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A Tabua de Flandres – Arturo Perez-Reverte

“Deus move o jogador e este move a peça. Que Deus por trás de Deus o jogo começa?” J. L. Borges Um envelope fechado é um enigma que contém outros enigmas no seu interior. Aquele era grande, grosso, de papel manila, com o timbre do laboratório impresso no ângulo inferior esquerdo. E antes de o abrir, enquanto o segurava na mão procurando ao mesmo tempo uma espátula entre os pincéis e frascos de tinta e de verniz, Júlia estava muito longe de imaginar até que ponto esse gesto ia transformar a sua vida. Na realidade, já conhecia o conteúdo do envelope. Ou, como mais tarde veio a descobrir, julgava que conhecia. Talvez por isso não sentiu nada de especial até retirar as cópias fotográficas e estendê—las em cima da mesa, fitando—as vagamente aturdida e retendo a respiração. Só nesse momento compreendeu que “A partida de xadrez” ia ser algo mais do que simples rotina profissional. Na sua profissão, eram frequentes as descobertas insuspeitadas em quadros, móveis ou encadernações de livros antigos. Seis anos restaurando obras de arte proporcionavam uma vasta experiência de traços e correcções originais, retoques e pinturas sobrepostas, até falsificações. Mas nunca, até àquele dia, uma inscrição oculta sob a pintura de um quadro: três palavras reveladas pela fotografia com raios X. Agarrou no amachucado maço de cigarros sem filtro e acendeu um, incapaz de afastar os olhos das cópias fotográficas. Não havia qualquer dúvida, estava tudo ali, nos positivos das chapas radiológicas de 30 x 40. O desenho original da pintura, uma tábua flamenga do século XV, revelava —se nitidamente no seu pormenorizado desenho com verdaccio, tal como os veios da madeira e as junções coladas das três pranchas de carvalho que formavam a tábua que servia de suporte aos sucessivos riscos, pinceladas e esbatidos que o artista fora aplicando até criar a sua obra. E, na parte inferior, aquela frase oculta que a radiografia trazia para a luz cinco séculos mais tarde, com os caracteres góticos destacando—se nitidamente no branco e negro do fundo: QUIS NEGAVIT EQUITEM Júlia sabia latim suficiente para poder traduzir sem dicionário: Quis, pronome interrogativo, quem. Necavit, derivava de neco, matar. E equitem era o acusativo singular de eques, cavaleiro. Quem matou o cavaleiro. Com interrogação, tornada evidente pelo uso do quis, que dava um certo ar de mistério à frase: QUEM MATOU O CAVALEIRO Era, no mínimo, desconcertante. Aspirou longamente o cigarro, segurando—o entre os dedos da mão direita, enquanto com a esquerda reordenava as radiografias em cima da mesa. Alguém, talvez mesmo o próprio pintor, inscrevera no quadro uma espécie de enigma, cobrindo—o depois com uma camada de pintura. Ou talvez tivesse sido feito por outra pessoa, mais tarde. Havia aproximadamente uma margem de quinhentos anos para estabelecer a data e esta ideia fez com que Júlia sorrisse interiormente.


Podia resolver a incógnita sem grande dificuldade. Aliás, era esse o seu trabalho. Pegou nas cópias fotográficas e levantou—se. A luz acinzentada que entrava pela grande clarabóia do tecto amansardado iluminava directamente o quadro colocado no cavalete. A Partida de Xadrez, óleo sobre madeira pintado em 1471 por Pieter Van Huys… Estacou à sua frente, observando —o durante longo tempo. Era uma cena doméstica pintada com minucioso realismo quatrocentista: um interior daqueles com que os grandes mestres flamengos, aplicando a inovação do óleo, tinham criado as bases da pintura moderna. O motivo principal era constituído por dois cavaleiros de meia idade e nobre aspecto, um de cada lado de um tabuleiro de xadrez sobre o qual se desenrolava umjogo. Em segundo plano, à direita e junto a uma janela ogival que emoldurava uma paisagem, uma dama vestida de negro lia um livro poisado sobre o regaço. A cena era completada pelos cuidados pormenores próprios da escola flamenga, representados com uma perfeição que raiava o obsessivo: os móveis e enfeites, o lajeado branco e negro do chão, o desenho do tapete e até uma pequena fenda na parede ou a sombra de um minúsculo prego numa das vigas do tecto. O tabuleiro e as peças de xadrez tinham sido executados com idêntica precisão, tal como as feições, mãos e roupagens dos personagens, cujo realismo contribuía para a extraordinária qualidade do acabamento, juntamente com a vivacidade das cores, ainda notável apesar do escurecimento provocado pela oxidação do verniz original com o passar do tempo. Quem matou o cavaleiro. Júlia olhou a radiografia que tinha na mão e depois o quadro, semconseguir detectar neste, à vista desarmada, o menor vestígio da inscrição oculta. Um exame mais pormenorizado, com lupa binocular com o poder de ampliar 7 vezes, também não revelou nada de novo. Correu então a grande persiana da clarabóia, escurecendo o quarto para aproximar do cavalete um tripé com uma lâmpada Wood de luz negra. Quando incidiam sobre um quadro, os raios ultravioletas tornavam fluorescentes os materiais mais antigos, tintas e vernizes, deixando a escuro ou a negro os modernos, revelando assim as pinturas e retoques aplicados depois da criação. Mas a luz negra revelou apenas uma superfície fluorescente homogénea que incluía a parte da inscrição oculta. Isto significava que fora tapada pelo próprio artista ou numa data imediatamente posterior à realização da pintura. Girou o interruptor da lâmpada, descobriu a clarabóia e a luz fria da manhã outonal veio espalhar—se de novo sobre o cavalete e o quadro, iluminando o estúdio cheio de livros, prateleiras com tintas e pincéis, vernizes e diluentes, instrumentos de marcenaria, craveiras e instrumentos de precisão, talhas antigas e bronzes, bastidores, quadros poisados no chão e voltados para a parede sobre uma valiosa carpete persa manchada de tinta e, num canto, por cima de uma cómoda Luís XV, uma aparelhagem de alta fidelidade rodeada por pilhas de discos: Dom Cherry, Mozart, Miles Davis, Satie, Lester Bowie, Michael Edges, Vival—di… Na parede, um espelho veneziano de moldura dourada devolveu a Júlia, ligeiramente embaciada, a sua própria imagem: cabelo cortado pelos ombros, leves olheiras de sono sob uns olhos grandes e escuros, ainda sem maquilhagem. Atraente como um modelo de Leonardo, costumava dizer César quando, como agora, o espelho emoldurava o seu rosto em ouro, ma piu bella. E embora César pudesse ser considerado mais entendido em efebos do que em madonnas, Júlia sabia que essa afirmação era rigorosamente correcta. Ela própria gostava de se olhar naquele espelho de moldura dourada porque lhe dava a sensação de estar do outro lado de uma porta mágica que, anulando o tempo e o espaço, lhe devolvia a sua imagem encarnada numa beleza renascentista italiana. Sorriu ao pensar em César. Desde pequena que sorria sempre ao pensar nele. Um sorriso terno, muitas vezes cúmplice. Depois poisou as radiografias sobre a mesa, apagou o cigarro num pesado cinzeiro de bronze assinado por Benlliure e foi sentar—se em frente da máquina de escrever: “A Partida de Xadrez”: Óleo sobre madeira.

Escola flamenga. Datado de 1471. Autor: Pieter Van Huys (1415— 1481). Suporte: três painéis finos de carvalho, unidos por linguetas falsas. Dimensões: 60×87 cm. (Três painéis idênticos, de 20×87). Espessura da tábua: 4 cm. Estado de conservação do suporte: Não é necessário endireitar. Não se observam estragos causados pela acção de insectos xilófagos. Estado de conservação da película pictórica: Boa adesão e coesão do conjunto estratigráfico. Não há alterações de cor. Notam—se craquelures de idade, sem se observarem fendas nem escamas. Estado de conservação da película superficial: Não se verificam marcas de exsudação de sais nem de humidade. Excessivo escurecimento do verniz, devido a oxidação. A capa deve ser substituída. A cafeteira assobiava na cozinha. Júlia levantou—se e foi servir—se de uma chávena grande, sem leite nem açúcar. Regressou segurando—a numa mão e enxugando a outra, molhada, ao largo camisolão masculino que enfiara por cima do pijama. Bastou uma leve pressão do indicador para que as notas do Concerto para Alaúde e Viola de Amor, de Vivaldi, enchessem o estúdio, deslizando por entre a luz cinzenta da manhã. Bebeu um gole de café negro e amargo que lhe queimou a ponta da língua. Foi depois sentar—se, com os pés nus no tapete, para continuar a escrever à máquina o relatório: Inspecção U. V. e radiológica: Não se detectam mudanças importantes, transformações ou pinturas posteriores. Os raios X revelam uma inscrição coberta na época, em caracteres góticos, que figura em cópias fotográficas anexas. Não é visível em observação convencional.

Pode ser posta a descoberto sem prejuízo para o conjunto mediante a eliminação da camada de tinta no local que a cobre. Retirou a folha de papel do rolo da máquina e meteu—a num envelope, juntando duas cópias fotográficas. Bebeu o resto do café, que ainda estava quente, e preparou—se para fumar outro cigarro. Na sua frente, sobre o cavalete, face à dama que lia, absorta, junto da janela, os dois jogadores, continuavam uma partida de xadrez que durava há cinco séculos, representada na tábua por Pieter Van Huys de forma tão rigorosa e magistral que as peças pareciam estar fora do quadro, com relevo próprio, tal como os restantes objectos ali reproduzidos. A sensação de realismo era tão intensa que atingia plenamente o efeito procurado pelos velhos mestres flamengos: a integração do espectador no conjunto pictórico, persuadindo—o de que o espaço de onde o contemplava era o mesmo contido no seu interior, como se o quadro fosse um fragmento da realidade ou a realidade um fragmento do quadro. Para tal, contribuíam a janela pintada no lado direito da composição, com uma paisagem exterior para além da cena, e um espelho redondo e convexo pintado no lado esquerdo, na parede, que reflectia os vultos dos jogadores e o tabuleiro de xadrez, deformados pela perspectiva do ponto de vista do espectador, situado para aquém da cena, conseguindo assim o assombroso efeito de integrar os três planos: janela, compartimento e espelho num único ambiente. Como se o espectador — pensou Júlia — estivesse reflectido entre os dois jogadores, dentro do quadro. Levantou—se, aproximando—se do cavalete, e cruzando os braços observou o quadro durante muito tempo, imóvel, sem fazer outro gesto além de chupar o cigarro semicerrando as pálpebras por causa do fumo. Um dos jogadores, o da esquerda, aparentava uns trinta e cinco anos. Tinha o cabelo castanho cortado pela altura das orelhas, à maneira medieval, o nariz forte e aquilino e grave concentração no semblante. Vestia uma túnica tipo gibão, cujo tom de vermelhão resistira admiravelmente ao passar do tempo e à oxidação do verniz. Trazia ao pescoço o Tosão de Ouro e no ombro direito rebrilhava um artístico broche cuja filigrama se encontrava definida até ao mais ínfimo pormenor, incluindo um minúsculo reflexo de luz nas suas pedras preciosas. A personagem apoiava um cotovelo, o esquerdo, e uma mão, a direita, na mesa, junto do tabuleiro. Segurava entre os dedos uma das peças que estavam fora do jogo: um cavalo branco. Junto da sua cabeça, em caracteres góticos, uma inscrição identificativa: FERDINAN—DUS OST. D. O outro jogador era mais magro e rondava os quarenta anos. Tinha a fronte ampla e o cabelo quase negro, no qual se notavam as finíssimas pinceladas de branco—chumbo que lhe encaneciam as fontes. Isso, aliado à sua expressão e compostura, davam—lhe um ar de maturidade prematura. O perfil era sereno e digno e, em vez de usar luxuosas roupas de corte, vestia um simples corselete de cabedal e, sobre os ombros, à volta do pescoço, um gorjal de aço polido que lhe conferia uminequívoco ar militar. Inclinava—se mais sobre o tabuleiro do que o seu adversário, como se estudasse atentamente o jogo, alheio aparentemente e quando o rodeava, com os braços cruzados na borda da mesa. A concentração era visível nas ligeiras rugas verticais da testa franzida. Fitava as peças como se lhe colocassem um difícil problema cuja resolução exigisse toda a sua atenção. A inscrição era RUTGIER AR. PREUX.

A dama estava junto da janela, afastada dos jogadores no espaço interior do quadro, em acentuada perspectiva linear que a situava numa posição mais elevada. O veludo negro do seu vestido, ao qual um sábio doseamento de esbatidos brancos e cinzentos dava volume nas pregas, parecia avançar para o primeiro plano. O seu realismo rivalizava com o minucioso desenho dos fios do tapete, a precisão com que fora pintado até ao último dos nós, juntas e veios das vigas do tecto, ou o lajeado da sala. Inclinando—se sobre o quadro para apreciar melhor a execução, Júlia sentiu umestremecimento de admiração profissional. Só um mestre como Van Huys podia ter tirado assim partido do negro de um traje, cor à base da ausência de cor com a qual muito poucos se teriamatrevido tão a fundo e, no entanto, tão real que quase parecia que podia ouvir—se o suave roçar do veludo sobre o escabelo com almofadas de couro lavrado. Observou o rosto da mulher. Era bela e muito pálida, ao gosto da época, com uma touca de gaze branca com a qual segurava, preso nas têmporas, o abundante cabelo louro. Das mangas largas do vestido saíam os braços cobertos por damasco cinzento claro, com mãos longas e esguias que seguravam um livro de horas. A luz da janela provocava, com o mesmo raio, idêntica cintilação metálica no fecho aberto do livro e no anel de ouro que era o único adorno das mãos. Mantinha baixos os olhos que se adivinhavam azuis, com um ar de modesta e serena virtude, expressão característica dos retratos femininos do seu tempo. A luz vinha de dois pontos, a janela e o espelho, e envolvia a mulher no mesmo ambiente que os dois jogadores de xadrez, embora mantendo—a numdiscreto afastamento, sendo nela mais acentuados os contornos e as sombras. A inscrição que lhe correspondia era BEATRIX BURG. OST. D. Júlia retrocedeu dois passos e contemplou o conjunto. Tratava—se indubitavelmente de uma obra prima, com documentação confirmada por peritos, o que significava elevada cotação no leilão do Claymore, em Janeiro próximo. Talvez a inscrição oculta, com adequada documentação histórica, fizesse subir o valor do quadro. Dez por cento para Claymore, cinco para Menchu Roch, e o resto para o proprietário, deduzindo—lhe um por cento do seguro e os honorários de restauro e limpeza. Despiu—se e meteu—se debaixo do duche com a porta aberta e a música de Vivaldi acompanhando—a por entre o vapor da água. O restauro de A Partida de Xadrez para ser posta no mercado podia proporcionar—lhe uma quantia razoável. Poucos anos depois de terminada a licenciatura, Júlia granjeara já uma sólida reputação no meio dos restauradores de arte mais solicitados por museus e antiquários. Metódica e disciplinada, pintora de certo talento nas horas vagas, tinha fama de abordar todas as obras com absoluto respeito pelo original, posição ética que nem sempre era partilhada pelos seus colegas. Na difícil e muitas vezes incómoda relação espiritual que se estabelecia entre qualquer restaurador e a sua obra, na rude batalha travada entre conservação e renovação, a jovem tinha a virtude de não perder de vista um princípio fundamental: uma obra de arte nunca era devolvida ao seu estado primitivo sem grave prejuízo. Júlia defendia que o envelhecimento, a patina, inclusivamente certas alterações de cores e vernizes, leves deteriorações, novas pinturas e retoques, transformavam—se, com o passar do tempo, em parte tão substancial de uma obra de arte como a obra em si mesma. Talvez fosse por isso que os quadros que passavam pelas suas mãos não saíam delas revestidos com novas e insólitas cores e luzes pretensamente originais — cortesãs repintadas, como lhes chamava César — mas sim matizados com uma delicadeza que integrava as marcas do tempo no conjunto da obra.

Saiu do quarto de banho envolta num albornoz, com o cabelo molhado pingando sobre os ombros, e acendeu o quinto cigarro do dia enquanto se vestia em frente do quadro: sapatos de salto raso e blusão de cabedal sobre a saia de pregas castanha. Lançou uma mirada satisfeita à sua imagemno espelho veneziano e, voltando—se de novo para os severos jogadores de xadrez, piscou—lhes o olho, provocadoramente, sem que qualquer deles parecesse notá—lo ou alterasse o seu grave semblante. Quem matou o cavaleiro? A frase, como se fosse um enigma, andava—lhe às voltas na cabeça quando meteu no bolso o relatório sobre o quadro e as cópias fotográficas. Depois ligou o alarme electrónico e deu duas voltas à chave na fechadura de segurança. Quis necavit equitem. Fosse o que fosse, aquilo deveria ter qualquer sentido. Repetiu em voz baixa as três palavras ao descer a escada, fazendo deslizar os dedos pelo corrimão coberto de latão. Estava realmente intrigada com o quadro e a inscrição oculta, mas não se tratava disso apenas. O que a desconcertava é que sentia também uma singular apreensão. Como quando, em pequena, no fundo da escada de uma casa, reunia a coragem necessária para espreitar para o desvão escuro. — Tens de reconhecer que é uma beleza. Quattrocento puro. Menchu Roch não se referia a um dos quadros expostos na galeria com o seu apelido. Os olhos claros, excessivamente maquilhados, fitavam os largos ombros, de Max que conversava com umconhecido ao balcão da cafetaria. Max, um metro e oitenta e cinco, ombros de nadador sob o bemcortado tecido do casaco, tinha o cabelo comprido apanhado na nuca num pequeno rabo de cavalo preso por uma fita de seda escura e movia—se com gestos lentos e flexíveis. Menchu fez deslizar por ele um olhar avaliador antes de molhar os lábios na borda embaciada do copo de martini, comsatisfação de proprietária. Era o seu último amante. — Quattrocento puro — repetiu, saboreando as palavras ao mesmo tempo que a bebida. — Não te faz lembrar aqueles maravilhosos bronzes italianos? Júlia concordou sem entusiasmo. Eram velhas amigas, mas continuava a surpreender—se com a facilidade que Menchu tinha para dar um ar equívoco a qualquer referência vagamente artística. — Qualquer desses bronzes, e refiro—me aos originais, te sairia mais barato. Menchu deu uma gargalhada cínica. — Mais barato do que Max?… Isso não tenhas dúvida — suspirou exagerada—mente, enquanto trincava a azeitona do martini. — Pelo menos Miguel Angelo esculpia—os nuzinhos. Não tinha que os vestir com o American Express.

— Ninguém te obriga a assinar as facturas dele. — Aí é que está a questão, minha querida — pestanejou a galerista, lânguida e teatral. — Ninguém me obriga. Pois é. E terminou o martini, procurando — de propósito, por pura provocação — levantar ostensivamente o dedo mendinho. Mais próxima dos cinquenta anos do que dos quarenta, Menchu era de opinião que o sexo pulsava em qualquer coisa, mesmo nos mais subtis matizes de uma obra de arte. Talvez por isso fosse capaz de enfrentar os homens com a mesma atitude calculista e rapace que utilizava para avaliar as possibilidades de um quadro. Entre os seus conhecidos, a proprietária da galeria Roch tinha fama de nunca ter deixado escapar a oportunidade de se apoderar de um quadro, um homem ou uma dose de cocaína que despertassem o seu interesse. Podia ainda considerar—se atraente, embora fosse difícil não notar aquilo que, considerando a sua idade, César definia mordazmente como anacronismos estéticos. Menchu não se resignava a envelhecer porque não lhe apetecia. E talvez como uma forma de desafio perante si mesma, contra—atacava com uma vulgaridade calculada que se estendia à escolha da maquilhagem, vestidos e amantes. Além disso, para confirmar a sua ideia de que um marchand de arte ou um antiquário não eram mais do que ferros —velhos qualificados, fazia gala de uma falta de cultura que estava longe de ser verdadeira, baralhava de propósito as citações e troçava abertamente do ambiente mais ou menos selecto em que se desenrolava a sua vida profissional. Fazia alarde de tudo isso com a mesma naturalidade com que garantia ter tido o mais intenso orgasmo da sua vida masturbando—se em frente de uma reprodução catalogada e numerada do David de Donatello, episódio que César, com a sua requintada crueldade quase feminina, citava como sendo o único pormenor de autêntico bom gosto que Menchu Roch tivera em toda a sua vida. — O que vamos fazer com o Van Huys? — perguntou Júlia. Menchu observou de novo as radiografias que estavam em cima da mesa, entre o seu copo e o café da amiga. Tinha os olhos maquilhados de azul e vestia um vestido azul excessivamente curto. Sem qualquer má intenção, Júlia pensou que ela teria ficado francamente bonita vinte anos antes. De azul. — Ainda não sei — disse a galerista. — No Claymore comprometem—se a leiloar o quadro tal como está… É preciso ver se essa inscrição o revaloriza. — O que achas? — Acho uma maravilha. É como se tivesses acertado no boneco da feira sem saber. — Fala com o proprietário. Menchu meteu as radiografias no envelope e cruzou as pernas. Dois jovens que tomavam umaperitivo na mesa contígua lançaram furtivas olhadelas interessadas às suas pernas bronzeadas.

Júlia remexeu—se no assento com uma ponta de irritação. Costumava divertir—se com a espectacularidade com que Menchu planificava os seus efeitos especiais face ao público masculino, mas por vezes o desenvolvimento parecia—lhe excessivo. Não eram horas — deu uma olhadela ao Omega quadrado que usava na parte interna do pulso esquerdo — para exibir roupa interior especial. — O proprietário não é problema — explicou Menchu — É um velhote encantador que anda numa cadeira de rodas. Se descobrindo a inscrição aumentarmos o seu lucro, achará óptimo… Tem dois sobrinhos que são duas sanguessugas. Ao balcão, Max continuava a conversa, mas, consciente dos seus deveres, voltava—se de vez em quando para lhes dedicar um deslumbrante sorriso. Falando de sanguessugas… pensou Júlia, embora procurasse não fazer qualquer comentário em voz alta. Não é que Menchu se tivesse importado muito, pois demonstrava um admirável cinismo ao considerar questões masculinas, mas Júlia tinha um apurado sentido das conveniências que a impedia de ir demasiado longe. — Faltam dois meses para o leilão — disse, ignorando Max. — É uma margem demasiado apertada se tiver que eliminar o verniz, descobrir a inscrição e envernizar de novo… — meditou. — Além disso, reunir documentação sobre o quadro e as personagens e redigir um relatório vai levar tempo. Era conveniente ter pronta a autorização do proprietário. Menchu concordou. A sua frivolidade não abrangia o âmbito profissional, onde se movimentava com a sagacidade de uma rata sábia. Naquela transacção actuava como intermediária, pois o dono do Van Huys nada sabia dos mecanismos do mercado. Era ela que negociava o leilão com a sucursal de Madrid da casa Claymore. — Vou telefonar—lhe ainda hoje. Chama—se D. Manuel, tem setenta anos e fica encantado por tratar de assuntos com uma rapariga bonita, como ele diz, que sabe tanto de negócios. Mas havia mais, fez notar Júlia. Se a inscrição descoberta se relacionasse com a história das personagens retratadas, Claymore ia jogar com isso, aumentando o preço de licitação. Talvez Menchu pudesse conseguir mais documentação útil. — Não há grande coisa — a galerista franzia os lábios, tentando lembrar—se. — Dei—te tudo juntamente com o quadro, portanto desenrasca—te, minha filha. É contigo.

Júlia abriu a carteira e demorou mais tempo do que o necessário para encontrar o maço de tabaco. Por fim, tirou lentamente um cigarro e fitou a amiga. — Podíamos falar com o Álvaro. Menchu arqueou as sobrancelhas. Estava petrificada, proclamou, tal como a mulher de Noé, ou de Lot, ou de quem quer que fosse aquele idiota que se aborrecia em Sodoma; ou salidificada, ou como fosse lá isso. — Como, como?… — A voz estava rouca de expectativa, farejava emoções fortes. — Sim, porque o Álvaro e tu… Deixou a frase no ar com um gesto de exagerada tristeza, como sempre que se referia a problemas das outras pessoas, que gostava de considerar indefesas em matéria sentimental. Júlia susteve—lhe o olhar, imperturbável. — É o melhor historiador de arte que conhecemos — limitou—se a dizer. — E isso não tem nada a ver comigo mas sim com o quadro. Menchu fez um ar de quem reflectia gravemente e depois abanou afirmativamente com a cabeça. Claro que era um problema de Júlia. Assunto íntimo, tipo querido diário e coisas do género. Mas, no lugar dela, evitaria. In dúbio pro reo, como afirmava o pedante do César, a velha caduca. Ou seria in pluvio? — Garanto—te que estou curada do Álvaro. — Há doenças que nunca se curam, minha linda. E um ano não é nada. Histórias! Júlia não pôde evitar uma careta trocista dirigida a si mesma. Há um ano que Álvaro e ela tinham acabado com uma longa relação e a galerista estava ao corrente disso. A própria Menchu, semquerer, ditara em certa ocasião a sentença final que explicava o nó do problema. Qualquer coisa do género de: “em última instância, minha filha, um homem casado acaba sempre por decidir—se a favor da legítima. É que os triénios acumulados a lavar fraldas e a parir acabam por decidir a batalha. Eles são assim — concluía Menchu com o nariz encostado ao carreirinho branco, entre uma aspiração e outra — Asquerosamente leais, no fundo. Snif.

Filhos da puta!” Júlia exalou uma densa baforada de fumo e entreteve—se a beber lentamente o resto do café, procurando evitar que a chávena pingasse. Tinha sido muito amargo aquele final, depois das últimas palavras e do ruído da porta a fechar—se. E continuou a ser depois, quando o recordava. Ou nas três ou quatro ocasiões em que Álvaro e ela se tornaram a encontrar casualmente em conferências ou museus, portando—se com perfeita correcção. — “Estás muito bem, tem cuidado contigo” e coisas do género — No fim de contas ambos se consideravam pessoas civilizadas que, para além de um fragmento do passado, tinham em comum, a arte como material objectivo de trabalho. Pessoas do mundo, em três palavras. Adultos.

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