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A Tempestade – William Shakespeare

No verão de 1587, um rapaz interiorano andava pelas ruas de Londres. Tinha consigo apenas algumas libras, mas finalmente encontrava-se no ambiente propício para desenvolver a sua vocação — a literatura. A capital inglesa havia sido, por muito tempo, apenas um sonho para William Shakespeare. Nascido em 1564 em Stratford-upon-Avon, gozou de uma vida abastada até os 12 anos. A partir de então, com a falência de seu pai, viu-se obrigado a trocar os estudos pelo trabalho árduo, passando a contribuir para o sustento da família. Guardava, entretanto, os conhecimentos adquiridos na escola elementar, onde havia iniciado seus estudos de inglês, grego e latim; por sua própria conta, continuou a ler os autores clássicos, poemas, novelas e crônicas históricas. Era também um profundo conhecedor da Bíblia. Aos 18 anos já estava casado com a rica Anne Hathaway, com quem teve três filhos. Não se sabe ao certo por que motivo seguiu sozinho para Londres, quando contava 23 anos; o fato é que veio a tornar-se a figura mais expressiva da literatura inglesa. Foi o maior poeta e dramaturgo do Renascimento de seu país. De maneira bem simples, podemos definir o Renascimento como a retomada da cultura da Antigüidade clássica, baseada na valorização de todas as capacidades do homem e no estudo e conhecimento da natureza, que se desencadeou em vários países da Europa nos séculos XIV, XV e XVI, reformulando as artes, as letras e as ciências. Esses princípios eram bem diferentes daqueles que nortearam a cultura medieval, centralizada na adoração a Deus e no estudo exclusivo dos livros sagrados e dos assuntos espirituais. Vários foram os fatores que determinaram esse processo: a centralização do poder na figura dos reis, que estimulavam a produção artística esperando obter dessa forma promoção pessoal; o desenvolvimento do comércio e das cidades; e o enriquecimento dos comerciantes, que passaram a pagar para que artistas e literatos produzissem obras que divulgassem os valores dessa classe emascensão. Tal efervescência cultural era bastante acentuada em Londres, onde se desenvolvia uma intensa atividade teatral. Shakespeare iniciou sua carreira como ator, na companhia teatral do Conde de Leicester. Pouco tempo depois, passou a dedicar-se à adaptação de textos alheios para o palco. O sucesso obtido nessa atividade levou-o a escrever suas próprias peças. Nos dez anos seguintes — já com sua companhia teatral — escreveu quinze peças, quase todas comédias leves e dramas históricos ou sentimentais, como Sonho de uma noite de verão, A megera domada, Muito barulho por nada, Ricardo III e Romeu e Julieta. A partir de 1601, durante um período de recolhimento e meditação, elaborou a maior parte de suas tragédias, como Otelo, Hamlet, Rei Lear e Macbeth. Alguns críticos consideram esse período a sua “fase sombria”. E m A tempestade, escrita provavelmente em 1611, é notória a composição de elementos variados que guarda a arte de Shakespeare. Nesse texto, ele mistura a elementos próprios do universo medieval, como as bruxas, fantasmas, espíritos, símbolos mágicos, personagens-síntese da mentalidade renascentista, como Próspero, um humanista típico, estudioso empenhado em elaborar um novo código de valores e comportamentos, centrados no indivíduo e em sua capacidade realizadora; ou Gonçalo, um utopista, que almeja instituir uma comunidade ideal, onde os homens vivam felizes, com fartura, paz e mantendo relações fraternais, sob um poder altamente centralizado, porém justo e racional. No Renascimento têm origem a reflexão histórica e social e a ciência política. É um momento em que se intensifica tanto a avidez de conhecimento como a do poder e do lucro, tornando-as indissociáveis em nossa sociedade e que são representadas aqui por Próspero e seu irmão Antônio. Na Itália, o berço da cultura renascentista, as cidades mercantis, organizadas depois de uma longa e árdua luta em cidades-Estado ou em repúblicas independentes, prosperarameconomicamente.


Isso fomentou conflitos de toda espécie, tanto envolvendo as repúblicas em guerras contínuas na disputa pelas melhores oportunidades comerciais quanto mantendo em permanente confronto os trabalhadores e artesãos contra os poderosos comerciantes que controlavam as cidades. É nesse cenário tempestuoso que se desenvolveram os ideais da Renascença, voltados para os princípios do equilíbrio, da harmonia, do naturalismo, do racionalismo. Num período de caos e opressão, seu comprometimento era com a ordem e a liberdade do espírito. A prosperidade mercantil, assim, estava atrelada à atitude racional, organizadora, mas também agressiva, conquistadora, sequiosa de independência, de espaço, de saber e de distinção. A tempestade, um dos últimos trabalhos de Shakespeare, aqui adaptado para a forma de narrativa, é uma preciosa criação fruto desses ideais que representam um dos momentos mais fascinantes da aventura intelectual da humanidade. CAPÍTULO I O Mar Em algum lugar do imenso oceano, num ponto perdido entre a cidade de Túnis, na África, e o reino de Nápoles, no Mediterrâneo, um navio se debatia contra uma terrível tormenta, em meio a incessantes trovões e relâmpagos. O capitão, homem experiente como convém a um comandante que conduz um rei e sua comitiva em seu navio, conclamava o contramestre e os marinheiros para lutar contra o mar bravio. As ordens de baixar velas na popa e depois alinhá-las e aparelhá-las para altomar eram gritadas para os marujos, encharcados pelas ondas que se abatiam sobre o navio, tornando o convés cada vez mais escorregadio. Os marinheiros eram rápidos em cumprir as ordens do capitão, na esperança de escapar da pavorosa tempestade. Navegar pelo oceano é quase sempre uma grande aventura, muitas vezes cheia de realizações e descobertas importantes. Mas é também um risco incalculável: por maior que seja a competência dos capitães, os marujos Sabem que o mar é ao mesmo tempo um espaço a ser conquistado e um lugar cheio de perigos. Muitas são as lendas e os relatos terríveis sobre os naufrágios: frotas bemequipadas, tripulações inteiras, sonhos de riquezas colhidas em terras distantes tragados pelo mar implacável em noites de tempestade como aquela. Não fazia muito tempo, uma frota inglesa naufragara em algum ponto entre a Europa e o Novo Mundo. Uns poucos tripulantes conseguiram chegar até uma ilha selvagem que chamaram de Ilha do Diabo e lá permaneceram entre os nativos por dez longos meses. A história desse naufrágio correra os portos da Europa, aumentando ainda mais o fascínio que o mar exerciasobre as pessoas, mas também o medo. Medo de ser engolido pelas ondas gigantescas como se o navio fosse uma frágil casca de noz. Medo de sobreviver à tempestade mas morrer antes de alcançar terra firme. Medo de ver-se preso em uma ilha habitada por selvagens hostis sem esperança de voltar para a terra natal. Existiam ainda as histórias sobre monstros marinhos, sereias, espíritos maléficos e toda a sorte de perigos a rondar os que faziam do mar seu trabalho e seu destino. Apesar de ter lutado contra a tempestade por toda a noite enquanto os nobres da comitiva real rezavam apavorados em seus camarotes ou atrapalhavam com suas perguntas o esforço de salvamento, chegou um momento em que a tripulação se reconheceu derrotada. Uns bebiam, certos de ser aquele o último trago; outros, desesperados, gritavam pela família que deixaram em terra distante. Alguns choravam e rezavam. Gonçalo, o velho conselheiro de Alonso, rei de Nápoles, ao ver que estava tudo perdido, pensou, antes de se dirigir ao camarote de seu senhor: — “Daria, com prazer, milhares de braças de mar por um pedaço de terra, terra seca, com espinhos, com urtigas, terra sem nada. Que se cumpra a vontade de Deus, mas eu preferia morrer uma morte seca!” CAPÍTULO II O Mago e sua filha Açoitado pelos ventos e atingido por raios que acabaram por incendiar o madeirame, o navio naufragava, e os nobres, apavorados, atiraram-se ao mar, acreditando que o inferno estava vazio e que todos os demônios estavam ali. Não havia mais salvação e, entre a morte pelo fogo e a morte pela água, escolheram mergulhar no túmulo marinho.

Perto dali, no interior de uma estranha caverna na ilha onde moravam, invisível aos olhos dos náufragos, Miranda pedia a Próspero: — Se foi sua arte, meu pai querido, que provocou a tempestade, faça com que as águas selvagens se acalmem. Como sofri com aqueles que vi sofrer! O céu parecia derramar breu fervente enquanto o mar subia a apagar o fogo. O navio fez-se em pedaços. Morreram todos, pobres criaturas. Seus gritos feriram meu coração. Se eu fosse um deus poderoso, impediria o mar de tragar o navio e as pobres almas de perecerem junto com ele. Até onde conseguia se lembrar, Miranda crescera naquela ilha, vivendo com seu pai, Próspero, em uma caverna. Linda como a mais linda das princesas e sábia como a maioria delas não costuma ser, teve como professor Próspero, que dedicara a vida ao aperfeiçoamento do espírito. Nada sabia sobre o seu passado e, se às vezes sentia curiosidade a respeito, calava-se, porque pressentia que ainda não chegara o momento de interrogar o pai sobre suas origens. Próspero era um homem já velho, com o aspecto frágil daqueles que passam o tempo trancados em bibliotecas, entregues aos livros e às aventuras do pensamento. Ouvindo-a lamentar as conseqüências da tempestade, como o mais meigo dos pais explicou à filha: — Não se preocupe, minha querida. Não aconteceu nada de mal e tudo o que fiz foi por você, que nada sabe sobre quem é ou sobre quem sou eu, além de ser Próspero, senhor desta pobre gruta, seu pai. — Nunca pensei em saber mais que isso. — É tempo de dizer mais. Ajude-me a tirar o manto mágico, instrumento de minha arte. Enxugue os olhos, Miranda, fique tranqüila. O horrível espetáculo do naufrágio, que despertou sua compaixão, eu o criei sim, graças à minha arte. Mas fui previdente, pois ninguém se perdeu. Ninguém perdeu umfio de cabelo no naufrágio. Agora você precisa saber mais do que sabe. Atenta, Miranda escutou a história a respeito da qual muitas vezes tivera curiosidade. Emdiversas ocasiões, sentira-se tentada a perguntar por que suas lembranças do passado eram tão vagas. A única imagem que guardara de antes de chegarem à ilha era a de várias mulheres cuidando, banhando e arrumando uma criança bem pequena, que supunha ser ela mesma, porque sentia, numa lembrança confusa, os cheiros perfumados do banho, o carinho daquelas que cuidavam dela. Não se lembrava de outra coisa, do navio que os trouxera, de casa, da família. A memória é uma coisa estranha.

Às vezes, um fato aparentemente insignificante permanece gravado e coisas mais importantes não. Daí o interesse com que seguia a história que o pai começava a lhe contar. Próspero era, na verdade, o sábio duque de Milão, que vivia em seu ducado com a filhinha Miranda. Desde que ficara viúvo, deixara os assuntos de governo por conta de seu irmão Antônio e passara a viver cada vez mais mergulhado nos livros de artes e magia da biblioteca de seu castelo. Amante da Arte e da Ciência, Próspero buscava dominar todo o conhecimento disponível sobre o espírito, a natureza, os astros, o universo. A biblioteca do duque de Milão não encontrava rival em toda a Itália. Sua paixão pelos livros era tão conhecida que era presenteado, nas grandes ocasiões, por quem tinha interesse em lhe agradar, com obras raras em vez de jóias, cavalos de raça ou objetos de arte. Os livros que Próspero acumulara em toda uma vida de estudos versavam sobre o conhecimento humano de mais de dois mil anos, em todas as áreas. Havia em sua biblioteca o Livro da água, com desenhos de tudo o que se associava ao meio líquido — rios, córregos, oceanos, naufrágios, tempestades, lágrimas —, esquemas de maquinário hidráulico e mapas meteorológicos. Estavam registradas nesse livro descobertas e lendas inspiradas aos homens pela água, numa mistura de ciência e poesia. Ali encontravam-se também o Livro dos espelhos, com suas páginas cobertas de mercúrio; o Livro de Arquitetura e Música, com edificações e pautas musicais de todas as épocas; o Livro das cores, contendo matizes das cores que pintavam as obras dos homens e da natureza; o Livro de Geometria, com seus números dourados, expressões logarítmicas e ângulos; um Atlas com os mapas do Inferno atribuídos a Orfeu, que, segundo os gregos, teria descido ao reino dos mortos para buscar sua amada Eurídice; o Livro de Anatomia, que descrevia com detalhes o corpo humano e questionava a eficiência da natureza e de Deus; o Livro da terra, grosso e encadernado em tecido escuro, com as páginas impregnadas de minerais, ácidos e seivas da terra; o Livro das ervas, uma verdadeira enciclopédia de pólen e perfume; o Livro dos viajantes, com relatos de viagens recentes e remotas por lugares reais e imaginários e as mais inusitadas informações sobre os povos e seus costumes; o Livro da Mitologia, um dos mais preciosos da biblioteca, um compêndio de todos os mitos com suas variantes, a narrativa mais completa das relações entre os deuses e os homens. O isolamento de Próspero, que sempre apreciou mais os livros do que os assuntos de governo, acabou por despertar no ambicioso e inescrupuloso Antônio o desejo pelo poder. De tanto administrar o ducado, o irmão do duque convenceu-se de que tinha mais direito ao título do que o duque de verdade. Perfeito na arte de conceder favores e de negá-los, Antônio transformou os súditos de Próspero em seus súditos. Para que o papel que representava se tornasse realidade, precisava se fazer senhor absoluto de Milão. Com esse intento, aliou-se a Alonso, rei de Nápoles, e em troca de um tributo anual e de tornar Milão — até então um ducado independente — submisso ao reino de Nápoles, conseguiu que Alonso, inimigo de Próspero, enviasse um exército para destroná-lo. Numa noite sombria, o exército invasor chegou ao ducado e encontrou as portas da cidade abertas por Antônio e as sentinelas dominadas por seus asseclas. Entretanto, temendo a revolta do povo, que amava muito seu duque, faltou ao exército inimigo e ao irmão traiçoeiro coragem para matar Próspero. Embarcaram-no e a sua filha num velho escaler, sem instrumentos de navegação, sem velas e sem marinheiros (até os ratos fugiram do barco, tais eram os indícios de que seu destino era naufragar) e os deixaram entregues à fúria do mar e do vento, sem outra companhia a não ser a de alguns livros que Gonçalo, nobre napolitano encarregado por Alonso de comandar o exército invasor, por piedade, entregou a Próspero na hora do embarque, juntamente com uma pequena quantidade de mantimentos, um pouco de água fresca e algumas roupas. Apesar de tudo ter sido planejado por Antônio para que Próspero e sua pequena herdeira encontrassem a morte no fundo do mar, tal não aconteceu. O sorriso de Miranda, criança muito bemhumorada, deu alento ao pai, que enfrentou as terríveis condições daquela viagem, e os dois acabaram aportando naquela ilha tão singular onde viviam desde então. Assim aconteceu e assim contou Próspero a Miranda, que, no entanto, ainda permanecia com uma dúvida: — Meu pai, por que causou esta tempestade? — Por uma coincidência estranha, quis a Sorte que me protege trazer meus inimigos para estas costas. Graças à minha magia, descobri que o meu apogeu se encontra sob o domínio de uma estrela auspiciosa a cuja influência devo ceder. E agora chega de perguntas. O sono se aproxima, não resista a ele.

Durma, minha filhinha. O que Próspero não contou é como seus inimigos chegaram até ali. Enquanto Miranda, na ilha, comemorava quinze anos, saía de Nápoles uma grande comitiva para assistir ao casamento de Claribel, filha do Rei Alonso, com o rei de Túnis. Foram dias e dias de festa à que compareceram, além dos convivas locais, Alonso, seu filho Fernando, Antônio, usurpador do ducado de Milão, Sebastião, irmão do rei de Nápoles, Gonçalo, o conselheiro real, e outros nobres napolitanos e milaneses. A magia de Próspero descobriu a comitiva na volta de Túnis. Não estava nos seus planos contar à filha todos os fatos e suas implicações. A tempestade fora um ardil seu para trazer ,os inimigos à ilha.

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