Na sociedade do espetáculo, quando a utopia e o simulacro ainda eram uma mesma realidade, embora dissimulassem essa identidade graças a um mecanismo indecifrável da astúcia estrutural, a teoria literária anunciou solenemente a morte do autor. Foi o crime perfeito. O leitor nunca ficou sabendo. Uma notícia ignorada até pelas agências. O cadáver não desapareceu, mas foi clonado ao infinito, até não ser mais notado pelos críticos ou pelos jornalistas. Dissolveu-se por saturação. Na sociedade midíocre, a investigação policial e epistemológica produziu novos e impressionantes resultados: descobriu-se que primeiro foi a obra que morreu, sepultando a arma do crime e o próprio crime. Aliás, um crime mais-queperfeito: o autor ainda está por toda parte. Para isso deve ser uma celebridade em qualquer ramo. Nem precisa mais contratar um ghost-writer para servir-lhe de fantasma particular ou de pistoleiro negro de aluguel. A literatura, enfim, virou notícia jornalística de capa: como ficção. 2 A ficção tem a sua realidade. Os iluministas inventaram o culto à transparência. A sociedade do espetáculo trocou-o pelo culto total à visibilidade. A sociedade midíocre foi mais longe e deu visibilidade a personagens obscuros, iluminandoos até revelar a transparência, ou opacidade, dos seus espíritos. Quando tudo é luz, transparência absoluta, nada há mais para ver. Então, cada um tem direito ao seu próprio programa sem preocupação com audiência. Paradoxo da luz: quando todos ganham direito à visibilidade, triunfa a invisibilidade. 3 Na sociedade moderna, política e utópica, a participação era o princípio maior e o horizonte a ser perseguido à custa da própria existência. A sociedade do espetáculo, apolítica, trocou a participação pela contemplação ativa. Avançou-se do imaginário à imagem e desta à falta de imaginação. A sociedade midíocre, transpolítica ou hiperativa, criou a interatividade, sistema de participação sem engajamento nemcausa, através da qual cada um pode participar do mundo todo contemplativamente e sem qualquer risco. Passamos da verdade emancipadora à simulação e da simulação à meia-verdade, assim como fomos da monogamia ao amor livre e retornamos ao simples culto das aparências, o adultério. 4 Na sociedade moderna, da democracia representativa, vivíamos por delegação. Na sociedade do espetáculo, passamos a viver por procuração, deixando aos nossos ídolos a tarefa de gozar ou de sofrer por nós, reservando-nos o direito de trocá-los por outros a qualquer momento.
Na sociedade midíocre, vivemos num permanente reality show no qual representamos os nossos delegados com a mesma infidelidade e imitamos os nossos ídolos com a mesma volubilidade. Abandonamos a ideia de corrente e aderimos ao cabo. Por fim, caímos na rede. Ainda temos astros. Podemos segui-los por satélite ou pelo Twitter e pelo Facebook. Mas mudamos de órbita: saltamos da tela total para a totalidade da tela. Antes, vivíamos por um fio. Agora, nem isso. A invisibilidade como consequência do excesso de visibilidade exige novos mecanismos de descobrimento e desconstrução. A compreensão do novo imaginário depende do desvendamento de uma teia de palavras que se complementam e se contradizem. 5 Na fria sociedade midíocre, pós-pós-estruturalista e antiutópica, sem narrativas legitimadoras nem promessas de redenção num amanhã paradisíaco, embora com legitimidades narradas minuciosamente a cada dia, o problema deixou, por exemplo, de ser a tão criticada falta de objetividade jornalística ou das ciências humanas e passou a ser a falta total de subjetividade dos jornalistas e dos cientistas. 6 Inversão de papel: no apogeu da sociedade do espetáculo, sendo o apogeu sempre o começo da decadência e a decência o princípio de uma nova idade de ouro, o virtual apareceu como hiper-real, uma realidade com a sua prótese tecnológica e o seu vasto manual de utilização. Era o replay do gol que tornava o gol sem repetição algo incompleto, pobre, insuportável, como se lhe faltasse algo, uma realidade tornada deficiente por excesso de verdade. Na sociedade do hiperespetáculo, o real “real”, não o virtual, tornou-se o verdadeiro hiper-real. Por exemplo, o papel. Uma publicação impressa ainda aparece para alguns como mais real do que uma publicação virtual, o que dá ao papel umcaráter mais real do que real, um lastro-realidade, uma mais-valia nostálgica de natureza pouco “promissória”. 7 Não se trata, porém, de mero jogo de palavras. Na sociedade do espetáculo, o meio tornara-se a mensagem. Na sociedade midíocre, no seu primeiro momento, o meio continuou sendo o fim. Mas o mesmo ficou diferente graças à hegemonia provisória da formatação. Não há mais fim. Apenas finalidade. A cara teleologia filosófica converteu-se numa reles 10 teologia de mercado central, uma parada pontual, um ponto de encontro de possibilidades que não se projetam. 8 O virtual superou o real por um excesso de realidade criando uma redundância intemporal, o tempo real. O hiper-real é essa irrealidade virtual às voltas com sua desmaterialização ainda emcurso.
Uma realidade que, desde sempre, esteve aquém e além da sua evidência, mas que se impõe agora como uma clarividência: o futuro no presente. 9 A grande ilusão dos empiristas, determinados a apresentar a prova ou a negação concreta das teorias abstratas, era pensar numa realidade dura como ferro e verdadeira como o fim de uma ilusão. A ilusão ainda maior dos tecnicistas e dos deterministas tecnológicos foi pensar que a realidade virtual era tão ou mais real que a realidade real. A realidade é sempre virtual. Ela nunca deixa de ser, em qualquer suporte, uma virtual irrealidade. 10 Desse embate entre virtual e real surge uma conclusão parcial: somente a perdição salva da produção. A perdição é o desejo de ser a “parte maldita” sem o custo da despesa nem o risco da consumição. Por isso nem precisa mais ser realizada. A perdição basta-se como desejo de desejo. 11 Quando tudo se torna objeto, transcendência da mercadoria como forma superior de um mundo elevado à sua condição inferior, a publicidade elimina o objeto da sua mensagem para multiplicá-lo ao infinito como conceito 11 desprendido do corpo e como gadget. Não se vende mais só um material, nem mesmo uma abstração, mas um imaginário. O imaterial como trampolim abjeto para o material soberano. 12 O imaginário sempre é uma produção capital sem autoria. O mais verdadeiro momento da hipermodernidade é a falsificação do que há de mais falso no hipercapitalismo: o valor e a essência das marcas. Uma questão de estilo. 13 Talvez a hipótese mais radical em relação à sociedade mídíocre seja a do completo deslocamento entre a venda de um produto e a publicidade que o anuncia. E se não houvesse qualquer relação entre o anúncio e a venda de um produto? E se entre o alto consumo de um produto e uma campanha publicitária não houvesse mais do que uma relação de coincidência? Talvez seja esse o grande truque da sociedade hiperespetacular: o publicitário convence o anunciante de que o seu trabalho é decisivo para a vendagem de um produto, mas ele mesmo não tem a menor certeza disso. Essa hipótese decorre de uma outra relação de descontinuidade: para vender objetos (produtos) a publicidade faz o objeto desaparecer, nunca falando dele. Se o consumidor não precisa saber do objeto para comprá-lo, por que precisaria saber do seu anúncio? A publicidade, sabe-se, é um truque. Somente o publicitário não sabe mais disso. 14 Para Balzac, autor realista, se a imprensa não existisse seria preciso não inventála. Na sociedade mídiocre, hiper-realista, a imprensa não existe mais, a não ser como entretenimento ou reality show em tempo real. A realidade é hiperespetacular. O sonho do escritor foi, enfim, realizado como ficção descolada dos personagens. 15 O publicitário inventava o truque e o disseminava.
O sociólogo o denunciava com um repetitivo “eu vi, eu vi, é truque”. Assim, o publicitário era um construtor de mitos, enquanto o sociólogo era um chato. Agora, depois do fim da separação entre ilusão e realidade, a sociologia é apenas um departamento secundário das agências de publicidade. 16 O tempo real instaura definitivamente o princípio da irrealidade cotidiana que ecoa por toda parte. Consome a informação como um preenchimento do tempo vazio, uma anedota entre outras mais ou menos graves. Mesmo o “ao vivo” dos telejornais é uma permanente simulação de presença, uma demonstração catódica de força tecnológica com valor distintivo e de marketing institucional, quase sempre com alguns minutos ou até algumas horas de atraso em relação aos fatos e com a eternidade que precede toda invenção bemsucedida de um acontecimento provisório. 17 Na televisão, como se sabe, embora nem sempre se conte isso ao telespectador, tudo está a serviço da sagrada imagem, inclusive o imaginário e o fato. Não conta o que se diz, nem mesmo necessariamente quem o diz, mas, antes de tudo, o efeito de embalagem e a embalagem do efeito. Não se trata de em que circunstâncias se diz algo e sim em qual cenário e com quais recursos se diz esse algo elementar. 18 Triunfo do objeto: seu desaparecimento como conceito. Triunfo do conceito: ser consumido como objeto. O objeto sempre foi um problema para os publicitários, assim como o contingente sempre foi um problema para os filósofos, e os fatos, para os jornalistas. Falar do objeto pressupunha referirse a um valor de uso. Os jornalistas, porém, não trabalham com fatos, mas com acontecimentos. Os filósofos, por seu turno, não conhecem o concreto, mas somente o conceito. Por fim, os publicitários já não dependem concretamente do objeto fatídico e factual. Deram um salto epistemológico e estão agora no valor de troca total: a consumação e a consumição conceitual. Publicitários e filósofos sempre compartilharam a crença na relevância de inventar marcas e nomes. A diferença entre filosofia e publicidade nunca passou de uma “diferança” de investimentos imediatos. Só importa a comunicação eficaz. 19 O efeito de embalagem não é uma mera supremacia da aparência como forma hiperdimensionada. Mas justamente a superação da aparência como categoria visível pela imposição de uma lógica imaginária que faz surgir uma diferença invisível onde só o mesmo se exprime como diferença desencadeada (sem cadeia) e incontornável. Por trás da mensagem se esconde o vazio do conteúdo. Daí por que o conteúdo acabará por se tornar gratuito. Por trás do conteúdo se esconde o silêncio da utopia.
A tela absoluta exige a totalidade de um conjunto de fragmentos vazios. 20 Guy Debord suicidou-se em 1994. Deu capa de jornal. Jean Baudrillard morreu em 2007. A crítica ao espetáculo não passa agora de um Adorno irônico à margem da mídia. As 14 palavras em jogo trazem à tona um mundo encoberto sob a superfície profunda e lacônica dos discursos opacos. A astúcia do trocadilho consiste em fazer pensar que o seu conteúdo se esgota na sua forma anedótica e paródica. 21 Todas essas primeiras marcas ou rastros espalhados como fragmentos remetem a trilhas enigmáticas da Floresta Negra ou aos descaminhos do apagão iluminista: a essência da técnica jornalística e das ciências humanas chegou categoricamente ao fundo de um poço de águas transparentes e geladas: não dizer a verdade sem mentir. Exatamente. Precisão sem essência. A hipermodernidade é cultura da mídia em detrimento do jornalismo – aquém e além das humanidades – que foi a última utopia de emancipação iluminista e modernista, ancorada na informação-verdade. 22 O jornalismo moderno, no seu jargão asfixiante, cobria os eventos para descobrir os fatos. O jornalismo pós-moderno descobria a cobertura como uma forma de desconstrução da sua própria narrativa técnica. O jornalismo hipermoderno está nu. Nada, porém, emana da sua visibilidade excessiva, salvo um brilho sem mais reflexão. 23 A crítica à intolerância expulsou a religião pela porta dos templos. A defesa da tolerância trouxe a religião de volta pela janela das mídias. A obrigação de tolerância com a religião é intolerante com qualquer crítica que negue ou acuse de superstição o esoterismo ascendente. Superstição: a religião do outro. Ideologia: a teoria do outro. Se o homem existe, por que Deus não existiria?
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