| Books | Libros | Livres | Bücher | Kitaplar | Livros |

A sombra da Serpente – Rick Riordan

AQUI É SADIE KANE. Se estiver ouvindo isto, parabéns! Você sobreviveu ao Dia do Juízo Final. Gostaria de me desculpar com antecedência por qualquer inconveniente que o fim do mundo possa ter lhe causado. Os terremotos, as rebeliões, os tumultos, os tornados, as inundações, os tsunamis e, é claro, a serpente gigante que engoliu o Sol… Receio que a maior parte disso tenha sido culpa nossa. Carter e eu decidimos que precisávamos, no mínimo, explicar como isso aconteceu. Este provavelmente será nosso último registro. Quando você tiver ouvido nossa história, o motivo ficará evidente. Nossos problemas começaram em Dallas, quando carneiros cuspidores de fogo destruíram a exposição do Rei Tut. * * * Naquela noite os magos do Texas davam uma festa no jardim de esculturas em frente ao Museu de Arte de Dallas. Os homens usavam smoking e botas de caubói. As mulheres estavam com vestidos de gala e penteados que lembravam explosões de algodão-doce. [Carter diz que ninguém fala vestido de gala, e sim vestido longo. Não quero saber. Sou garota e fui criada em Londres, então vocês vão ter que me entender e aprender meu jeito de falar.] Uma banda tocava músicas country antigas na tenda. Luzinhas decorativas cintilavam nas árvores. De vez em quando, magos surgiam de portas secretas nas esculturas ou invocavam faíscas para se livrar de mosquitos irritantes, mas, fora isso, parecia ser uma festa bem normal. O líder do Quinquagésimo Primeiro Nomo, JD Grissom, conversava com os convidados e saboreava um prato de tacos com recheio de carne quando o puxamos para uma reunião de emergência. Eu me senti culpada por isso, mas não tínhamos muita escolha, considerando o perigo que ele corria. — Um ataque? — JD Grissom franziu a testa. — A exposição de Tut está aberta há um mês. Se Apófis quisesse, já não teria atacado? JD era alto e robusto, com um rosto enrugado e envelhecido, cabelo ruivo ondulado e mãos ásperas como casca de árvore. Parecia ter uns quarenta anos, mas é difícil determinar a idade de um mago. Ele poderia ter quatrocentos. Vestia terno preto, uma gravata fina de caubói e um cinto de fivela grande com uma estrela solitária de prata, como um xerife do Velho Oeste.


— Vamos conversar no caminho — disse Carter. Ele nos conduziu para o outro lado do jardim. Devo admitir que meu irmão estava incrivelmente confiante. Ele ainda era um grande tonto, é claro. O cabelo castanho e crespo tinha uma falha do lado esquerdo, onde seu grifo lhe dera uma “mordida de amor”, e pelos arranhões no rosto dava para perceber que ele ainda não havia dominado a arte de se barbear. Mas, desde que completara quinze anos, Carter havia espichado e ganhado músculos devido às horas de treinamento de combate. Parecia altivo e maduro com suas roupas de linho preto, especialmente com aquela espada khopesh junto ao corpo. Eu conseguia quase imaginá-lo como um líder sem gargalhar histericamente com isso. [Por que está me olhando feio, Carter? Foi uma descrição bem generosa.] Carter contornou a mesa do bufê e pegou um punhado de nachos no caminho. — Apófis tem um padrão — ele falou para JD. — Todos os outros ataques aconteceram em noites de lua nova, quando a escuridão é maior. Acredite, ele vai atacar seu museu hoje à noite. E vai atacar com força. JD Grissom se espremeu para passar por um grupo de magos bebendo champanhe. — Esses outros ataques… Você se refere a Chicago e à Cidade do México? — E a Toronto — acrescentou Carter. — E… alguns outros. Eu sabia que ele não queria contar mais. Os ataques que havíamos testemunhado ao longo do verão nos causaram pesadelos. É verdade, o Armagedom absoluto ainda não tinha acontecido. Apófis, a Serpente do Caos, escapara de sua prisão no mundo inferior seis meses atrás, mas, diferentemente do que esperávamos, ele ainda não promovera uma invasão em grande escala no mundo mortal. Por algum motivo, a Serpente aguardava, contentando-se com ataques menores contra nomos que pareciam seguros e felizes. Como este, pensei. Enquanto passávamos pela tenda, a banda tocava o final de uma música. Uma loura bonita comum violino acenou com o arco para JD.

— Venha, querido! — chamou. — Precisamos de você na guitarra! Ele forçou um sorriso. — Daqui a pouco, benzinho. Já volto. Seguimos em frente. JD olhou para nós. — Minha esposa, Anne. — Ela também é maga? — perguntei. Ele assentiu, assumindo uma expressão grave. — Esses ataques. Por que vocês têm tanta certeza de que Apófis vai atacar este lugar? Carter estava com a boca cheia de nachos, então sua resposta foi: — Hum-hum. — Ele está atrás de um artefato — traduzi. — Já destruiu cinco réplicas. E a última existente está na sua exposição sobre Tut. — Que artefato? — JD perguntou. Hesitei. Antes de vir a Dallas, tínhamos lançado todo o tipo de encantamento de defesa e nos enchido de amuletos protetores para evitar bisbilhoteiros mágicos, mas eu ainda ficava nervosa ao conversar sobre nossos planos. — É melhor mostrar — falei. Contornamos uma fonte onde dois magos jovens desenhavam comas varinhas mensagens luminosas de eu amo você nas pedras do calçamento. — Trouxemos nossa própria equipe de especialistas para ajudar. Estão nos esperando no museu. Se você permitir que examinemos o artefato, talvez levá-lo conosco para mantê-lo em segurança… — Levá-lo? — JD interrompeu. — A exposição está fortemente protegida. Meus melhores magos a vigiam dia e noite. Vocês acham que podem fazer melhor na Casa do Brooklyn? Paramos na beirada do jardim.

Do outro lado da rua, um banner do Rei Tut da altura de um prédio de dois andares pendia da lateral do museu. Carter pegou o celular. Ele mostrou a JD Grissom uma imagem na tela: uma mansão incendiada que um dia havia sido o quartel-general do Centésimo Nomo em Toronto. — Tenho certeza de que seus guardas são bons — disse Carter. — Mas preferimos que seu nomo não seja um alvo para Apófis. Nos outros ataques como este… os servos da serpente não deixaram sobreviventes. JD olhou para a tela do celular, depois para a esposa, Anne, que tocava country no violino. — Tudo bem — respondeu ele. — Espero que sua equipe seja excelente. — Eles são incríveis — garanti. — Venha, vamos apresentá-los a você. * * * Nosso grupo de elite de magos estava ocupado atacando a loja de suvenires. Felix havia invocado três pinguins, que circulavam usando máscaras de papel do Rei Tut. Khufu, nosso amigo babuíno, estava sentado em uma estante lendo A história dos faraós, o que teria sido bem impressionante se o livro não estivesse de cabeça para baixo. Walt — ah, querido Walt, por quê? — abrira o armário de joias e examinava pulseiras e colares como se eles pudessem ser mágicos. Alyssa fazia potes de argila levitarem com sua magia elementar da terra, equilibrando vinte ou trinta ao mesmo tempo para formar o número oito. Carter pigarreou. Walt paralisou, as mãos cheias de joias de ouro. Khufu desceu da prateleira e derrubou quase todos os livros. As cerâmicas de Alyssa se espatifaram no chão. Felix tentou afugentar seus pinguins para trás da caixa registradora. (Ele tem uma opinião muito forte sobre a utilidade de pinguins. Receio que não sou capaz de explicar.) JD Grissom tamborilou na Estrela Solitária de seu cinto. — Essa é sua equipe incrível? — Sim! — Tentei abrir um sorriso confiante.

— Peço desculpas pela bagunça. Eu só, hum… Tirei minha varinha do cinto e falei uma Palavra Divina: — Hi-nehm! Eu tinha me aprimorado nesses feitiços. Na maioria das vezes eu conseguia canalizar o poder de minha deusa patrona, Ísis, sem desmaiar. E não explodira nem uma vez. O hieróglifo para Juntar brilhou no ar por um momento: Pedaços quebrados de cerâmica se ergueram e se colaram. Livros voltaram à estante. As máscaras do Rei Tut saíram dos pinguins, revelando que eles eram — espanto — pinguins. Nossos amigos pareciam muito constrangidos. — Desculpe — Walt resmungou, devolvendo as joias à caixa. — Ficamos entediados. Eu não conseguia me zangar com Walt. Ele era alto e atlético, tinha porte de jogador de basquete e usava short e camiseta sem mangas que exibia os braços esculpidos. A pele era cor de chocolate quente, o rosto tão régio e lindo como as estátuas de seus ancestrais faraós. Se eu gostava dele? Bem, é complicado. Depois falo mais disso. JD Grissom olhava para nossa equipe. — É um prazer conhecer todos vocês. — Ele conseguiu conter o entusiasmo. — Venham comigo. O saguão principal do museu era uma ampla sala branca com mesas de restaurante vazias, umpalco e pé-direito alto o bastante para ter uma girafa de estimação. Em um lado, uma escada conduzia a um mezanino com escritórios enfileirados. No outro, vidraças exibiam o céu noturno de Dallas. JD apontou para o mezanino, onde dois homens em vestes de linho preto faziam a ronda. — Estão vendo? Há guardas por todos os lados. Os homens empunhavam cajados e varinhas.

Olharam para nós, e notei que seus olhos brilhavam. Havia hieróglifos desenhados no rosto deles como se fossem pinturas de guerra. — Qual é o problema com os olhos deles? — Alyssa cochichou para mim. — Magia de vigilância — deduzi. — Os símbolos permitem que os guardas enxerguem o Duat. Alyssa mordeu o lábio. Como seu patrono era Geb, o deus da terra, ela gostava de coisas sólidas, como pedra e argila. Não gostava de lugares altos nem de águas profundas. E definitivamente não gostava da ideia do Duat — o reino mágico que coexistia com o nosso. Uma vez, quando descrevi o Duat como um oceano sob nossos pés com várias camadas de dimensões mágicas descendo eternamente, tive a impressão de que Alyssa teria náuseas. Por outro lado, o menino de dez anos, Felix, não tinha esse problema. — Legal! — ele falou. — Quero olhos brilhantes. Ele passou o dedo pelas bochechas, deixando manchas roxas e brilhantes no formato da Antártida. Alyssa riu. — Você consegue ver o Duat agora? — Não — admitiu. — Mas enxergo meus pinguins muito melhor. — Precisamos nos apressar — Carter lembrou. — Apófis costuma atacar quando a lua está em seu ponto mais alto no céu. Que é… — Agh! Khufu levantou os dez dedos. Nada como ser um babuíno para se ter uma perfeita noção de astronomia. — Em dez minutos — falei. — Ótimo. Fomos até a entrada da exposição do Rei Tut, que era difícil de não ver por causa da gigantesca placa dourada que anunciava EXPOSIÇÃO REI TUT. Dois magos montavam guarda com leopardos adultos emcoleiras.

Carter olhou atônito para JD. — Como você conseguiu acesso total ao museu? O texano deu de ombros. — Minha esposa, Anne, é presidente do conselho. Agora, que artefato vocês queriam ver? — Estudei os mapas de sua exposição — Carter respondeu. — Vamos. Vou lhe mostrar. Os leopardos pareciam muito interessados nos pinguins de Felix, mas os guardas os contiverame nos deixaram passar. Dentro do museu a exposição era bem grande, mas duvido que você se interesse pelos detalhes. Um labirinto de salas com sarcófagos, estátuas, móveis, joias de ouro… blá-blá-blá. Eu teria passado direto por tudo isso. Já vi coleções egípcias suficientes por várias vidas, muito obrigada. Além do mais, todo canto para o qual eu olhava me trazia lembranças de experiências ruins. Passamos por vitrines com estatuetas shabti, certamente encantadas para ganharem vida quando fossem chamadas. Eu havia destruído várias daquelas. Passamos por estátuas de monstros e deuses mal-encarados contra os quais eu já havia lutado pessoalmente: o abutre Nekhbet, que uma vez possuíra minha avó (longa história); o crocodilo Sobek, que tentara matar meu gato (história mais longa ainda); e a deusa leoa Sekhmet, que havíamos derrotado certa ocasião com molho de pimenta (nem queira saber). O que era mais perturbador: uma pequena estátua de alabastro de nosso amigo Bes, o deus anão. Era muito antiga, mas reconheci aquele nariz achatado, as costeletas cheias, a barriga redonda e o rosto encantadoramente feio, que parecia ter sido atingido várias vezes por uma frigideira. Estivemos apenas alguns dias com Bes, mas ele literalmente sacrificara a própria alma para nos ajudar. Agora, cada vez que o via, eu me lembrava da dívida que nunca poderia pagar. Devo ter ficado parada na frente da estátua por mais tempo do que percebi. O restante do grupo havia passado por mim e entrava em outra sala, uns vinte metros adiante, quando uma voz perto de mim fez: — Psiu! Olhei em volta. Achei que talvez a estátua de Bes tivesse falado. E então ouvi a voz novamente: — Ei, boneca. Preste atenção. Não há muito tempo.

No meio da parede, à altura de meus olhos, o rosto de um homem surgiu na tinta branca texturizada, como se tentasse atravessá-la. Ele tinha nariz aquilino, lábios finos e cruéis e testa grande. Apesar de ter a mesma cor da parede, parecia muito vivo. Seus olhos vazios conseguiam expressar impaciência. — Vocês não vão salvar o rolo de papiro, boneca — avisou. — Mesmo se conseguissem, nunca o entenderiam. Precisam da minha ajuda. Eu já vivera muitas experiências estranhas desde que começara a praticar magia, então não fiquei particularmente assustada. Mesmo assim, eu sabia que não devia confiar em qualquer aparição pintada de branco que falasse comigo, especialmente uma que me chamasse de boneca. Ele me lembrava um personagem de um daqueles filmes bobos de mafiosos que os garotos da Casa do Brooklyn gostavam de ver quando tinham tempo livre — o tio Vinnie de alguém, talvez. — Quem é você? — perguntei. O homem bufou. — Como se você não soubesse. Como se alguém não soubesse. Vocês têm dois dias até eles me derrubarem. Se quiserem derrotar Apófis, é melhor mexer uns pauzinhos para me tirar daqui. — Não faço ideia do que você está falando — respondi. O homem não soava como Set, o deus do mal, nem como a serpente Apófis, nem como qualquer um dos vilões com quem eu havia lidado antes, mas nunca se sabe. Afinal, existia aquela tal de magia. O homem levantou o queixo. — Tudo bem, entendi. Você quer uma garantia de boa-fé. Vocês não vão conseguir salvar o papiro, mas procurem pela caixa dourada. Ela vai indicar o que vocês precisam se forem espertos o bastante para entendê-la. Depois de amanhã, ao pôr do sol, boneca.

É quando vence minha oferta, porque então eu serei permanentemente… Ele engasgou. Os olhos se arregalaram. Ele se contorcia como se uma corda apertasse seu pescoço. Aos poucos, voltou a se dissolver na parede. — Sadie? — Walt chamou do fim do corredor. — Tudo bem? Olhei para ele. — Você viu isso? — O quê? É claro que não, pensei. Que graça teria se outra pessoa também tivesse visto Tio Vinnie? Aí eu não poderia me questionar se estava ficando completamente doida. — Nada — respondi e corri para alcançá-los. * * * A entrada da sala seguinte era margeada por duas esfinges de obsidiana gigantescas com corpo de leão e cabeça de ovelha. Carter diz que esse tipo específico de esfinge é chamado de criosfinge. [Obrigada, Carter. Estávamos todos curiosíssimos por saber essa informação inútil.] — Agh! — Khufu avisou, levantando cinco dedos. — Faltam cinco minutos — Carter traduziu. — Preciso de um momento — JD disse. — Esta sala tem os encantamentos de proteção mais fortes. Preciso modificá-los para vocês entrarem. — Hum — respondi nervosa —, mas os encantamentos ainda vão afastar inimigos, como cobras gigantes do Caos, certo? JD me lançou um olhar irritado, algo que as pessoas costumam fazer muito comigo. — Eu sei uma ou duas coisinhas sobre magia de proteção — ele garantiu. — Confie em mim. Ele levantou a varinha e começou a entoar um cântico. Carter me puxou para o lado. — Tudo bem? Acho que eu devia parecer abalada depois do encontro com Tio Vinnie. — Sim — respondi.

— Vi algo lá atrás. Provavelmente é só mais um dos truques de Apófis, mas… Meu olhar foi atraído para o outro extremo do corredor. Walt encarava um trono dourado atrás de uma vitrine. Ele se inclinou para a frente e apoiou uma das mãos no vidro, como se estivesse passando mal. — Continuamos depois — falei para Carter. Fui até Walt. As luzes da exposição banhavam o rosto dele, deixando seus traços com um tom marrom-avermelhado que lembrava as colinas do Egito. — Qual é o problema? — perguntei. — Tutancâmon morreu naquela cadeira — ele disse. Li a placa que identificava a peça. Não falava nada sobre Tut ter morrido ali, mas Walt parecia ter muita certeza disso. Talvez ele pudesse sentir a maldição da família. O Rei Tut era tatata-bilhõesde-vezes-ravô de Walt, e o mesmo veneno genético que matara Tut aos dezenove anos agora corria pelas veias de Walt, e ficava mais forte cada vez que ele praticava magia. Mas Walt se recusava a reduzir o ritmo. Olhar para o trono de seu ancestral deve ter sido como ler o próprio obituário. — Vamos encontrar uma cura — prometi. — Assim que cuidarmos de Apófis… Ele olhou para mim e minha voz falhou. Nós dois sabíamos que nossas chances de derrotar Apófis eram mínimas. Mesmo que conseguíssemos, não havia garantia de que Walt fosse sobreviver por tempo suficiente para comemorar a vitória. Hoje era um dos dias bons de Walt, e mesmo assim eu podia ver a dor nos olhos dele. — Pessoal — Carter chamou. — Estamos prontos. A sala depois das criosfinges continha uma coleção dos “maiores sucessos” da pós-vida egípcia. Um Anúbis em tamanho natural feito de madeira olhava para baixo sobre um pedestal. Em cima de uma réplica da balança da justiça havia um babuíno dourado, com o qual Khufu começou a flertar imediatamente.

Havia máscaras de faraós, mapas do mundo inferior e um monte de vasos canópicos que um dia tinham guardado órgãos de múmias. Carter passou direto por tudo isso. Ele nos reuniu em torno de um papiro longo atrás de uma vitrine na parede do fundo. — É isso que vocês estão procurando? — JD franziu a testa. — O livro para derrotar Apófis? Vocês devem saber que nem os melhores feitiços contra Apófis são muito eficazes. Carter tirou do bolso um pedaço de papiro queimado. — Isto foi tudo o que conseguimos recuperar em Toronto. Era outro exemplar do mesmo rolo. JD pegou o fragmento de papiro. Não era maior que um cartão-postal e estava chamuscado demais para deixar ver mais que uns poucos hieróglifos. — Derrotar Apófis… — ele leu. — Mas esse é um dos papiros mágicos mais comuns. Centenas de exemplares sobreviveram desde a Antiguidade. — Não. — Resisti ao impulso de olhar por cima do ombro a fim de me certificar de que nenhuma serpente gigante ouvia nossa conversa. — Apófis está atrás de uma versão específica, escrita por este cara. — Bati na placa informativa ao lado da vitrine. — Atribuído ao Príncipe Khaemwaset — eu li —, mais conhecido como Setne. JD fez uma careta. — Esse é um nome maligno… um dos magos mais vis que já existiram. — Foi o que ouvimos falar — respondi —, e Apófis só está destruindo os rolos feitos por Setne. Pelo que sabemos, existiam apenas seis cópias. Apófis já queimou cinco. Esta é a última. JD observou com ceticismo o fragmento de papiro queimado.

— Se Apófis realmente se ergueu do Duat com todo o seu poder, por que se incomodaria com alguns papiros? Nenhum feitiço poderia detê-lo. Por que ele ainda não destruiu o mundo? Era o que nos perguntávamos havia meses. — Apófis tem medo desse papiro — falei, torcendo para estar certa. — Algo nele deve conter o segredo para derrotá-lo. Ele quer ter certeza de que todos os exemplares sejam destruídos antes de invadir nosso mundo. — Sadie, temos que andar logo — Carter disse. — O ataque pode acontecer a qualquer momento. Cheguei mais perto do rolo de papiro. Devia ter uns dois metros de comprimento e meio metro de largura, com linhas cheias de hieróglifos e ilustrações coloridas. Eu havia visto muitos papiros como este descrevendo maneiras de derrotar o Caos, com cânticos criados para impedir que a serpente Apófis devorasse o deus sol Rá em sua jornada noturna pelo Duat. Os antigos egípcios eram bastante obcecados pelo assunto. Pessoal bem otimista, aqueles egípcios. Eu conseguia ler os hieróglifos — um de meus diversos e incríveis talentos —, mas o papiro era muito complicado. À primeira vista, nada me pareceu especialmente útil. Havia as descrições costumeiras do rio da Noite, por onde viajava o barco solar de Rá. Já estive lá, obrigada. Também havia dicas de como lidar com os vários demônios do Duat. Já os conheci. E os matei. Nenhuma novidade até aí. — Sadie? — Carter perguntou. — Nada? — Ainda não sei — resmunguei. — Espere um pouco. Eu achava irritante que meu irmão estudioso fosse o mago de combate enquanto eu precisava ser a grande leitora de magia. Eu mal tinha paciência para revistas, menos ainda para papiros mofados.

“Nunca o entenderiam”, o rosto na parede tinha avisado. “Precisam da minha ajuda.” — Temos que levar isso — decidi. — Tenho certeza de que consigo decifrá-lo com um pouco mais de… O prédio tremeu. Khufu gritou enquanto saltava para os braços do babuíno dourado. Os pinguins de Felix correram desesperados de um lado para o outro. — Isso pareceu… — JD Grissom empalideceu. — Uma explosão lá fora. A festa! — É uma distração — Carter avisou. — Apófis está tentando afastar nossas defesas do papiro. — Estão atacando meus amigos — JD disse com dificuldade. — Minha esposa. — Vá! — falei e olhei séria para meu irmão. — Podemos cuidar do papiro. A esposa de JD está em perigo! JD segurou minhas mãos. — Levem o rolo de papiro. Boa sorte. Ele saiu correndo da sala. Virei-me de novo para a vitrine. — Walt, você consegue abrir o vidro? Precisamos tirar isso daqui o mais rápido… Uma gargalhada maléfica ecoou pela sala. Uma voz árida, pesada e grave como uma explosão nuclear retumbou à nossa volta. — Acho que não, Sadie Kane. Minha pele pareceu ter se transformado em papiro seco. Eu me lembrava daquela voz. Lembrava a sensação de estar perto do Caos, como se meu sangue estivesse pegando fogo e os filamentos de meu DNA se desenrolando.

— Acho que vou destruir vocês usando os guardiões do Maat — Apófis disse. — Sim, isso vai ser divertido. Na entrada da sala, as duas criosfinges de obsidiana se viraram. Elas bloquearam a saída, mantendo-se lado a lado. Chamas brotavam de suas narinas. Elas falaram em uníssono com a voz de Apófis: — Ninguém sairá vivo daqui. Adeus, Sadie Kane. 2. Tenho uma conversa com o Caos S A D I E VOCÊ AINDA FICARIA SURPRESO se soubesse que depois disso tudo a situação só piorou? Achei que não. Nossas primeiras baixas foram os pinguins de Felix. As criosfinges cuspiram fogo nas pobres aves, que derreteram e viraram poças d’água. — Não! — Felix gritou. A sala tremeu, dessa vez com muito mais força. Khufu gritou e pulou na cabeça de Carter, jogando-o no chão. Em outras circunstâncias isso teria sido engraçado, mas percebei que Khufu acabara de salvar a vida de meu irmão. O piso se dissolveu no lugar onde Carter estivera, as placas de mármore esfarelando como se tivessem sido quebradas por uma marreta invisível. As rachaduras rastejavam pela sala, destruindo tudo que estava no caminho, sugando artefatos para dentro do chão e os mastigando, triturando. Sim… rastejavam era a palavra certa. A destruição se arrastava exatamente como uma serpente, seguindo direto para a parede do fundo e para O livro para derrotar Apófis. — Papiro! — gritei. Ninguém pareceu me ouvir. Carter permanecia no chão, tentando tirar Khufu de cima de sua cabeça. Felix estava em estado de choque, ajoelhado diante das poças de seus pinguins, enquanto Walt e Alyssa tentavam puxá-lo para longe das criosfinges flamejantes. Tirei minha varinha do cinto e gritei a primeira Palavra de Poder que me veio à cabeça: — Drowah! Hieróglifos dourados — o comando para fronteira — brilharam no ar. Uma parede de luz surgiu entre a vitrine e a linha de destruição que avançava pela sala: Eu já havia usado esse feitiço algumas vezes para separar brigas entre iniciados ou proteger a despensa de assaltos noturnos, mas nunca tinha tentado usá-lo para algo tão importante.

Assim que a marreta invisível tocou meu escudo, o feitiço começou a se desfazer. A perturbação se espalhou pela parede de luz, fazendo-a desmoronar. Tentei me concentrar, mas uma força muito mais poderosa — o próprio Caos — trabalhava contra mim, invadindo minha mente e dispersando minha magia. Em pânico, percebi que eu não conseguia parar. Estava presa em uma batalha que não poderia vencer. Apófis destroçava meus pensamentos com a mesma facilidade que destruía o piso. Walt tirou a varinha de minhas mãos. A escuridão me cercou. Caí nos braços de Walt. Quando minha visão clareou, percebi que minhas mãos estavam queimadas e fumegantes. Eu estava chocada demais para sentir dor. O livro para derrotar Apófis havia desaparecido. Não restava nada além de um monte de escombros e umburaco enorme na parede, como se um tanque a tivesse atravessado. Senti o desespero ameaçar bloquear minha garganta, mas meus amigos se reuniram à minha volta. Walt me segurava firme. Carter sacou sua espada. Khufu mostrou as presas e gritou para as criosfinges. Alyssa abraçou Felix, que chorava na manga da blusa dela. Ele havia perdido a coragem rapidamente depois da destruição de seus pinguins. — Então é isso? — gritei para as criosfinges. — Queimar o papiro e fugir, como sempre? Você tem tanto medo assim de se mostrar pessoalmente? Mais uma gargalhada retumbou na sala. As criosfinges permaneceram imóveis na entrada, mas estatuetas e joias vibraram nas vitrines. Com um estalo doloroso, o babuíno dourado com quemKhufu estivera batendo papo virou a cabeça de repente. — Mas eu estou em todos os lugares — a Serpente falou pela boca da estátua. — Posso destruir qualquer objeto que seja importante para você… e qualquer pessoa que lhe importe.

Khufu ganiu num tom de ultraje. Ele se atirou contra o babuíno e o derrubou. A estátua derreteu, transformando-se em uma poça fumegante de ouro. Outra estátua ganhou vida: um faraó dourado de madeira com uma lança de caça. Seus olhos se tingiram da cor do sangue. A boca entalhada se curvou em um sorriso. — Sua magia é fraca, Sadie Kane. A civilização humana envelheceu e apodreceu. Vou engolir o deus sol e mergulhar seu mundo na escuridão. O mar de Caos vai consumir todos vocês. Como se a energia fosse muito grande para ser contida, a estátua do faraó explodiu. O pedestal desintegrou-se, e outra linha de mágica marretada maligna rastejou pela sala, levantando as placas do piso. Ela se dirigiu a uma vitrine junto à parede leste — um pequeno armário dourado. Salve-o, disse uma voz dentro de mim — talvez meu inconsciente, ou talvez a voz de Ísis, minha deusa patrona. Nós havíamos compartilhado pensamentos tantas vezes que era difícil ter certeza. Lembrei-me do que o rosto na parede me dissera… “Procurem pela caixa dourada. Ela vai indicar o que vocês precisam.” — A caixa! — gritei. — Parem ele! Meus amigos me encararam. Vinda de algum lugar lá fora, outra explosão sacudiu o prédio. Gesso em pedaços despencou do teto. — Essas crianças são o melhor que você podia mandar contra mim? — Apófis falou por meio de um shabti de marfim na vitrine mais próxima, um marinheiro em miniatura em um barco de brinquedo. — Walt Stone… você é o mais sortudo. Mesmo que sobreviva hoje, sua doença o matará antes de minha grande vitória. Não terá que ver seu mundo ser destruído.

Walt cambaleou. De repente eu o amparava. Minhas mãos queimadas doíam tanto que precisei reprimir a ânsia de vômito.

.

Baixar PDF

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Baixar Livros Grátis em PDF | Free Books PDF | PDF Kitap İndir | Telecharger Livre Gratuit PDF | PDF Kostenlose eBooks | Descargar Libros Gratis |