atos e objetivos individuais e essas formações sociais, no segundo não se sabe com maior clareza como vincular as forças produtoras dessas formações às metas e aos atos dos indivíduos, quer essas forças sejamvistas como anonimamente mecânicas, quer como forças supra-individuais baseadas em modelos panteístas. Mas dificuldades dessa natureza não se encontram apenas no estudo de fatos históricos e sociais no sentido mais estrito. Não menos intrusivas são elas quando se tenta compreender os seres humanos e a sociedade em termos de funções psicológicas. Na ciência que lida com fatos dessa espécie, encontram-se, de um lado, ramos de pesquisa que tratam o indivíduo singular como algo que pode ser completamente isolado e que buscam elucidar a estrutura de suas funções psicológicas independentemente de suas relações com as demais pessoas. Por outro lado, encontram-se correntes, na psicologia social ou de massa, que não conferem nenhum lugar apropriado às funções psicológicas do indivíduo singular. Às vezes, os membros deste último campo, mais ou menos como seus equivalentes nas ciências sociais e históricas, atribuem a formações sociais inteiras, ou a uma massa de pessoas, uma alma própria que transcende as almas individuais, uma anima collectiva ou “mentalidade grupal”. E, quando não chegam a ir tão longe, é comum se contentarem em tratar os fenômenos sócio-psicológicos como a soma ou — o que dá na mesma — a média das manifestações psicológicas de muitos indivíduos. A sociedade se afigura, nesse caso, simplesmente como uma acumulação aditiva de muitos indivíduos, e o processamento estatístico dos dados psicológicos aparece não apenas como um auxiliar essencial, mas como a meta e a evidência mais sólida da pesquisa psicológica. E, como quer que procedam quanto aos detalhes os vários ramos da psicologia individual e social, a relação entre seus objetos de estudo, observada desse ponto de vista geral, permanece mais ou menos misteriosa. Muitas vezes, é como se as psicologias do indivíduo e da sociedade parecessem duas disciplinas completamente distinguíveis. E as questões levantadas por cada uma delas costumam ser formuladas de maneira a deixar implícito, logo de saída, que existe um abismo intransponível entre o indivíduo e a sociedade. Para onde quer que nos voltemos, deparamos com as mesmas antinomias. Temos uma certa idéia tradicional do que nós mesmos somos como indivíduos. E temos uma certa noção do que queremos dizer quando dizemos “sociedade”. Mas essas duas idéias — a consciência que temos de nós como sociedade, de um lado, e como indivíduos, de outro — nunca chegam realmente a coalescer. Decerto nos apercebemos, ao mesmo tempo, de que na realidade não existe esse abismo entre o indivíduo e a sociedade. Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos. Mas, quando tentamos reconstruir no pensamento aquilo que vivenciamos cotidianamente na realidade, verificamos, como naquele quebra-cabeça cujas peças não compõem uma imagem íntegra, que há lacunas e falhas em constante formação em nosso fluxo de pensamento. O que nos falta — vamos admiti-lo com franqueza — são modelos conceituais e uma visão global mediante os quais possamos tornar compreensível, no pensamento, aquilo que vivenciamos diariamente na realidade, mediante os quais possamos compreender de que modo um grande número de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos isolados: como é que eles formam uma “sociedade” e como sucede a essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue um curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem. Na tentativa de superar uma dificuldade análoga, Aristóteles certa vez apontou um exemplo singelo: a relação entre as pedras e a casa. Esta realmente nos proporciona um modelo simples para mostrar como a junção de muitos elementos individuais forma uma unidade cuja estrutura não pode ser inferida de seus componentes isolados. É que certamente não se pode compreender a estrutura da casa inteira pela contemplação isolada de cada uma das pedras que a compõem. Tampouco se pode compreendê-la pensando na casa como uma unidade somatória, uma acumulação de pedras; talvez isso não seja totalmente inútil para a compreensão da casa inteira, mas por certo não nos leva muito longe fazer uma análise estatística das características de cada pedra e depois calcular a média. Em nossos dias, a teoria da Gestalt descortinou mais a fundo esses fenômenos. Ensinou-nos, primeiramente, que o todo é diferente da soma de suas partes, que ele incorpora leis de um tipo especial, as quais não podem ser elucidadas pelo exame de seus elementos isolados.
Essa teoria forneceu à consciência geral de nossa época diversos modelos simples, capazes de nos ajudar a fazer o pensamento avançar nessa direção, como o exemplo da melodia, que também não consiste em nada além de notas individuais, mas é diferente de sua soma, ou o exemplo da relação entre a palavra e os sons, a frase e as palavras, o livro e as frases. Todos esses exemplos mostram a mesma coisa: a combinação, as relações de unidades de menor magnitude — ou, para usarmos um termo mais exato, extraído da teoria dos conjuntos, as unidades de potência menor — dão origem a uma unidade de potência maior, que não pode ser compreendida quando suas partes são consideradas em isolamento, independentemente de suas relações. Mas, se esses são os modelos que poderão facilitar nosso raciocínio sobre a relação entre indivíduo e sociedade, não surpreende que nossa auto-imagem lhes oponha resistência. As pedras talhadas e encaixadas para compor uma casa não passam de um meio; a casa é o fim. Seremos também nós, como seres humanos individuais, não mais que um meio que vive e ama, luta e morre, em prol do todo social? Essa pergunta leva-nos a um debate cujos meandros e reviravoltas nos são mais do que conhecidos. Uma das grandes controvérsias de nossa época desenrola-se entre os que afirmam que a sociedade, em suas diferentes manifestações — a divisão do trabalho, a organização do Estado ou seja lá o que for —, é apenas um “meio”, consistindo o “fim” no bem-estar dos indivíduos, e os que asseveram que o bem-estar dos indivíduos é menos “importante” que a manutenção da unidade social de que o indivíduo faz parte, constituindo esta o “fim” propriamente dito da vida individual. Acaso já não equivaleria a tomarmos partido nesse debate o fato de começarmos a procurar modelos para compreender a relação entre indivíduo e sociedade nas relações entre os tijolos e a casa, as notas e a melodia, a parte e o todo? Na vida social de hoje, somos incessantemente confrontados pela questão de se e como é possível criar uma ordem social que permita uma melhor harmonização entre as necessidades e inclinações pessoais dos indivíduos, de um lado, e, de outro, as exigências feitas a cada indivíduo pelo trabalho cooperativo de muitos, pela manutenção e eficiência do todo social. Não há dúvida de que isso — o desenvolvimento da sociedade de maneira a que não apenas alguns, mas a totalidade de seus membros tivesse a oportunidade de alcançar essa harmonia — é o que criaríamos se nossos desejos tivessem poder suficiente sobre a realidade. Mas, ao pensarmos calmamente no assunto, logo se evidencia que as duas coisas só são possíveis juntas: só pode haver uma vida comunitária mais livre de perturbações e tensões se todos os indivíduos dentro dela gozarem de satisfação suficiente; e só pode haver uma existência individual mais satisfatória se a estrutura social pertinente for mais livre de tensão, perturbação e conflito. A dificuldade parece estar em que, nas ordens sociais que se nos apresentam, uma das duas coisas sempre leva a pior. Entre as necessidades e inclinações pessoais e as exigências da vida social, parece haver sempre, nas sociedades que nos são familiares, umconflito considerável, um abismo quase intransponível para a maioria das pessoas implicadas. E parece razoável supor que é aí, nessas discrepâncias de nossa vida, que se devem buscar as razões das discrepâncias correspondentes em nosso pensamento. Há uma clara ligação entre os abismos que se abrem entre indivíduo e sociedade, ora aqui, ora ali, em nossas estruturas de pensamento, e as contradições entre exigências sociais e necessidades individuais que são um traço permanente de nossa vida. Os projetos que hoje nos são oferecidos para pôr termo a essas dificuldades parecem, ante um exame rigoroso, apenas voltados para solucionar uma coisa à custa da outra.
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