O tubarão na plataforma de madeira que servia de desembarcadouro não era nenhum monstro. Pouco mais de um metro de comprimento, provavelmente um daqueles que se alimentavam da carniça na superfície dos recifes. Mas os olhos brancos e inertes se mantinham ameaçadores, e a boca cheia de presas o tornava um grande prêmio para os dois homens com as mãos ensanguentadas. Eram de origem inglesa, tinham o peito nu bronzeado e o corpo robusto, porém flácido. Um deles levantava o tubarão pelos buracos das guelras, enquanto o outro usava a faca. Um muco viscoso cobria as tábuas cinzentas. Robin olhava pela proa enquanto o Madeleine avançava pela enseada. Viu a carnificina e desviou os olhos. Mantive a mão na coleira de Spike. Trata-se de um buldogue francês de mais ou menos doze quilos, orelhas de morcego, músculos cobertos por pelo preto com manchas amareladas e o rosto achatado, o que representa um risco de afogamento. Treinado desde filhote para evitar a água, Spike agora a odeia, e Robin e eu temêramos a viagem de seis horas desde Saipan. Mas ele se adaptou ao balanço do mar antes de nós, explorando o convés de teca do velho barco e adormecendo depois sob o agradável sol do Pacífico. Seu bem-estar durante a viagem fora nossa principal preocupação. Seis horas numa caixa para transporte de cachorro no compartimento de carga, durante o voo de Los Angeles para Honolulu, o deixaram traumatizado. Uma conversa encorajadora e um bolo de carne ajudaram em sua recuperação, e ele se adaptara ao condomínio onde permanecemos por trinta horas. Depois, mais umas oito horas no avião até Guam, uma hora no tumultuado aeroporto cheio de soldados, marinheiros e autoridades menos destacadas do governo usando camisas informais, um voo rápido de quarenta minutos para Saipan. Ali, Alwyn Brady nos recebera na enseada e nos levara, junto com as provisões bimestrais, à etapa final da viagem para Aruk. Brady conduzira a embarcação de setenta pés através do canal e para além dos recifes. O casco do barco bateu de leve nas estacas do desembarcadouro. Longe da orla, a água era de um azul intenso, mas adquiriu uma tonalidade verde-prateada à medida que o barco se aproximou da praia de areia macia. O verde me lembrava uma coisa: o Cadillac tinha aquela mesma cor nos anos cinquenta. De cima, os recifes eram pretos como carvão e os pequenos peixes brilhantes nadando ao redor deles pareciam pássaros irrequietos. Havia alguns coqueiros na praia deserta. Cascas secas pontilhavam a areia como reticências. Outro solavanco e Brady desligou os motores.
Olhei para além do cais, para os picos pronunciados e negros ao longe. Afloramentos vulcânicos que contavam a história das origens da ilha. Mais perto, encostas marrom-claras se elevavam acima de pequenas casas brancas e ruas estreitas que ziguezagueavam como cordões de sapatos. Ao norte, algumas lojas revestidas com ripas e um posto de gasolina com uma única bomba constituíam todo o centro comercial da ilha. Telhados de zinco cintilavam ao sol vespertino. A única placa que consegui ler dizia Posto Comercial Tia Moe. Acima dela, havia uma antena parabólica de aparência precária. Robin encostou a cabeça em meu ombro. Um dos marujos de Brady, um garoto magro, de cabelos pretos, amarrou o barco. — Pronto — falou. Brady apareceu poucos segundos depois, empurrando o quepe para trás e gritando para a tripulação começar a descarregar. Cinquenta anos aproximadamente, pequeno, o rosto quase tão achatado quanto o de Spilce, ele se orgulhava de ser meio irlandês, meio ilhéu, e falava tanto quanto um disc-jóquei. Várias vezes, durante a viagem, ele entregara o timão a um dos tripulantes e saíra para o convés, discorrendo sobre Yeats, Joyce, vitaminas, navegação sem instrumentos, pesca, a verdadeira profundidade da fossa das Marianas, geopolítica, a história da ilha. E sobre o Dr. Moreland. — Um santo. Saneou o abastecimento de água, vacinou as crianças. Como aquele alemão, Schweitzer. Só que o Dr. Bill não toca órgão, nem se distrai com bobagens. Não tem tempo para outra coisa senão seu bom trabalho. Espreguiçou-se e sorriu para o sol, exibindo os poucos dentes amarelados que lhe restavam. — Espetacular, não é? Um pedaço do paraíso… Ei, Orson, vá devagar! É frágil. E desembarque logo as coisas do doutor e da madame! Ele olhou para Spike. — Sabe, doutor, quando vi o focinho desse cachorro pela primeira vez, pensei que fosse um diabo-marinho.
Mas ele se comportou como um marujo, hem? Está até parecendo Errol Flynn! — Deu uma risada. — Muitas horas no mar transformam uma vaca marinha numa sereia… ah, aqui estão suas coisas… leve com cuidado, Orson, finja que é sua namorada. Vocês podem desembarcar que nós descarregaremos sua bagagem. AIguém deve vir buscá-los a qualquer momento… ah, isso é que é profecia! Apontou o queixo para um jipe preto que descia pelo meio da encosta. O carro parou na rua que beirava a praia, esperou uma mulher passar, depois veio direto para nós, estacionando a poucos metros do lugar em que o tubarão era retalhado. O que restava do peixe era deplorável. O homem com a faca examinava os dentes. Quase trinta anos, tinha feições delicadas num rosto grande e liso, cabelos claros sem vida caídos sobre a testa e braços tatuados. Passando o dedo pela boca do tubarão, entregou a faca ao parceiro, mais baixo, um pouco mais velho, com a sombra de uma barba cerrada, cabelos crespos castanho avermelhados, desgrenhados, combinando com os pelos anelados do corpo. Impassível, começou a trabalhar na barbatana dorsal. Brady deixou o barco e ficou parado no desembarcadouro. A água era calma e o Madeleine quase não balançava. Ele ajudou Robin a desembarcar, enquanto eu pegava Spike. De novo em terra firme, o cachorro ergueu a cabeça, sacudiu-se todo, fungou e começou a latir para o jipe. Um homem saltou. Havia alguma coisa escura e peluda em seu ombro. Spike ficou furioso, puxando a corrente da coleira. A coisa peluda mostrou os dentes e deu patadas no ar. Um pequeno macaco. O homem pareceu imperturbável. Depois de apertar a mão de Brady, adiantou-se para apertar a de Robin, então a minha. — Ben Romero. Bem-vindos a Aruk. De trinta a trinta e cinco anos, um metro e setenta, uns sessenta e cinco quilos, tinha o rosto bronzeado e liso, cabelos pretos, curtos e lisos, repartidos do lado de forma meticulosa. Óculos de aviador sobre um nariz delicado.
Os olhos eram cor de amêndoas. Usava uma calça azul de algodão, vincada, uma camisa branca imaculada que de alguma forma escapara das marcas dos pés do macaco, o qual matraqueava e apontava. — Acalme-se, KiKo. É apenas um cachorro. — Romero sorriu. — Eu acho. — Também não temos certeza — comentou Robin. Romero tirou o macaco do ombro e segurou-o próximo ao rosto, afagando-o. — Você gosta de cachorros, não é mesmo, KiKo? Como é o nome dele? — Spike. — O nome dele é Spike, KiKo. O Dr. Moreland disse que ele é sensível ao calor, por isso providenciamos um ar-condicionado portátil para a suíte que vão ocupar. Mas duvido que precisem dele. Janeiro é um dos melhores meses aqui. Temos algumas tempestades, mas a temperatura fica em torno de vinte e sete graus. — É um lugar delicioso — disse Robin. — Sempre é. A sotavento. Onde estão suas coisas? Brady e seus homens levaram nossa bagagem para o jipe. Romero e eu a ajeitamos. Quando acabamos, o macaco estava no chão, afagando a cabeça de Spike e guinchando satisfeito. Spike aceitava a atenção com uma expressão de dignidade ferida. — Bom menino — disse Robin, ajoelhando-se a seu lado. Risadas fizeram com que todos nos virássemos. Os retalhadores do tubarão olhavam em nossa direção.
O mais baixo tinha as mãos nos quadris, a faca metida no cinto. Mãos rosadas. Limpou-as na bermuda e piscou. O mais alto riu novamente. As orelhas de morcego de Spike se enrijeceram e o macaco sibilou. Romero o colocou no ombro, franzindo as sobrancelhas. — É melhor irmos logo. Vocês devem estar exaustos. Subimos no jipe, Romero fez o retorno em direção à rua que beirava a praia. Uma placa de madeira informava: Front Street. Ao começarmos a subir a ladeira, olhei para trás. O mar rodeava tudo ali, e a ilha parecia bem pequena. Os tripulantes do Madeleine estavam parados no desembarcadouro, e os homens com as mãos ensanguentadas se encaminhavam para o centro da cidade, carregando seu prêmio num carrinho de mão enferrujado. Tudo o que restava do tubarão era uma mancha. 2 — Deixem-me dar as boas-vindas apropriadas — disse Romero. — Ahuma na ahap… são as palavras na antiga língua franca para “sintam-se em casa”. Ele começou a subir pela mesma ladeira por que descera. Sinuosa e sem sinalização, era pouco mais larga que um veículo e margeada por muros baixos de pedras empilhadas. Era mais íngreme do que parecera da enseada, e Romero manejava o câmbio do jipe para manter a tração nas quatro rodas. Cada vez que o veículo dava um solavanco, KiKo guinchava e contraía os dedos compridos, agarrando a camisa de Romero. Spike estava com a cabeça para fora da janela e voltada para o céu sem nuvens. Enquanto subíamos, olhei para trás e observei o distrito comercial. A maioria das lojas estava fechada, inclusive o posto de gasolina. Romero passava em alta velocidade pelas casas pequenas e brancas. De perto, as construções tinham um aspecto pior, o estuque rachado e descascado, os telhados de zinco esburacados, amassados e cobertos de musgo.
Roupas limpas pendiam de varais arqueados. Crianças nuas e seminuas brincavam na terra. Algumas das propriedades eram cercadas com telas de arame, mas a maioria era aberta. Algumas pareciam desocupadas. Um casal de cães esqueléticos farejava a terra, indolentes, ignorando os latidos de Spike. Esse local era território americano, mas podia estar localizado em qualquer país subdesenvolvido. Um pouco da pobreza era atenuado pela vegetação — filodendros de folhas largas, bromélias, arbustos floridos, palmeiras. Muitas das construções eram cercadas por verde — ovos caiados em ninhos esmeralda. — Como foi a viagem? — perguntou Romero. — Cansativa, mas boa — respondeu Robin. Ela tinha os dedos entrelaçados nos meus, os olhos castanhos arregalados. O ar que entrava pelas janelas abertas do jipe desmanchava seus cabelos cacheados e estufava a blusa de linho. — O Dr. Bill queria recepcioná-los pessoalmente, mas recebeu uma chamada de emergência. Alguns garotos estavam mergulhando na North Beach e foram queimados por águas-vivas. — Espero que não seja grave. — Não é, mas arde muito. — Ele é o único médico na ilha? — perguntei. — Temos uma clínica na igreja. Sou enfermeiro formado. Quando os casos eram de emergência as pessoas eram levadas de avião para Guam ou Saipan até… seja como for, a clínica resolve a maioria de nossos problemas. Estou sempre de prontidão no caso de alguém precisar de mim. — Vive aqui há muito tempo? — A vida toda, exceto no período em que servi na Guarda Costeira e cursei a escola de enfermagem no Havaí. Conheci minha esposa lá. Ela é chinesa.
Temos quatro filhos. À medida que subíamos, as casas miseráveis iam dando lugar a campos de argila vermelha vazios e a enseada ia se tornando cada vez menor. Mas os picos vulcânicos continuavam distantes, como se nos evitassem. À direita havia um pequeno bosque com árvores da cor de freixos, com troncos bastante retorcidos e galhos sinuosos e nodosos que pareciam garras estendidas para o céu. Raízes aéreas pendiam como cera derretida de vários galhos, penetrando na terra. — Bânias? — perguntei. — Isso mesmo. A árvore estranguladora. Suas hastes envolvem qualquer coisa que tenha a infelicidade de crescer por perto, espremendo até sugar-lhe toda a vida. As pequenas farpas sob as hastes… que aderem como velcro. Não as queremos, mas elas crescem na selva como praga. Essas aí têm cerca de dez anos. Algum pássaro deve ter espalhado as sementes. — Onde fica a selva? Ele riu. — Bem, não chega a ser uma selva. Afinal, não temos animais selvagens nem nada parecido… a não ser as estranguladoras. E apontou para o alto das montanhas: — Fica no leste da ilha. Exatamente onde termina a propriedade do Dr. Bill. No outro lado fica Stanton, a base da Marinha. Ele engatou a primeira e o jipe subiu por um trecho bastante íngreme, passando depois por grandes portões de madeira. A estrada no outro lado fora asfaltada fazia pouco tempo. Havia uma fileira de coqueiros da altura de um prédio de quatro andares plantados a uns três metros uns dos outros. As pedras empilhadas foram substituídas por uma cerca de pinheiros podados ao estilo japonês e fileiras de clívias alaranjadas. Gramados aveludados estendiam-se por todos os lados, e pude ver as copas das bânias, uma orla acinzentada distante.
De repente, movimento. Um pequeno rebanho de veados-hemíonos pastando à esquerda. Apontei-os para Robin, que sorriu e beijou meus dedos. Algumas aves marinhas pairavam sobre nós; fora isso, o céu estava inerte. Mais uma centena de coqueiros e entramos num enorme pátio de cascalho sombreado por um cedro-vermelho, um pinheiro de Alepo, uma mangueira e um abacateiro. No meio, um chafariz de calcário coberto de musgo esguichava em uma bacia esculpida repleta de jacintos. Atrás, havia um enorme sobrado de estuque marrom-claro com acabamento de pinho, varandas e telhado de pagode verde reluzente. Algumas telhas na beirada exibiam rostos de gárgulas. Romero desligou o motor, e KiKo saltou de seu ombro, subiu correndo largos degraus de pedra e começou a bater na porta da frente. Spike saltou do jipe e o seguiu, arranhando a porta com as patas dianteiras. Robin saiu para detê-lo. — Não se preocupe — disse Romero. — Isso é pinheiro forte, tem centenas de anos. A casa toda é sólida como rocha. Foi construída pelo exército japonês em 1919, depois que a Liga das Nações tomou os territórios da Alemanha e os entregou ao imperador. Eles instalaram aqui seu quartel-general. KiKo se balançava na maçaneta da porta, enquanto Spike latia, incitando-o. Romero comentou: — Parece que já se tornaram amigos. Não se preocupem com a bagagem. Mandarei levá-la mais tarde. Ele abriu a porta, empurrando-a, com o macaco ainda pendurado na maçaneta. Havia muito tempo que eu não deixava uma porta destrancada em Los Angeles. Um vestíbulo redondo, de pedra branca, dava para uma grande sala principal com assoalho de pinho encerado sob tapetes chineses, altas paredes rebocadas, teto em teca esculpida e vários móveis antigos de aparência confortável. Aquarelas em tons pastel nas paredes. Orquídeas em jardineiras de porcelana ofereciam as tonalidades mais intensas.
Arcadas laterais levavam a longos corredores. Em frente à passagem da direita havia uma escada com carpete vermelho e um corrimão envernizado, toda de ângulos retos, sem curvas. Passava por um patamar no segundo andar e ia além de onde a visão alcançava. À frente, uma parede com janelas panorâmicas emoldurava uma paisagem de folheto turístico: terraços e gramados e o mar de um azul pungente. A barreira de recife era uma pequena vírgula escura junto ao canal de entrada, e o lado oeste da ilha, a ponta de uma faca cortando a laguna. A maior parte da aldeia de Aruk estava agora encoberta pelas copas das árvores. As poucas casas que eu podia avistar eram como açúcar salpicado na encosta. — Quantos hectares vocês têm aqui? — Uns duzentos e oitenta. Era sem dúvida uma grande propriedade, numa ilha aparentemente pequena. — Estava abandonada quando o Dr. Bill a comprou do governo — acrescentou. — Ele a recuperou… Querem beber alguma coisa? Ele voltou com uma bandeja com latas de Coca-Cola, fatias de lima, copos e uma tigela com água para Spike. Vinha acompanhado por duas mulheres baixas com vestidos floridos simples e sandálias de borracha, uma com uns sessenta anos, a outra com a metade dessa idade. Ambas tinham rosto largo e expressão suave. O rosto da mulher mais velha era todo marcado de cicatrizes. — Dr. Alexander Delaware e Sra. Robin Castagna — disse Romero, pondo a bandeja numa mesinha de bambu e a tigela com água no chão. Spike avançou apressado e começou a beber. KiKo observou-o com uma expressão analítica, coçando a pequena cabeça. — Esta é Gladys Medina — apresentou Romero. – Chef-gourmet e Governanta-chefe. E esta é Cheryl, primeira-filha de Gladys e auxiliar de governanta. — Que é isso — disse Gladys, sacudindo a mão. — Nós cozinhamos e limpamos.
É um prazer conhecê-los. — Fez uma mesura, e a filha a imitou. — Falsa modéstia — comentou Romero, entregando um copo a Robin. — O que você quer, Benjamin? Biscoitos de gengibre? Ainda não assei. Portanto não vai conseguir nada. Esse cachorro é muito… simpático. Encomendei comida para ele no último barco e chegou seca. — Disse o nome da marca a que Spike estava acostumado. — Está ótimo — disse Robin. — Obrigada. — Quando KiKo come aqui, é na cozinha. Será que os dois não gostariam de fazer companhia um ao outro? Spike deitara no chão do vestíbulo, as bochechas espalhadas sobre a pedra, as pálpebras baixando. — Parece que ele precisa tirar um cochilo primeiro — comentou Romero. — Sem problema — disse Gladys. — Se precisarem de alguma coisa, basta ir à cozinha e me avisar. As duas mulheres se retiraram. Cheryl não pronunciara uma única palavra. — Gladys está com o Dr. Bill desde que ele deixou a Marinha — informou Romero. — Trabalhava como cozinheira para o comandante da base em Stanton, teve tifo e foi salva pelo Dr. Bill. Foi despedida enquanto convalescia, e o Dr. Bill a contratou. Seu marido morreu há alguns anos. Cheryl vive com ela.
Tem um pequeno problema mental. Ele nos levou para o andar de cima. Nossa suíte ficava no meio do corredor. Uma sala com frigobar, o quarto e um banheiro de ladrilhos brancos. O chão era coberto por um carpete marrom velho, e as paredes, rebocadas com detalhes em teca. Estofados com padrões florais, mais mesas de bambu. A banheira de ferro fundido era antiga e limpa, na borda de mármore havia sabonetes, loções e esponjas ainda na embalagem plástica. Ventiladores de teto circulavam lentamente o ar nos três cômodos. Um leve cheiro de inseticida pairava no ar. A cama de baldaquino e mogno, da virada do século, estava forrada com lençóis brancos de linho e uma colcha de seda amarela.Numa mesinha de cabeceira havia um vaso de vidro fosco com açucenas.Um cartão branco dobrado formava uma tenda em miniatura sobre o travesseiro. Muitas janelas, cortinas de seda abertas. E muito céu. — Que vista! — exclamou Robin. — O comandante militar japonês queria ser o rei da montanha, mas o ponto mais alto da ilha é na verdade aquele ali — disse Romero, apontando para o mais alto dos penhascos escuros. — Porém fica muito próximo do lado de onde sopra o vento. Seria preciso suportar ventanias o ano todo e uma umidade terrível. Dirigiu-se a uma janela. — Os japoneses calcularam que as montanhas proporcionavam uma barreira natural contra um ataque por terra vindo do leste. O governador alemão também construiu sua casa aqui, pelo mesmo motivo. Os japoneses a demoliram e se empenharam em criar um ambiente japonês. Trouxeram gueixas, casas de chá e de banho e até um cinema, lá embaixo, onde é agora o Posto Comercial. Os alojamentos dos escravos ficavam no campo por que passamos na subida, onde ficam as bânias acidentais. Quando MacArthur atacou, os escravos deixaram seus alojamentos e se voltaram contra os japoneses.
Com isso e o bombardeio, dois mil japoneses morreram. Às vezes ainda se encontram crânios e ossos dessa época na encosta. Ele foi até o banheiro e testou as torneiras. — Essa água é potável. O Dr. Bill instalou filtros de carbono ativado em todas as cisternas da ilha e efetuamos contagens regulares de germes. Antes disso, a cólera e o tifo eram grandes problemas. Ainda é preciso tomar cuidado com o consumo dos mariscos daqui… por causa das toxinas marinhas e dos parasitas que atacam os pulmões. Mas podem comer frutas e legumes à vontade. Não há problema com nenhum alimento aqui da casa, pois o próprio Dr. Bill cultiva tudo. Quanto à comida de fora, a do Slim’s não é grande coisa, mas o Chop Suey Palace é melhor do que parece. Pelo menos minha esposa, que é mandarim, não se importa de comer lá. Às vezes, a própria Jacqui, a proprietária, cozinha alguma coisa interessante, como uma sopa típica, dependendo dos ingredientes disponíveis. — A barbatana do tubarão foi para lá? — perguntei. — Como? — Aqueles dois sujeitos na enseada. O tubarão era para o restaurante? Ele empurrou os óculos nariz acima. — Ah, eles… Não. Duvido muito. Um homem de barba e cabelos grisalhos trouxe nossa bagagem. Romero o apresentou como Carl Sleet e lhe agradeceu. Assim que ele se retirou, Romero perguntou: — Precisam de mais alguma coisa? — Acredito que não. — Bem, então aqui está a chave. O jantar será servido às seis. Vistam roupas confortáveis.
Ele saiu. Spike adormecera na sala da suíte. Robin e eu fomos para o quarto, fechei a porta aos roncos caninos. — Bem… — murmurou ela, respirando fundo e sorrindo. Beijei-a. Ela retribuiu o beijo com ardor, mas acabou bocejando e se desvencilhou de meus braços, rindo. — Eu também — falei. — Hora de um cochilo? — Depois que eu tomar um banho. — Ela esfregou os braços. — Estou com uma crosta de sal. — Ah, uma mulher em salmoura! Agarrei-a e lambi sua pele. Ela riu, empurrou-me e começou a abrir uma mala. Peguei o cartão dobrado sobre o travesseiro. Dentro, havia uma mensagem manuscrita: Home is the sailor, home from the sea And the hunter home from the hill R.L. Stevenson O lar é o marujo, lar do mar, e o caçador, lar da montanha. Por favor, façam do meu lar o de vocês. WWM — Robert Louis Stevenson — disse Robin. — Talvez esta seja nossa Ilha do Tesouro. — Quer ver minha perna de pau? Enquanto ela ria, fui preparar a banheira. A água era cristalina, as toalhas novinhas, grossas como peles de animais. Quando voltei, encontrei Robin estendida sobre a colcha, nua, as mãos sob a cabeça, os cabelos castanho-avermelhados espalhados sobre o travesseiro, os mamilos escuros e rígidos. Observei sua barriga subir e descer. Seu sorriso. Os enormes incisivos superiores pelos quais eu me apaixonara, anos antes.
As janelas ainda estavam abertas. — Não se preocupe — disse ela, baixinho. — Já verifiquei e ninguém pode ver o que acontece aqui dentro… é muito alto. — Ah, como você é linda… — Eu te amo. Isso vai ser maravilhoso. 3 Um som estridente me acordou. Uma das telas sendo arranhada. Sentei-me na cama no mesmo instante, vi o que era. Um pequeno lagarto, esfregando as patas dianteiras na tela. Levantei-me e fui olhar mais perto. Ele continuou ali. Tinha o corpo castanho-claro com manchas pretas. Cabeça estreita e olhos imóveis. Fixos em mim. Sacudi a mão. Sem se abalar, o lagarto arranhou a tela mais um pouco e por fim fugiu. Cinco da tarde. Eu dormira duas horas. Robin ainda estava encolhida sob os lençóis. Vesti a calça, fui para a sala na ponta dos pés. Spike me saudou arfando e rolando. Massageei sua barriga, coloquei mais água em sua tigela, servi-me de uma água tônica com gelo e sentei-me junto à janela maior. O sol era uma enorme cereja vermelha, o mar começava a ficar prateado. Sentia-me afortunado por estar vivo, mas também deslocado — longe de tudo que me era familiar. Remexendo em minha pasta, encontrei a carta de Moreland.
Um papel branco grosso, com uma suntuosa filigrana. No alto, impresso em relevo com letras pretas: Casa Aruk, Ilha Aruk Prezado Dr. Delaware, Sou um médico que vive na ilha de Aruk, na região norte da Micronésia. Apelidada de “a Ilha da Faca”, devido a seu formato alongado, Aruk pertence oficialmente à Comunidade das Marianas, sendo território dos Estados Unidos com um governo próprio, mas é uma ilha relativamente pouco conhecida e não figura nos guias turísticos. Vivo aqui desde 1961 e descobri que é um lugar maravilhoso e fascinante. Por acaso vi um artigo seu publicado em The Journal of Child Development and Clinical Practice sobre trauma coletivo. Depois li todos os seus outros trabalhos publicados e constatei que possui uma combinação extraordinária de erudição e bom senso. Digo isso tudo a fim de lhe propor algo interessante. Ao longo dos últimos trinta anos, além de conduzir pesquisas sobre história natural e nutrição, tenho acumulado uma enorme quantidade de dados clínicos provenientes de minhas atividades médicas, alguns singulares. Como a maior parte do meu tempo tem sido dedicada ao tratamento de pacientes, não disponho de tempo para organizar essas informações da maneira apropriada. À medida que vou ficando mais velho e mais perto da aposentadoria, chego à conclusão de que, se esses dados não forem publicados, pode-se perder uma riqueza de informações. Inicialmente pensei em procurar a ajuda de um antropólogo, mas logo concluí que alguém com experiência clínica, de preferência na área de saúde mental, seria mais conveniente para a tarefa. Sua orientação e habilidade com texto me fazem pensar que pode ser um colaborador compatível. Tenho certeza, Dr. Delaware, de que isto pode parecer estranho. Surgindo assim de repente, mas pensei muito em minha oferta. Embora o ritmo de vida em Aruk seja provavelmente muito mais lento do que aquele ao qual está acostumado, talvez isso, por si só, possa atraí-lo. Estaria interessado em me ajudar? Calculo que a organização preliminar leve dois meses, talvez três. Então, poderemos sentar e determinar se temos um livro, uma monografia ou vários artigos para publicações especializadas. Eu me concentraria nos aspectos biológicos, deixando a seus cuidados a parte psicológica. Estou pensando em uma colaboração meio a meio, uma coautoria. Posso oferecer a remuneração de seis mil dólares mensais, durante quatro meses, além de transporte em classe executiva, estadia e pensão completa. Não há hotéis em Aruk, mas minha casa é bastante espaçosa, e tenho certeza de que a achará agradável. Se for casado, posso custear o transporte de sua esposa, mas não tenho como oferecer a ela nenhum trabalho remunerado. Se tiver filhos, eles podem ser matriculados no colégio católico da ilha, que é pequeno, mas bom, ou eu posso providenciar professores particulares a um preço razoável.
Caso se interesse por esta proposta, escreva-me, por favor, ou telefone a cobrar para (607) 555- 3334. Não há prazo formal, mas gostaria de iniciar os trabalhos o mais depressa possível. Cordialmente, Dr. WooDrow Wilson Moreland Ritmo lento de vida; nada na carta indicava desafios profissionais, e em qualquer outra ocasião eu teria respondido com uma recusa polida. Havia anos eu não trabalhava com terapia de longo prazo, mas as consultas relacionadas ao fórum me mantinham ocupado, e o trabalho de Robin como fabricante de instrumentos de corda sob encomenda deixava-lhe pouco tempo livre para férias, quanto mais para um idílio de quatro meses. Mas estivéramos conversando, meio de brincadeira, sobre fugir para uma ilha deserta. Um ano antes, um psicopata incendiara nossa casa e tentara nos assassinar. Consequentemente, assumíramos a tarefa de reconstrução, alugando temporariamente uma casa de praia no extremo oeste de Malibu. O empreiteiro não cumpriu o contrato e Robin passou a supervisionar a obra. Tudo correu bem até surgirem os inevitáveis problemas de construção. Ainda faltavam alguns meses para que a nova casa ficasse pronta, e a dupla carga de trabalho foi demais para Robin. Ela contratou um colega de profissão que desenvolvera uma terrível alergia a pó de madeira para supervisionar os estágios finais da construção e voltou à fabricação de instrumentos. Depois, um problema com o pulso direito: uma grave tendinite. Os médicos disseram que só melhoraria se ela concedesse um longo descanso à articulação. Robin ficou deprimida e não fez muita coisa além de passar quase o dia todo sentada na praia, insistindo que estava se adaptando bem à situação.
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