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A Terceira xicara de Cha – Greg Mortenson, David Oliver Relin

LUZINHA VERMELHA DO PAINELJÁ ESTAVA PISCANDO FAZIA CINCO MINUTOS, até Bhangoo percebê-la. — Os indicadores de combustível dessa velha máquina são totalmente duvidosos — disse o general-de-brigada Bhangoo, um dos pilotos de helicóptero mais experientes do Paquistão, batendo o dedo no visor. Não sei se disse isso com a intenção de me tranquilizar. Eu estava sentado ao lado de Bhangoo, olhando debaixo dos pés pelo para-brisa redondo do helicóptero Alouette, da época da guerra do Vietnã. Seiscentos metros abaixo, serpenteava um rio, por entre as margens rochosas, que despontavam dos dois lados do vale do Hunza. À altura dos olhos, voávamos por geleiras recém-formadas, reluzindo sob um sol tropical. Bhangoo prosseguia, sem se perturbar, batendo a cinza do cigarro por um respiradouro, ao lado de um adesivo que alertava: “Não Fume.” Do fundo do helicóptero, Greg Mortenson esticou seu longo braço e tocou o ombro de Bhangoo sob a jaqueta de voo. — General — gritou Mortenson —, acho que estamos indo na direção errada. O general-de-brigada Bhangoo fora o piloto particular do presidente Musharraf antes de se aposentar da vida militar e ingressar numa empresa de aviação civil. Estava beirando os 70 anos, tinha cabelos grisalhos e um bigode tão certinho quanto as vogais que herdara da escola britânica particular que frequentou quando era jovem com Musharraf e outros futuros líderes do Paquistão. O general atirou o cigarro pela janelinha e soltou a fumaça. Então se inclinou para comparar a unidade de GPS que equilibrava no joelho com o mapa militar que Mortenson dobrara, para destacar o que acreditava ser a nossa posição. — Sobrevoo o norte do Paquistão há quarenta anos — respondeu ele, meneando a cabeça, ummovimento característico dos habitantes do subcontinente. — Como você conhece a região melhor que eu? Bhangoo imbicou o Alouette bruscamente, retomando a direção da qual viemos. A luzinha vermelha que me preocupara antes começou a piscar mais rápido. A agulha oscilante do indicador mostrava que tínhamos menos de 100 litros de combustível. Esta parte do norte do Paquistão era tão remota e inóspita, que tínhamos de conhecer quem pudesse fornecer tonéis comcombustível de avião, transportados por jipe em locais estratégicos. Se não chegássemos ao ponto de aterrissagem, estaríamos, literalmente, numa enrascada, uma vez que o cânion acidentado que acabáramos de sobrevoar não possuía áreas planas adequadas para a aterrissagem do Alouette. Bhangoo subiu ainda mais, para girar em direção a um ponto de pouso mais distante, caso ficássemos sem combustível, e empurrou o manche para a frente, acelerando até noventa nós. Quando a agulha bateu no fundo do indicador e a luzinha vermelha de alerta começou a apitar, Bhangoo tocou com o trem de pouso no centro de um imenso H desenhado no heliporto com pedras brancas, ao lado dos tanques de combustível. — Essa foi por pouco — disse Bhangoo, acendendo outro cigarro. — Mas poderia não ter dado certo, se não fosse o sr. Mortenson. Mais tarde, depois de reabastecer com uma bomba manual de um tanque de combustível enferrujado, sobrevoamos o vale do Braldu até a aldeia de Korphe, o último ponto habitado antes da geleira do Baltoro, que se estende até o K2, e a maior concentração de cumes acima de 6 mil metros de altura.


Depois de uma tentativa fracassada de escalar o K2 em 1993, Mortenson chegara a Korphe totalmente exausto. Nesta empobrecida comunidade de chalés de pedra em meio à lama, a vida de Mortenson e das crianças paquistanesas do Norte mudou de rumo. Uma noite, adormeceu ao lado de uma fogueira como um alpinista perdido durante a escalada e, pela manhã, após tomar um bule de chá com os anfitriões e calçar novamente as botas, ele havia se tornado um humanitário que fora ao encontro de uma missão que deveria cumprir para o resto de sua vida. Ao chegar a Korphe com dr. Greg, Bhangoo e eu fomos recebidos de braços abertos, com cabeças de íbex, cabras selvagens recém-caçadas, e inúmeras xícaras de chá. E ao ouvir as crianças ‘ditas de Korphe — uma das comunidades mais pobres do mundo — contarem como suas esperanças e sonhos para o futuro haviam crescido exponencialmente desde que este grande americano chegara há dez anos para construir a primeira escola da aldeia para eles, o general e eu ficamos exaustos. — Sabe — disse Bhangoo, cercado por 120 alunos que nos puxavam pela mão para ver a escola –, ao voar com o presidente Musharraf, conheci muitos líderes mundiais, muitos homens e mulheres notáveis, mas acho que Greg Mortenson é a pessoa mais notável que conheci. Qualquer pessoa que tem o privilégio de ver Greg Mortenson agir no Paquistão fica surpresa com o quanto ele aprendeu sobre uma das regiões mais remotas do mundo. E muitas delas se vêematraídas, quase sem querer, para sua órbita. Durante a última década, após uma série de fracassos e acidentes que o transformaram de alpinista em humanitário, Mortenson atraiu o que se pode chamar de uma das equipes mais subqualificadas e, ao mesmo tempo, mais bem-sucedidas dentre as organizações de caridade do mundo. Carregadores iletrados que vivem nos planaltos na região de Karakoram, no Paquistão, baixaram seus fardos para receber dele parcos salários para que os filhos pudessem ter a educação de que foram privados. Um taxista que teve a sorte de pegar Mortenson no aeroporto de Islamabad vendeu o táxi e se tornou seu fiel e dedicado “quebra-galhos”. Ex-combatentes do Talibã renunciaramà violência e à opressão às mulheres depois que conheceram e passaram a trabalhar com Mortenson, construindo, pacificamente, escolas para meninas. Ele atraiu voluntários e admiradores de todos os estratos da sociedade paquistanesa e de todos os setores combatentes do Islã. Aparentemente, jornalistas objetivos correm o risco de serem atraídos para a sua órbita também. Por três vezes, acompanhei Mortenson até o norte do Paquistão, voando até os vales mais distantes do Karakoram, no Himalaia, e do Hindu Kush, em helicópteros que já deveriam estar pendurados nos tetos de museus. Quanto mais tempo passei vendo Mortenson trabalhar, mais me convencia de que estava diante de uma pessoa extraordinária. Os relatos que ouvi sobre as aventuras de Mortenson para construir as escolas para meninas nas remotas regiões montanhosas do Paquistão pareciam dramáticos demais para serem verdade. A história que apurei entre os caçadores de íbex nos vales elevados do Karakoram — emassentamentos nômades na fronteira selvagem com o Afeganistão, em mesas de reunião com o alto escalão do Exército do Paquistão, e bebendo incontáveis xícaras de paiyu cha — chá amanteigado que é a base da alimentação dos baltis, em salões tão esfumaçados que eu tinha de apertar os olhos para enxergar meu bloco de anotações —foi ainda mais notável do que eu poderia imaginar. Como jornalista experiente nesse estranho ofício de me imiscuir na vida alheia, por duas décadas, conheci um número muito maior de figuras públicas do que eu deveria que não correspondiam ao que as assessorias de imprensa delas alardeavam. Mas, em Korphe — e em todas as aldeias paquistanesas em que fui recebido como um membro da família que há muito tempo não viam, porque outro americano se deu ao trabalho de criar laços de amizade com eles — assisti à história dos últimos dez anos da vida de Greg Mortenson se desdobrar e ramificar com uma riqueza e complexidade que transcendem ao que a grande maioria conquista ao longo de toda uma vida. Esta é uma forma simpática de dizer que este é um relato que não pude apenas observar. Qualquer um que visite as 53 escolas do Instituto da Ásia Central [Central Asia Institute] com Mortenson começa a trabalhar e, ao longo do processo, passa a defendê-lo. E depois de passar a noite em claro em jirgas com os anciões da aldeia avaliando propostas para novos projetos, ou de fazer uma demonstração numa sala de aula lotada de meninas de 8 anos de idade, ansiosas para aprender como usar o primeiro apontador de lápis que alguém se importou em lhes dar, ou de improvisar uma aula sobre gíria em inglês para uma turma de alunos extremamente circunspectos, é impossível continuar sendo apenas um jornalista. Thomas Fowler, personagem do romance O americano tranquilo, de Graham Greene, aprendeu que, às vezes, para ser humano, é preciso escolher um lado.

Escolho o lado de Greg Mortenson. Não por que ele não tenha defeitos. Seu sentido fluido de tempo impossibilitou a concatenação da narrativa de muitos dos fatos deste livro, como aconteceu ao entrevistar os baltis com quem ele trabalha que não possuem tempos de verbo em sua língua e dão pouca importância ao tempo linear, como o homem que eles chamam de dr. Greg. Durante os dois anos em quem trabalhamos neste livro, Mortenson atrasava-se com tanta frequência para as nossas entrevistas que cheguei a pensar em abandonar o projeto. Muitas pessoas, especialmente nos Estados Unidos, desistiram de se relacionar com Mortenson após experiências semelhantes, chamando-o, no mínimo, de “não-confiável”. Mas descobri, como sua esposa, Tara Bishop, costuma dizer, que “Greg não é como nós”. Ele funciona num “tempo de Mortenson”; resultado, talvez, de ter crescido na África e trabalhado grande parte da vida no Paquistão. E seu método de ação — contratando pessoas com pouca experiência baseado em sua intuição, forjando alianças de trabalho com personagens normalmente inadequados e, acima de tudo, improvisando, mesmo de forma desordenada e não-convencional — moveu montanhas. Para um homem que conquistou tantas coisas, Mortenson é surpreendentemente despretensioso. Depois que concordei em escrever este livro, ele me passou uma folha de seu bloco de anotações com dezenas de nomes e números anotados até a margem em letra miúda. Era a lista de seus inimigos. — Converse com todos eles — disse ele. — Ouça o que eles têm a dizer. Nós temos os resultados. É o que mais importa para mim. Ouvi centenas de aliados e inimigos de Mortenson. E para preservar sua segurança e/ou privacidade, alterei alguns nomes e lugares. Trabalhar neste livro foi uma mera colaboração. Eu escrevi a história, mas Greg Mortenson a viveu. Juntos, assistimos a milhares de slides, revisamos documentos e vídeos, amealhados ao longo de uma década, gravamos centenas de horas de entrevistas e viajamos para visitar as pessoas que são o centro desta narrativa incomparável. E, como pude constatar no Paquistão, o Instituto da Ásia Central (IAC) de Mortenson, incontestavelmente, produz resultados. Numa parte do mundo em que os americanos são, no mínimo, mal compreendidos e, mais frequentemente, temidos e odiados, este gentil ex-alpinista de Montana de 1,95m de altura colecionou uma série de sucessos improváveis. Embora nunca afirme isso, ele modificou, sozinho, a vida de dezenas de milhares de crianças e, de forma autônoma, conquistou mais corações e mentes do que todas as propagandas oficiais americanas que abundam na região. Assim, confesso: em vez de simplesmente relatar o andamento, quero ver Greg Mortenson vencer.

Desejo sucesso a ele, porque ele está combatendo o terrorismo do modo como penso que deveria ser combatido. Atravessando a “Rodovia” do Karakoram em seu velho Land Cruiser e correndo imensos riscos pessoais para semear com escolas a região que deu origem ao Talibã, Mortenson combate as principais causas do terrorismo toda vez que dá a um aluno a chance de receber educação equilibrada, em vez de estudar numa madrassa extremista. Se nós, americanos, devemos aprender com os nossos erros, a partir do modo truculento e incompetente com que conduzimos como nação a guerra contra o terrorismo depois dos ataques de 11 de setembro, e do modo como nos tornamos indefensáveis perante a maioria moderada de pessoas amantes da paz no coração do mundo muçulmano, precisamos dar ouvidos a Greg Mortenson. Eu o ouvi, e foi uma das experiências mais gratificantes da minha vida. — David Oliver Relin Portland, Oregon Capítulo 1 Fracasso Quando escurece, podemos ver as estrelas. — Provérbio persa NO KARAKORAM, PAQUISTÃO, NUMA ÁREA DE QUASE 160 QUILÔMETROS DE largura, mais de sessenta das mais altas montanhas do mundo ostentam sua austera beleza alpina emaltitudes raramente visitadas. Exceto pelos leopardos da neve e íbices, poucos seres passaram por esta deserta paisagem de gelo, em que a presença do K2, a segunda montanha mais alta do planeta, era praticamente um boato para o resto do mundo até a virada do século XX. Descendo do K2 em direção às altas regiões povoadas do vale do Indo, entre as quatro torres de granito dos Gasherbrums e as formas pontiagudas das Grandes Torres Trango, a geleira do Baltoro mal perturba esta soberba catedral de pedra e gelo. E até o movimento deste rio congelado, que corre, em média, 10 centímetros por dia, é praticamente imperceptível. Na tarde de 2 de setembro de 1993, Greg Mortenson sentiu como se não estivesse se movimentando mais rápido do que isso. Vestindo um shalwar kamiz marrom todo remendado, como seus carregadores paquistaneses, ele tinha a sensação de que as pesadas botas de alpinismo de couro escuro faziam-no descer o Baltoro em sua velocidade glacial, através de uma esquadra de geleiras, alinhadas como as velas de mil navios de gelo. A qualquer momento, Mortenson esperava encontrar Scott Darsney — companheiro de expedição com quem estava retornando à civilização — sentado numa pedra, caçoando por ele estar andando tão devagar. Mas a parte superior do Baltoro é mais um labirinto do que uma trilha. Mortenson ainda não percebera que estava perdido e sozinho. Ele se afastara da parte central da geleira por um atalho que o conduziria não para o oeste, para Askole —uma aldeia que ficava a 80 quilômetros, onde esperava encontrar um motorista de jipe disposto a levá-lo para longe dessas montanhas — pelo contrário, ele estava indo em direção ao sul, a um labirinto impenetrável de cascatas de gelo partido e, pior, para a fronteira de guerra em que soldados paquistaneses e indianos trocavam tiros no ar rarefeito. Normalmente Mortenson teria prestado mais atenção. Teria se mantido alerta a questões de sobrevivência, como o fato de que Mouzafer, o carregador que surgira como uma bênção e se oferecera para carregar a mochila pesada com o equipamento de alpinismo e a tenda, também estava levando a tenda e praticamente toda a sua comida, e o manteria sempre à vista. Também teria levado mais em conta os aspectos físicos assustadores à sua volta. Em 1909, o duque de Abruzzi, um dos maiores alpinistas e, talvez, o maior conhecedor de paisagens escarpadas de seu tempo, conduziu uma expedição italiana pelo Baltoro numa frustrada tentativa de atingir o K2. Ele ficou estupefato com a rude beleza dos picos da região. “Nada se comparava àquilo em termos de beleza alpina”, ele registrou num diário. “Era um mundo de geleiras e penhascos, uma vista incrível que agradaria tanto um artista quanto um alpinista.” Mas quando o sol se pôs por trás das grandes cerrações de granito da Torre Muztagh a oeste, e as sombras lançaram-se sobre as encostas do vale a leste, na direção dos monólitos afiados de Gasherbrum, Mortenson nem sequer notara. Ele estava introspectivo naquela tarde, absorto e aturdido por algo inédito em sua vida até aquele momento — o fracasso. Dentro do bolso de seu shalwar, ele tocou o colar de contas de âmbar que sua irmã caçula Christa sempre usara.

Aos 3 anos de idade, vivendo na Tanzânia, onde os pais de Mortenson, nascidos no Minnesota, trabalharam como professores e missionários luteranos, Christa contraíra meningite aguda e nunca se recuperou completamente. Greg, 12 anos mais velho que ela, se autodenominou seu guardião. Embora Christa se esforçasse para fazer coisas simples — vestir-se todos os dias de manhã tomava quase uma hora — e sofresse fortes ataques epilépticos, Greg pressionou a mãe, Jerene, para permitir que ela tivesse um pouco de independência. Ele ajudou Christa a conseguir um emprego em trabalhos manuais, ensinou-lhe os trajetos dos ônibus públicos de Twin Cities, para que pudesse ir aonde quisesse e, para a vergonha de sua mãe, discutiu detalhes sobre controle de natalidade, quando descobriu que ela estava namorando. Todos os anos, servindo como médico e comandante de pelotão do Exército americano na Alemanha, trabalhando como enfermeiro em Dakota do Sul, estudando neurofisiologia da epilepsia numa faculdade em Indiana, na esperança de descobrir uma cura para Christa, ou vivendo como umalpinista sem-teto num carro em Berkeley, Califórnia, Mortenson insistia que a irmã viesse visitá-lo durante um mês ao ano. Juntos, iam assistir a espetáculos que muito alegravam Christa. Iam às 500 Milhas de Indianápolis, ao Kentucky Derby, iam de carro à Disneylândia, e ele conduziu-a através da estrutura arquitetônica de sua catedral pessoal naquela época, as paredes de granito do Parque Nacional de Yosemite. Para o vigésimo terceiro aniversário, Christa e a mãe planejaram uma peregrinação do Minnesota aos campos de trigo em Deyersville, Iowa, onde o filme a que Christa assistira inúmeras vezes, O campo dos sonhos, fora filmado. Mas no dia de seu aniversário, nas horas que antecederamà partida pela manhã, Christa morreu, depois de sofrer uma forte convulsão. Após a morte de Christa, Mortenson pegou o colar entre os poucos pertences guardados da irmã. Ainda tinha o cheiro da fogueira que acenderam na última vez em que viera visitá-lo na Califórnia. Ele trouxe o colar para o Paquistão envolto em uma bandeira tibetana de oração, com um plano para honrar a memória da irmã caçula. Mortenson era alpinista e decidira prestar a homenagem mais significativa para ele. Iria escalar o K2, o cume que a maioria dos alpinistas considera o mais difícil de alcançar, e deixar o colar de Christa a 8.611 metros de altitude. Ele crescera numa família que gostava de se incumbir de tarefas difíceis, como construir uma escola e um hospital na Tanzânia, nas encostas do Monte Kilimanjaro. Mas apesar da aparência tranquila da fé inquestionável de seus pais, Mortenson ainda não havia se decidido sobre a natureza divina. Ele deixaria uma oferenda a qualquer divindade que vivesse nas altas atmosferas. Três meses antes, Mortenson saltitara nesta geleira com um par de sandálias sem meias, carregando uma mochila de 40 quilos além do ponto da aventura que o atraíra até o Baltoro. Ele estava percorrendo a trilha de 113 quilômetros a partir de Askole com uma equipe de dez alpinistas ingleses, irlandeses, franceses e americanos, que fazia parte de uma tentativa parcamente financiada, porém corajosa, de escalar o segundo pico mais alto do mundo. Comparado ao Everest, (1) a 1.600 quilômetros a sudeste ao longo da espinha dorsal do Himalaia, o K2, todos eles sabiam, era praticamente inacessível. Para os alpinistas, que o chamamde “O Pico Selvagem”, continua sendo o teste mais árduo, uma pirâmide de granito recortado tão íngreme que a neve não consegue se assentar sobre suas faces pontiagudas. E Mortenson, então um tipo destemido de 35 anos de idade — que escalara o Kilimanjaro aos 11, aprendera a subir nas paredes de granito puro do Yosemite, e graduara-se em meia dúzia de escaladas bem-sucedidas no Himalaia —, não duvidava, quando chegou, em maio, que logo colocaria o pé no que considerava “o maior e o pior cume da Terra”. Ele chegou muito perto, a 600 metros do topo, mas o K2 se ocultara entre as névoas por trás dele e o colar continuava em seu bolso.

Como isso pôde acontecer? Ele enxugou os olhos com a manga do casaco, desorientado por estar chorando e pensou que fosse a altitude. Ele não se reconhecia. Depois de 78 dias de luta nas altitudes do K2, sentia-se insignificante e ridículo. Ele simplesmente não sabia se teria as reservas para andar por mais 80 quilômetros sobre um terreno perigoso até Askole. O som agudo e certeiro de uma pedra caindo fez com que voltasse à realidade. Viu uma rocha do tamanho de um prédio de três andares acelerar, bater e girar sobre a encosta de cascalho embaixo, e pulverizar uma montanha de gelo na trilha à sua frente. Mortenson tentou voltar a si e manter-se alerta. Olhou para cima, viu quão alto as sombras se projetavam sobre os picos a leste, e tentou se lembrar quando tinha sido a última vez que vira outras pessoas por perto. Haviam se passado horas, desde que Scott Darsney desaparecera adiante na trilha. Uma hora antes, ou talvez mais, ele ouvira os sinos de uma caravana de mulas do Exército carregando munição até a geleira de Siachen, o campo de batalha a 6.096 metros de altitude, 19 quilômetros a sudeste, onde os soldados paquistaneses congelavam em seu perpétuo combate ao Exército indiano. Ele começou a vasculhar a trilha em busca de vestígios. Em qualquer parte ao longo do caminho de volta para Askole teria de encontrar detritos deixados pelos soldados. Mas não encontrou fezes de mula. Nenhuma ponta de cigarro. Nenhuma lata de conserva. Nenhum resto de palha que os condutores carregavam para alimentar os animais. Percebeu que não se parecia com uma trilha, apenas uma senda em meio a um labirinto instável de pedras e gelo, e começou a imaginar como teria chegado àquele lugar. Tentou se concentrar para clarear as ideias. Mas os efeitos da longa exposição à altitude haviam minado sua capacidade de pensar e agir com clareza. Passou uma hora subindo uma encosta de cascalho, para atingir uma posição vantajosa acima das pedras e das geleiras, um local em que pudesse visualizar o ponto de referência que estava procurando, o grande promontório rochoso de Urdukas, que se elevava no Baltoro como um punho de pedra, e arrastar-se de volta até a trilha. Mas ao atingir o topo, sentiu-se exausto. Havia se afastado 12 quilômetros da trilha escalando um vale desértico e, no lusco-fusco, até os contornos dos picos que ele conhecia tão bem pareciam estranhos a partir desse novo ângulo. Sentindo o medo aumentar sob o estupor induzido pela altitude, Mortenson sentou-se para checar o que trazia consigo. Em sua pequena mochila roxa desbotada tinha um cobertor de lã fino do Exército paquistanês, um cantil vazio e apenas uma barra de proteína.

O saco de dormir forrado de plumas, as roupas quentes, a tenda, o fogão, a comida, até mesmo o lampião e todos os fósforos estavam na mochila que o carregador transportava. Ele teria de passar a noite na montanha e procurar a trilha à luz do dia. Embora a temperatura já tivesse caído muito abaixo de zero, não morreria por exposição, ele pensou. Além disso, foi consciencioso o suficiente para saber que caminhar, à noite, sobre uma geleira mutante, onde as fendas se abriam a centenas de metros até depósitos de gelo em lagos subterrâneos, era muito mais perigoso. Retomando o caminho de descida do monte de cascalho, Mortenson procurou um lugar distante o suficiente da encosta da montanha para não ser atingindo por uma queda de rocha durante o sono, e firme o bastante para que não se partisse e o lançasse nas geleiras profundas. Encontrou uma laje que parecia firme, pôs neve no cantil com as mãos nuas, e embrulhou-se no cobertor, tentando não pensar no quão sozinho e exposto ele estava. Seu antebraço estava ferido pelas queimaduras de corda do resgate, e ele sabia que deveria tirar as bandagens de gaze comsangue coagulado e drenar o pus das feridas que não cicatrizariam por causa da altitude, mas não se animou a fazê-lo. Encostando-se em uma rocha inclinada e tremendo de frio, Mortenson viu a última réstia de sol, tingir de vermelho os cumes pontiagudos a leste e depois sumir, deixando imagens recortadas por um tom azul profundo. Cerca de um século antes, Filippo De Filippi, médico e cronista da expedição do duque de Abruzzi ao Karakoram, registrou a desolação que sentira nestas montanhas. Apesar de estar com outros vinte europeus e 260 carregadores locais, que transportavam cadeiras de armar e serviços de prata para o chá, e de terem jornais da Europa entregues a eles regularmente por uma equipe de correios, sentiu-se insignificante diante daquela paisagem. “Um silêncio profundo cobria todo o vale”, ele escreveu, “pesando sobre os nossos espíritos de forma indescritível. Não há nenhum outro lugar no mundo onde o homem se sinta tão só, tão isolado, tão completamente ignorado pela natureza, tão incapaz de comunicar-se com ela”. Talvez tenha sido a experiência de solidão, como a única criança americana entre centenas de africanos, ou as noites que passou a mil metros no alto do Semidomo, emYosemite, no meio de uma escalada de vários dias, mas Mortenson estava despreocupado. Se perguntarem a ele por quê, atribuirá à demência induzida pela altitude. Mas qualquer pessoa que tenha conhecido Mortenson, que o tenha observado convencer um congressista, um filantropo relutante ou um general afegão teimoso, até conseguir liberar fundos de assistência atrasados, uma doação ou a autorização que queria para entrar em territórios tribais, teria compreendido esta noite como mais um exemplo da mente tenaz de Mortenson. O vento se intensificou e a noite tornou-se cristalina e insuportavelmente fria. Ele tentava distinguir os picos à sua volta, mas não conseguia enxergar, tamanha era a escuridão. Depois de uma hora sob o cobertor, pôde amolecer a barra de proteína congelada com o calor do corpo e descongelar gelo suficiente para conseguir beber, o que fez com que tiritasse de frio. Dormir, nesse lugar gélido, parecia totalmente impraticável. Então Mortenson continuou deitado sob a luz das estrelas, perscrutando o céu, e resolveu pensar nas causas de seu fracasso. Os líderes de sua expedição, Dan Mazur e Jonathan Pratt, junto com o alpinista francês, Etienne Fine, eram bem treinados. Ágeis e desenvoltos, herdaram a capacidade genética de se movimentar com técnica naquela altitude. Mortenson era mais lento e forte como um urso. Com 1,95m de altura e pesando 95,5 quilos, frequentou a Faculdade Concórdia do Minnesota, graças a uma bolsa para jogar no time de futebol americano. Embora ninguém tenha dito que deveria ser assim, as escaladas lentas e trabalhosas caíam como uma luva para ele e Darsney.

Por oito vezes, Mortenson serviu de burro de carga, transportando comida, combustível e tubos de oxigênio para diversos esconderijos ao longo do caminho do Corredor Japonês, uma frágil cabana que a expedição montou a 600 metros do cume do K2, suprindo os acampamentos da expedição no alto, de forma que os líderes tivessem os suprimentos no local quando decidissem se deslocar para o topo. Todas as outras expedições na montanha naquela temporada escolheram desafiar o pico de forma tradicional, escalando o caminho feito pela primeira vez há quase um século, a face sudeste da Cadeia Abruzzi do K2. Porém, eles escolheram fazer pela Cadeia Oeste, uma rota muito mais difícil, cheia de minas terrestres com marcos técnicos íngremes, que somente fora escalada com sucesso uma única vez, 12 anos antes, pelo alpinista japonês Eiho Otani e seu companheiro paquistanês Nazir Sabir. Mortenson adorou o desafio e ficou orgulhoso por terem escolhido a rota mais difícil. E a cada vez que alcançava um dos marcos a que se agarravam na Cadeia Oeste, e descarregavam as latas de combustível e os rolos de corda, notava que se sentia mais forte. Ele podia ser lento, mas alcançar o topo começou a parecer inevitável. Certa noite, depois de mais de setenta dias nas montanhas, Mortenson e Darsney retomaram ao acampamento-base, prontos para cair no sono após 96 horas de escalada depois de concluir outra missão de reabastecimento. Todavia, ao olharem pela última vez para o cume através do telescópio logo após anoitecer, Mortenson e Darsney viram uma luz tremeluzindo no alto da Cadeia Oeste do K2. Concluíram que deveriam ser membros da expedição, sinalizando com as lanternas do capacete, e que seu colega francês deveria estar em apuros. — Etienne era um alpiniste — explica Mortenson, destacando com uma pronúncia francesa exagerada o respeito e a arrogância que o termo pode adquirir entre os demais montanhistas. — Ele conseguia viajar rápido e leve com a menor quantidade de bagagem possível. E tivemos de salvá-lo antes, quando subira rápido demais e sem aclimatação. Mortenson e Darsney, duvidando que tivessem forças suficientes para escalar novamente até Fine logo após fazer uma descida exaustiva, chamaram voluntários de cinco outras expedições no acampamento-base. Ninguém se apresentou. Por duas horas ficaram deitados nas tendas descansando e reidratando, depois embalaram as mochilas e voltaram à montanha. Ao descer do Acampamento IV, a 7.600 metros de altitude, Pratt e Mazur corriam risco de vida. — Etienne havia subido para nos acompanhar numa escalada até o topo –explica Mazur. — Mas quando nos alcançou, ele desmaiou. Ao tentar recuperar o fôlego, ele nos disse que ouviu um som rascante nos pulmões. Fine estava com edema pulmonar, um derrame dos pulmões produzido pela altitude que pode matar se não for imediatamente levado até um nível mais baixo. — Foi terrível — diz Mazur. — Etienne estava espumando sangue. Tentamos chamar por socorro, mas havíamos deixado o rádio cair na neve, e este parara de funcionar. Então começamos a descida.

Pratt e Mazur alternavam-se carregando Fine, e descendo-o de rapel pela Cadeia Oeste nos pontos mais íngremes. — Era como pendurar um saco de batatas na ponta de uma corda — explica Mazur. — E tínhamos de fazer isso lentamente para não nos matar também. Com seu eufemismo característico, Mortenson não explica muito sobre as 24 horas que lhe custou subir e alcançar Fine, limitando-se a dizer que foi “um pouco árduo”. — Dan e Jon foram os verdadeiros heróis — responde ele. — Eles desistiram de seguir até o topo para trazer Etienne de volta. Quando Mortenson e Darsney encontraram os companheiros numa encosta de pedra próxima ao Acampamento I, Fine estava semiconsciente, e também com edema cerebral, um inchaço da massa encefálica provocada pela altitude. — Ele não conseguia engolir e tentava tirar as botas — disse Mortenson. Mortenson, que trabalhara como enfermeiro de traumatologia de um pronto-socorro por causa do horário irregular, que era um modo de ter disponibilidade para treinar escaladas, aplicou injeções de Decadron em Fine para fazer o edema ceder, e os quatro alpinistas já exauridos iniciaram uma odisseia que durou 48 horas para arrastá-lo e baixá-lo por encostas de pedras pontiagudas. Mortenson conta que às vezes, Fine, que falava fluentemente inglês, acordava balbuciando em francês. Lembra também que, nos marcos mais técnicos, com o instinto de autopreservação de alpinista adquirido ao longo de toda a sua vida, Fine acordava para tentar manter-se preso à corda e voltava a ficar inconsciente.

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