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A tolice da inteligencia brasileira – Jesse Souza

A realidade social não é visível a olho nu, o que significa que o mundo social não é transparente aos nossos olhos. Afinal, não são apenas os músculos dos olhos que nos permitem ver, existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, “selecionam” e “distorcem” o que os olhos veem, e “escondem” o que não deve ser visto. O leitor pode se perguntar: mas por que alguém faria isso? Por que existiria o interesse em esconder, distorcer ou, como dizemos na vida cotidiana, o interesse em “mentir” sobre como o mundo social realmente é? Ora, como diria o insuspeito Max Weber, os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm “direito” à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio – mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança – necessita ser “legitimado”, ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios. Nas sociedades do passado o privilégio era aberto e religiosamente motivado: alguns tinham“sangue azul” por decisão supostamente divina, o que os legitimava terem acesso a todos os bens e recursos escassos. A sociedade moderna, no entanto, diz de si mesma que superou todos os privilégios injustos. Isso significa que os privilégios injustos de hoje não podem “aparecer” como privilégio, mas sim como, por exemplo, “mérito pessoal” de indivíduos mais capazes, sendo, portanto, supostamente justificável e merecido. É isso que faz com que o mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando dependem do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do “convencimento”, e não da “violência”. Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma “violência simbólica”, 1 perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da “violência física”. É por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro, renda da terra ou aluguel. A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere em grande medida para o bolso do 1% mais rico. Este livro é uma reflexão acerca do que torna possível desigualdade tão abissal e concentração de renda tão grotesca em um país formalmente democrático como o Brasil de hoje. A tese central deste livro é que tamanha “violência simbólica” só é possível pelo sequestro da “inteligência brasileira” para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da “corrupção apenas do Estado”. E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado – concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro –, como o reino da virtude e da eficiência. E em umcontexto no qual não existe fortuna de brasileiro que não tenha sido construída à sombra de financiamentos e privilégios estatais nem corrupção estatal sistemática sem conivência e estímulo do mercado. E também em um cenário em que as classes sociais que mais apoiam essa bandeira como se fosse sua – os extratos conservadores da classe média tradicional e setores ascendentes da nova classe trabalhadora – são precisamente as classes que mais sofrem com os bens e serviços superfaturados e de qualidade duvidosa que o 1% mais rico vende a elas. 2 Indivíduos e classes sociais inteiras têm que, efetivamente, ser feitos de “tolos” para que a reprodução de privilégios tão flagrantemente injustos seja eternizada. Daí ser fundamental compreender como intelectuais e especialistas distorcem o mundo para tornar todo tipo de privilégio injusto em privilégio merecido ou, na maior parte dos casos, privilégio invisível enquanto tal. Os poucos que controlam tudo precisam desses intelectuais e especialistas do mesmo modo que os coronéis de antigamente necessitavam de seu pequeno exército de cangaceiros.


Eles são seu “exército de violência simbólica” assim como os coronéis do passado possuíam seu “exército de violência física”. Não basta aos endinheirados controlar todos os grandes jornais e redes de TV para legitimar seus próprios interesses. Hoje em dia esses interesses precisam ser “justificados” de modo que pareçam “razoáveis” a fim de “convencer” os que são feitos de tolos por essas falsas justificações. Os endinheirados e poderosos têm que ser inteligentes o bastante para criar uma “ciência para seus interesses”, como de fato construíram no Brasil, o que, espero, demonstraremos neste livro para além de qualquer dúvida. Afinal, a “ciência” – e os cientistas e especialistas que a incorporam – é, atualmente, quem herda o “prestígio” das grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é errado. Não existe notícia em jornal ou TV que não necessite do “aval” de um especialista. É por isso que este livro parte da crítica da ciência social conservadora imperante até hoje no Brasil como o fundamento último da dominação material e efetiva – que a grotesca divisão do PIB, ou seja, da riqueza social entre as pessoas, mostra tão bem – das classes do privilégio entre nós. A dominação social material e concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se “justificar” e convencer. E produzir “convencimento” é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado. A ação combinada do “culturalismo conservador” com o “economicismo”, os dois pilares da “inteligência brasileira” que criticaremos neste livro, leva a um extremo empobrecimento do debate político nacional. É preciso sempre levar em conta que, na sociedade contemporânea, a legitimação da dominação social é realizada pela “ciência” de modo semelhante à maneira como as grandes religiões do passado faziam nas sociedades tradicionais. São sempre ideias de intelectuais e especialistas que estão na base de programas de partido político, de planejamento do Estado, do que se ensina em salas de aula, do que se decide em tribunais e daquilo que se publica em jornais. Como a genealogia das ideias dominantes não é realizada ou explicitada, temos a impressão de que as ideias “brotam” espontaneamente. Isso não é verdade. São ideiasforça de intelectuais e especialistas que se conectam a “interesses poderosos” e logram se “institucionalizar” como leitura dominante de toda uma sociedade sobre si mesma. Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização. Na verdade, tanto o culturalismo, com sua generalização da corrupção apenas do Estado como contraposta a um mercado supostamente virtuoso, quanto o economicismo, com sua leitura superficial e simplificadora da realidade, levam a um mesmo resultado. Essas duas leituras dominantes e complementares acarretam uma confusão das hierarquias a respeito das questões mais importantes da sociedade brasileira e uma superficialidade e fragmentação da própria percepção da realidade social. Retira-se dos indivíduos a possibilidade de compreender a totalidade da sociedade e suas reais contradições e conflitos, os quais são substituídos por falsas questões. A fragmentação do conhecimento serve aos interesses dos que estão ganhando na sociedade, já que evitam sua mudança possível. A ação da mudança, a capacidade moral e política de escolher caminhos alternativos pela vontade de intervir no mundo, pressupõe “conhecimento do mundo” para não ser “escolha cega”. É isso que faz com que todo conhecimento fragmentário e superficial seja necessariamente conservador. Ele ajuda a manter e justificar o que já existe. Mostraremos neste livro como essa justificação dos privilégios injustos se faz possível no Brasil pela continuação do culturalismo e do economicismo como leituras dominantes fragmentárias e superficiais de nossa realidade. A “crítica das ideias” dominantes é a primeira trincheira de luta contra os “interesses dominantes” que se perpetuam por se travestirem de supostos interesses de todos.

Esse é precisamente o nosso objetivo neste livro: apelar para a inteligência viva daqueles que foramfeitos de tolos, ou seja, todos nós, vítimas de uma violência simbólica bem perpetrada. Nosso compromisso e desafio é fazê-lo de tal modo que qualquer leitor de boa vontade – que ama a verdade e percebe o esforço que sua conquista envolve – possa compreendê-lo. Ainda que a desconstrução do senso comum seja um desafio não só cognitivo, mas também emotivo – afinal, são visões de mundo que nos acostumamos a perceber como “nossas” –, nosso empenho foi eliminar do texto todo e qualquer vocabulário “técnico” dispensável. Normalmente a linguagemtécnica dos especialistas só serve para criar um abismo entre estes e leigos, para proteger e “distinguir” o especialista dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do conhecimento como mero “fetiche” do mesmo modo que se utiliza o dinheiro na vida social: para “comprar” reconhecimento e legitimar privilégios. Nosso esforço, ao contrário, foi utilizar o conhecimento como “arma de combate”, para rearmar o cidadão que foi destituído das precondições para entender seu cotidiano e as lutas sociais, nas quais se encontra inserido sem o saber, para torná-lo sujeito de seu destino. O pressuposto é que as pessoas que foram feitas de “tolas” podem ser tão inteligentes na política quanto o são nas outras esferas da vida cotidiana e estão aptas a recuperar o que lhes foi tomado: a capacidade de refletir e julgar com autonomia e independência. 1 Esta é uma noção do sociólogo francês Pierre Bourdieu para se diferenciar da noção de “ideologia” em Marx e enfatizar o trabalho da dominação social como tendo seu núcleo na tentativa de fazer o dominado aceitar por “convencimento” as razões da própria dominação. 2 Os serviços de telefonia celular no Brasil é um excelente exemplo que pode ser multiplicado para vários setores. Ramo privatizado no governo FHC em nome da “eficiência do mercado”, apresenta uma das taxas de preço mais altas do mundo para um serviço de péssima qualidade e campeão de reclamações do PROCOM – em 2013, era um total de 172.000 reclamações. (Ver https://www.y outube.com/watch?v=PeBgppmiAKU). O mesmo acontece com o mercado automotivo: o preço que o brasileiro paga pelo automóvel chega a ser três vezes maior que nos outros países. (Ver http://www.noticiasautomotivas.com.br/lucro-brasil-faz-o-consumidor-pagar-o-carro-mais-caro-do-mundo/). PARTE I CAPÍTULO 1 A falsa ciência Max Weber e o Brasil: ou como o “racismo científico” da sociologia moderna é “engolido” e transformado em pensamento social brasileiro. OS SERES HUMANOS são animais que se interpretam. 3 Isso significa que não existe “comportamento automático”, este é sempre influenciado por uma “forma específica de interpretar e compreender a vida”. Essas interpretações que guiam nossas escolhas na vida foram obras de profetas religiosos no passado. Nos últimos duzentos anos essas interpretações, que explicam o mundo e nos dizem como devemos agir nele, foram obras de intelectuais seculares. O mais importante desses intelectuais no Ocidente moderno foi – juntamente com Karl Marx – o sociólogo alemão Max Weber. Afinal, foi da pena de Weber que se originou a forma predominante como todo o Ocidente moderno se autointerpreta e se legitima.

As ideias dominantes que circulam na imprensa, nas salas de aula, nas discussões parlamentares, nas conversas de botequim – em todo lugar – são sempre formas mais simplificadas de ideias produzidas por grandes pensadores. Daí a importância de recuperar o sentido original dessas ideias que são tão relevantes para nossas vidas ainda que, normalmente, não nos demos conta disso. Afinal, a ciência herda o prestígio da religião no contexto pré-moderno e assume, em boa parte, pelo menos, o papel de explicar o mundo moderno. Não existe tema que seja discutido na esfera pública de qualquer sociedade moderna que não invoque a “palavra do especialista” que fala pela ciência. Assim, o potencial da ciência de produzir efetivo aprendizado individual e coletivo está ligado e muitas vezes decisivamente condicionado, por força de seu prestígio público, a servir de instância legitimadora e primeira e decisiva trincheira da luta social e política pela definição legítima de “boa vida” e “sociedade justa”. Em outras palavras: não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem. Talvez o uso de Max Weber e sua obra seja um dos exemplos mais significativos do caráter bifronte da ciência: tanto como mecanismo de esclarecimento do mundo quanto como mecanismo de encobrimento das relações de poder que permitem a reprodução de privilégios injustos de toda espécie. É um atestado da singular posição que Weber ocupa no horizonte das ciências sociais perceber que, precisamente por ter captado a “ambiguidade constitutiva” do racionalismo singular ao Ocidente, 4 ele tenha formulado os dois diagnósticos da época mais importantes para a autocompreensão do Ocidente até nossos dias: uma concepção liberal, afirmativa e triunfalista do racionalismo ocidental; e uma concepção crítica extremamente influente desse mesmo racionalismo, que procura mostrar sua superficial e unidimensionalidade. Para a versão liberal e afirmativa, Weber fornece, por um lado, sua análise da “revolução simbólica” do protestantismo ascético; para ele, a efetiva revolução moderna, na medida em que transformou a “consciência” dos indivíduos e, a partir daí, a realidade externa, é a figura do protestante ascético, que com vontade férrea e armas da disciplina e do autocontrole cria o fundamento histórico para a noção do “sujeito moderno”. É esta ideia que gera a noção moderna de “personalidade” enquanto entidade percebida como um todo unitário com fins e motivos conscientes e refletidos. Essa ideia é o fundamento da noção de “liberalismo moderno”, uma espécie de “religião secular” da época, sendo a base de toda a ética e toda a lógica, seja na dimensão institucional, seja na individual. A grande maioria das versões apologéticas do “sujeito liberal” nutre-se com fundamento empírico na história da pujança econômica e política norte-americana, em maior ou menor grau, na figura do pioneiro protestante weberiano. Além disso, por outro lado, é Weber quem reconstrói sistematicamente a lógica de funcionamento tanto do mercado competitivo capitalista quanto do Estado racional centralizado, de modo a percebê-los como instituições cuja eficiência e “racionalidade” não teriam comparação. Ainda que a perspectiva liberal apologética se restrinja ao elogio do mercado, confluem, aqui, os aspectos subjetivos e objetivos (institucionais) que fundamentam, de modo convincente, a afirmação do “dado”, ou seja, do mundo como ele é. Mas Weber, e nisso reside sua influência e atualidade extraordinárias, também compreendia, no entanto, o lado sombrio do racionalismo ocidental. Se o pioneiro protestante ainda possuía perspectivas éticas na sua conduta, seu “filho” e, muito especialmente, seu “neto”, habitante do mundo secularizado, são percebidos por Weber de modo bastante diferente. Para descrevê-los, Weber utiliza dois “tipos ideais”, ou seja, modelos abstratos – neste caso, modelos abstratos de condução de vida individual, os quais se encontram sempre misturados em proporções diversas na realidade empírica concreta. Esses “tipos ideais” que explicam o indivíduo típico moderno para Weber são, por um lado, o “especialista sem espírito”, que tudo conhece sobre seu pequeno mundo de atividade e nada sabe (nem quer saber) acerca de contextos mais amplos que determinam seu pequeno mundo, e, por outro, o “homem do prazer sem coração”, que tende a amesquinhar seu mundo sentimental e emotivo à busca de prazeres momentâneos e imediatos. 5 Se a primeira leitura fornece o estofo para a apologia liberal do mercado e do sujeito percebido como independente da sociedade e de valores supraindividuais, a segunda marcou profundamente toda a reflexão crítica da sociedade moderna até nossos dias. A percepção do indivíduo moderno como suporte das ilusões da independência absoluta e da própria perfeição narcísica (quando, na verdade, realiza sem saber todas as virtualidades de uma razão instrumental que termina em consumismo e conformismo político) está na base de grande parte das vertentes críticas mais influentes do século XX. 6 Neste primeiro capítulo, nosso interesse é examinar de perto o elemento apologético e o uso do prestígio científico weberiano para a afirmação de uma visão distorcida, conformista e superficial da realidade. Minha tese é a de que a própria construção de uma oposição substancial entre sociedades avançadas do centro – Europa ocidental e Estados Unidos – e sociedades atrasadas da periferia – por exemplo, as sociedades latino-americanas – foi feita, pelo menos na versão mais “moderna” e “culturalista”, em grande medida com base nas categorias weberianas. Nesse sentido, as categorias científicas são utilizadas “por debaixo do pano”, ou seja, semque seu real caráter fique efetivamente explícito, como justificação de uma violência simbólica que, ao fim e ao cabo, funciona como uma espécie de “equivalente funcional” do racismo. Estou consciente de que a aproximação entre “racismo” e “ciência” provoca desagrado a certos espíritos delicados. Talvez o desagrado seja, como quase sempre, simplesmente o “sintoma” de um problema real.

Afinal, para o mesmo Weber que estamos discutindo, os ricos e felizes não querem apenas ser ricos e felizes, mas também ter o “direito” de ser ricos e felizes. O aspecto que mais caracteriza Weber como pensador crítico é precisamente sua atenção aos processos que “legitimam” o poder social fático e o tornam “sagrado” – no contexto das grandes religiões analisadas por Weber – e “científico”, ou seja, o equivalente a “sagrado” no mundo desencantado de hoje.

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