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A testemunha silenciosa – Otto Lara Resende

Na escola, as aulas me aborreciam. Desenhar com lápis de cor, que era bom, pouco se desenhava. Dona Zélia escrevia números e letras com hastes compridas, difíceis de copiar. Eu mastigava a ponta do lápis, chupava a gola da blusa, olhava pela janela os urubus manobrando no céu alto. Depois do meio-dia, o tempo parava. Ruídos ao longe — a serra da marcenaria, o pregão de um ambulante — e ruídos próximos — a tosse de um menino, o arrastar dos pés no chão — não abafavam a voz dominadora da dona Zélia. — João, acorde! — Eu divagava, o espírito ausente. Na escola, e só para a dona Zélia, eu era João. João Sacramento Neto, bom de assinar caprichando na caligrafia. Filho do boticário João Sacramento Júnior, neto do velho João Sacramento — ambos conhecidos como Juca. Em casa e na rua, eu era o Juquinha. Por extenso, Juquinha do Boticário. Ou Juquinha da Carmela, como acabei mais conhecido. — João, à tabuada. — Eu me levantava, os olhos ofuscados pela claridade lá de fora. Atropelava a tabuada, quanto era sete vezes oito? Respondia errado, não respondia. Os colegas espevitados levantavam o dedo, agitavam a mão no ar e me davam o quinau, com humilhação. Ia direto para o castigo, de pé, a cara contra a parede, os braços cruzados nas costas. Examinava cada uma das rachaduras, sonhava que era um rio correndo, ou uma estrada caminhando para longe. E pedia a Deus que aparecesse uma formiguinha para me distrair. Para fazer um berimbau, bastava uma pena de aço partida ao meio e enfiada numa fresta qualquer. Relegado à última carteira, na modorra da sala o meu berimbau naquela tarde punha no ar vibrações que se prolongavam em dois ou três tons. Olhos atentos, dona Zélia ergueu a cabeça e se encaminhou, devagar, na minha direção. O colega do lado me denunciou porque tinha inveja do melhor berimbau do mundo. A classe quieta e a professora, tensa, cada vez mais perto.


Eu tinha consciência do risco que corria. Não contive, porém, o entusiasmo do artista e toquei mais uma vez o berimbau. Sem pressa, dona Zélia me pegou no fundo da sala e me puxou pela orelha até diante do estrado. Levantou a régua no ar e hesitou. Era preciso primeiro me passar em revista. Eu tentava esconder a blusa manchada de tinta e olhava envergonhado o meu pé descalço, ferido num caco de vidro. A professora consultou o relógio: no mínimo uma hora de prisão depois das aulas. E o castigo ia começar na certa com umas boas reguadas ali à vista de toda a classe. A cara colada contra a parede, na expectativa dos primeiros golpes, de repente a sineta soou lá fora. Não era o toque que anunciava todo dia o fim das aulas. Eram pancadas aflitas e desordenadas. Ninguém duvidava de que alguma coisa estranha estava acontecendo. Um homem alto, desconhecido, entrou na sala com um passo autoritário e conversou baixinho com a dona Zélia. Saiu e deixou umsusto no ar. Mal contendo a emoção, dona Zélia mandou que fôssemos para casa sem parar pelo caminho. Nem depressa demais, nem muito devagar. Lá fora nos dispersamos, cada um para o seu lado. As casas fechadas, as ruas desertas, o silêncio era de pânico. Janelas entreabertas, um ou outro rosto ansioso ousava sondar o que havia. Ninguématinava com a causa da pesada atmosfera de medo que paralisava Lagedo. Só mais tarde, ninguémsabia como, passaram a circular as notícias alarmantes. Em algum lugar, cada vez mais próximo, começava o confronto. Mais um pouco e já se falava de combates. A tropa dos rebeldes vinha vindo e daí a pouco ia conquistar as posições importantes e dominar a cidade. Na Casa da Câmara, o doutor Aristides prometia resistir.

Ia correr sangue na luta fratricida. Livre das mãos da dona Zélia, eu tinha sido salvo pela Revolução. 2 Na casa fechada, trancas e tramelas corridas, foi Zezé quem me ouviu bater à porta. Verificou que não era nenhum estrangulador e me recolheu como se eu tivesse sido salvo de um naufrágio. O fôlego curto para qualquer explicação, mamãe providenciava a resistência da casa ameaçada. Mesas e cadeiras escoravam portas e janelas. Nervoso, meu pai pedia calma e perguntava pelos mantimentos. Até que se decidiu que o melhor era abandonar a fortaleza e partir antes que fosse tarde. Mamãe queria primeiro mandar um recado para as suas freguesas. Deixassem para ter filho depois da Revolução. No quarto, Zezé e Dulce nunca mais acabavam de se pentear. Na canastra da sala, resmungão, vovô calçava as botas com que ia enfrentar o desconhecido. Impaciente, pôs na cabeça a boina preta e se dispôs a sair para a rua. Não conseguiu, porém, vencer os obstáculos. — Vigia só esse pateta — mamãe me agarrou de supetão e me arrastou para o quarto. Com blusa e tudo fui empurrado para dentro da bacia cheia de água pelando. Se eu tivesse que morrer na Revolução, ao menos morresse limpo — e ela me esfregava dos pés à cabeça. Aos arrancos fui posto de pé, para me enxugar. Num átimo eu estava pronto. A cara lambida, na cabeça um boné desencavado de um velho baú, voltei à sala com o ar domingueiro. — Que mané revolução que nada — o velho Sacramento não queria acreditar que os revoltosos estavam chegando. Foi nessa hora que dei com Sanico do Segredinho. Entrou sem ser visto e veio ficar perto de mim. Ia me pôr a par das novidades, mas mamãe explodiu: — Foi buscar a morte para quem não quer morrer? Tendo ido me apanhar na escola, Sanico chegou tarde. Ninguém tinha dúvida de que tinha aproveitado para dar uma volta e entrar de casa em casa, sossegando as famílias assustadas.

— Venha conosco, Sanico — meu pai convidou. — Vou ver de perto a Revolta, seu Juca — Sanico pitava tranquilo o seu cigarro de palha. Apertando a brasa com o dedo mindinho, os seus pequenos olhos azuis estavam mais vivos do que de costume. — Diz que vai ter tiroteio. — Aqui é que você não vai ficar. Vou trancar a casa a sete chaves — mamãe entrou na conversa. — Estou resguardado — Sanico agradeceu, como se lhe oferecessem um favor. Sá Carmela ainda tinha ordens e recomendações quando o carro buzinou em frente. Embarcamos carregados de embrulhos. Com mil cuidados para evitar o inimigo, papai mandou tocar para a farmácia. Sua intenção era lacrar todas as portas. Vovô pediu um tempinho para descer e dar um último recado. Sá Carmela encrespou e assumiu o comando. Com dois ou três toques roucos de buzina, o carro atravessou a cidade calada, as luzes recémacesas. De dentro do carro olhamos Lagedo como se nos despedíssemos de um mundo que ali acabava para sempre. 3 Amontoados dentro do fordeco, tomamos o caminho da chácara. Poucos quilômetros depois a estrada praticamente não existia. O automóvel derrapava, resfolegava, empacava nos mata-burros. Vovô reclamava de não poder esticar as pernas. Mamãe beliscava ora um, ora outro, como se fôssemos culpados por todo aquele transtorno. Mais um pouco e passou a acusar seu Juca de ter exagerado. Quem havia de socorrer as mulheres que estavam prestes a dar à luz? A Revolução não ia fazer mal a uma família pacífica, que não se metia com a vida dos outros. Papai saltava com uma lanterna, ajeitava os paus do mata-burro, erguia as mãos com gestos cabalísticos à luz dos faróis. Dulce dormia no colo de Zezé. Vovô engasgava num acesso de tosse — impossível impedir a entrada do vento que fustigava os nossos rostos cansados e apreensivos.

— Verdadeira tapera — disse mamãe, adivinhando o desmazelo em que tudo se encontrava. Gritou pelas meninas e foi arrumar os trens na cozinha. À luz de um lampião, dependurou a roupa nos quartos. — Estamos a salvo — disse meu pai, despindo o casaco. E mandou que as janelas ficassemfechadas, por causa da friagem. No fundo, temia que um inimigo nos espreitasse. Alguém podia ter vindo no nosso encalço. Meu avô, meu pai e eu dormimos num quarto. No outro, minha mãe e minhas irmãs. Tudo escuro. Os colchões de palha foram estendidos no chão para que as balas rebeldes passassem por cima dos nossos corpos ilesos. Em pouco vovô roncava, gemia, fungava. Várias vezes rolou para fora do colchão. Papai suspirava, os olhos fixos na esteira do teto. Dava para perceber que não dormia. Devia estar pensando na farmácia. Ou quem sabe no doutor Aristides. O chefe político não entregaria os pontos assim à toa. Havia de dar combate aos revoltosos. Tinham de passar sobre o seu cadáver. Eu pensava no Rex. Devia estar vadiando pela rua, ou cochilando nalgum canto. Abandonar o próprio cachorro à própria sorte tinha sido uma maldade. Lá fora os sapos coaxavam. Ouvia o pio de um caburé e custava a dormir.

Passos rondavam a casa, com um barulho suspeito ao lado da cozinha. Nas ruas desertas de Lagedo, o Rex não ia encontrar o que comer. Minha esperança é que Sanico o tivesse encontrado. Que é que estava acontecendo em Lagedo? Que acontecia àquela hora no Brasil? A pátria dividida, o sangue correndo. Tiros de um lado e do outro. Graças a Deus estávamos a salvo. Assim que fechava os olhos, via o seu Juca ao lado do doutor Aristides. Ninguém iria arrombar, impune, as portas da Farmácia Sacramento. Violar a propriedade. Desrespeitar um lar, que era sagrado. Imaginava o meu pai feito herói — o retrato no jornal. A noite transcorreu sem novidades, com uma lua banal vagando no céu. Fui o último a acordar, com o corpo metido num oco do colchão. Vovô e papai tinham deixado o quarto. Não havia temor noturno que resistisse ao esplêndido sol daquela manhã. 4 A chácara à luz do dia tinha um forte cheiro de mato e de frutas maduras. A cozinha de chão batido nunca tinha sido pintada. O picumã pendia das vigas de madeira. No pomar abandonado, algumas galinhas pastavam, soltas. Depois do chiqueiro com cerca de bambu, a calma do córrego. Era bomme esconder do sol no monjolo. Sombrinha fresca, o barulhinho da água, o fubá cheiroso, familiar. A roça, a capoeira, o campo e a sentinela enfadonha dos cupins, com os anus flanando sobre duas ou três reses magras. Havia muito tempo que vovô já não ligava importância à chácara. Decaído de sua condição de fazendeiro, preferiu ir morar com a gente em Lagedo.

O palminho de terra esturricada não lhe dava gosto. A fazendola estava entregue a um preto de carapinha branca. Seu Galdino vegetava por ali com uma mulata mais nova do que ele, a Inácia. Barrigudinhos, pelados, os filhos do casal nos espiavam de longe. — Gente trabalhadeira punha isto aqui um brinco — às voltas com o fogão mamãe, como quemnão quer nada, soltava as suas indiretas. Os olhos vermelhos à beira do fogo, Zezé e Dulce espantavam as galinhas acostumadas a trançar pela cozinha. Esquecido das coisas da roça, papai foi ver se o milho já pendoava. Preocupado comos formigueiros, instruiu seu Galdino sobre isto e aquilo. À tardinha, cansado, sem ânimo, se sentiu prisioneiro da casa sem conforto. Espichou o olhar pela janela e sondou o horizonte. Afiava o ouvido para escutar os passos de gente chegando, o matraquear da fuzilaria, o rebelde rufar dos tambores. Onde teriam se metido os revoltosos? — Devia estar na trincheira com o doutor Aristides — era como se alguém o acusasse de ter desertado. — Deixe de história. Quem não ajuda atrapalha — sá Carmela fazia pouco do marido, que nem ao menos sabia pegar num pau furado. — Não fosse a família — papai, reticente, se deixava aniquilar pelo peso das obrigações. Arrastando as pernas magras pelos arredores da casa, vovô mijava no cupim mais próximo, cuspia nos bacorinhos e ameaçava voltar sozinho para Lagedo. Ia a pé mesmo. Não queria saber da roça, que lhe trazia lembranças e lhe confundia a cabeça. — Esse degenerado não bebe pinga — ele insultava o seu Galdino, que lhe tirava o chapéu, respeitoso. — Matar a sede com água, onde já se viu? — Impaciente, à noite se deitava de roupa e às vezes nem descalçava as botas. Roncava, tossia. — Cambada de vagabundos! Desaforados! Corja de desordeiros! Com a minha mãe excomungando os revoltosos invisíveis, a família ao menos estava unida. Mas não demorou e sá Carmela só pensava em fazer a trouxa e regressar a Lagedo. A imobilidade lhe dava nos nervos. Tinha muito parto para fazer.

O mundo não tinha acabado, nem a vida ia parar. Bastava sentir a força da lua no céu. 5 Para mim era a liberdade, bendita Revolução. Dias sem escola, iluminados pelo sol de outubro. A vadiagem no campo, picão na roupa, gabirobas no mato, longe, à beira de um precipício, o súbito barranco lá onde a erosão devorava a terra. As árvores e a sombra das árvores. Bananeiras de folhas rasgadas ao vento, cheirando a estrume. Mamoeiro, goiabeira, mangueira, jaqueira, o pé de jambo. As surpreendentes amoras, sob a chuva inesperada. Eu correndo da chuva — e a chuva, uma pancada só, de verão, correndo à minha frente. A chuva que não empoça, que não dessedenta a terra crestada. A atmosfera lavada, cheirando a chuva e a poeira, cheirando a terra molhada. O verde escurecido pelos pingos grossos, o verde sob o sol de novo implacável. O campo depois do morro e do pasto, depois da capoeira e do riacho, a perfeita solidão do campo — e de repente a tropa humilde, os burros humildes, o tropeiro humilde, anunciados pelo tímido cincerro da madrinha. O espinho fincado no pé, o pio do gavião flamejante. O fogo no campo ao cair da tarde, as labaredas da queimada, à noite, viajando com pressa à frente do vento. Os porcos de olhos espremidos, os porcos roliços roncando no chiqueiro azedo. Só de maldade espantar do ninho a galinha choca. A galinha botando ovo, o bico aberto no esgar seco para botar. As minhocas úmidas enroscando-se, partidas, na terra úmida. Debaixo do toco, a esquiva lagartixa de susto perdeu a nervosa cauda eletrizada. Pacientemente, fiz, desfiz e refiz com varetas de bambu um alçapão. E valeu a pena, porque peguei o mais lindo sabiá-laranjeira de toda a minha vida. Pena que Sanico não o tivesse visto. A noite me trazia de volta os temores e os fantasmas.

Os bichos que não se mostravam — gambá ladrão de galinha, cobra, morcego, gato-do-mato. Um dia acordei com a algazarra de Zezé e Dulce, agarradas à saia da minha mãe. Vovô queria falar, mas tossia com espalhafato. Papai entrou com o revólver na mão. Podia ter enfrentado um revoltoso. — Uma jaguatirica — disse, seco. — Foi para as profundas do inferno — e se deitou sem olhar para ninguém. — Atirar à toa nessa escuridão — mamãe criticou o espalhafato. Nunca mais vi o seu Juca com uma arma na mão. Pode ter matado a jaguatirica, mas com certeza não conseguiu dormir. Punha tino no que acontecia em Lagedo. Só pensava na Revolução. Tomou horror a arma de fogo. Fez um voto de paz.

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