Arthur “Artie” Kingfisher — doze anos, magro feito um palito e nem de longe bronzeado o bastante para uma criança no fim do verão — tinha acabado de matar Caladirth, uma dragoa verde com rubis afiados no lugar dos dentes e espirais douradas como chifres. Um dos chifres estava agora despedaçado no chão como um cabo de vassoura quebrado. Artie achou que era um bom ponto fraco. De verdade: todos no Outro Mundo sabiam que era sempre melhor evitar chifres de dragão. A fera estava aos pés de Artie, seu sangue laranja escorrendo do chifre quebrado. A caverna de repente parecia vazia, o que é curioso se pensarmos que havia ali um dragão morto de dez toneladas, três enormes ovos de dragão negro e um vasto e reluzente tesouro que mal caberia nas bolsas vazias que Artie trazia nos ombros. Ele tinha muito a fazer. Artie se abaixou no chão e examinou seu machado de dois gumes, que se chamava Qwon, para avaliar os estragos. A arma estava um pouco arranhada, mas nada que não pudesse ser consertado pelo ferreiro da cidade. Ele soltou um longo suspiro. Sentia-se satisfeito e completamente exausto. Não haveria nenhuma nova missão por enquanto. Ele fechou os olhos e avaliou sua condição física. Estava inteiro mas suava um pouco, embora o ar ao seu redor estivesse bem frio. Os únicos sons eram sua respiração, os pequenos pingos da água gotejante e o crepitar das tochas. Após o alvoroço da batalha, ele sentiu-se muito solitário de repente. Mas então começou a sentir um formigamento familiar no pescoço, como se estivessem lhe fazendo cócegas com penas. Artie sempre sabia quando sua irmã estava a uns três ou quatro metros dele, e naquele momento Kay vinha rastejando para a caverna subterrânea, tentando alcançá-lo. Uma imagem se formou nitidamente na mente dele: o longo cabelo vermelho dela puxado para trás em um rabo de cavalo, e ela vestindo uma calça cargo e aquela camiseta azul com a estampa de um gnomo de jardim lutando caratê. Ele sabia, sem nem olhar, que Kay imaginava que teria uma chance real de enfim assustá-lo. Era previsível. Artie sabia que ela sabia que ele sabia que ela iria tentar assustá-lo. Os dois tinham passado grande parte da infância fazendo essa brincadeira, e mesmo assim nunca funcionara. Eles sempre sabiam. — A-há! Peguei você! — falou Kay em um impulso, enquanto o empurrava com força mas de brincadeira pelas costas, derrubando os óculos de realidade virtual 3D do rosto dele.
Artie ofegou, e Kay ficou espantada ao ver que o irmão estava suando. Ela perguntou: — Espere… peguei mesmo? Ele enxugou a testa com as costas da mão e sorriu. — É claro que não. Faz uns trinta segundos que eu senti você chegando. Ele pegou o controle do Xbox e pausou o jogo pelo qual estava obcecado desde que o ganhara de presente de aniversário, em abril: Outro Mundo. — Faz uns trinta segundos que eu senti você chegando — imitou Kay. — Até parece, garotão. Peguei você, sim. — Não. — Até parece. Kay, que já tinha treze anos e a absurda altura de um metro e oitenta, com braços e pernas que pareciam os de um louva-a-deus, passou por Artie e foi para a sala de jogos. — O que você está fazendo? — quis saber ela. O video game que Artie vinha jogando, de óculos, estava duplicado na TV presa à parede. Ao ver o dragão caído sangrando pelo chifre dourado, Kay gritou: — Artie! Você conseguiu? — Ela inclinou-se mais perto da tela. — Caramba! Você conseguiu mesmo! — Virou-se para Artie e abriu um sorriso radiante, com brilho nos seus olhos fantásticos e incomuns: um era azul-celeste e o outro, verde-bandeira. — Como descobriu um jeito de matar essa dragoa? Como? Como? Ela agarrou Artie pelos ombros e lhe deu um rápido abraço. Artie e Kay eram bem próximos, tanto quanto um garoto de doze anos e a irmã de treze podem ser — principalmente considerando que, por alguma razão, eles sempre compartilharam o nível de percepção extrassensorial comum a gêmeos idênticos, o que era ainda mais estranho, já que Artie era adotado. Ele ficou contente em receber o apoio de Kay. Em geral, o que acontecia era o contrário. Kay era muito boa quando se tratava de jogos — ou de qualquer outra coisa, aliás. Não era tão boa quanto Artie jogando Outro Mundo, mas era tão habilidosa em Call of Duty e Fallout que já ganhara uns cinco mil em torneios de video game. Artie tinha certeza de que ela conseguiria mais uma vitória na semana seguinte, quando o pai deles, Kynder, os levaria até um enorme torneio no qual Kay iria competir. Artie colocou o controle e os óculos no chão e deu um impulso para se levantar. Tomou um gole de Mountain Dew de uma garrafa de plástico sem rótulo e contou à irmã como tinha vencido. Resumindo, depois de muitas tentativas, tinha dado sorte.
Conseguira levar seu mago-guerreiro —Mentecapto, o Cinzento — para um canto no alto da parede direita da caverna. A dragoa sabia que Mentecapto estava ali, mas não o atacava porque naquele canto estavam três ovos de dragão negro. Basicamente, Artie os estava usando como escudo, e ela não ousaria sacrificar seus dragõezinhos apenas para acabar com Mentecapto. A dragoa não estava gostando nada daquilo e fez uma grande dança na frente de Mentecapto, balançando a cabeça para a frente e para trás e batendo a cauda no chão, mas Artie não teve medo. Só estava muito frustrado por não conseguir matar a dragoa, por mais que tentasse. Então resolveu soltar outra bola de fogo. Era o encanto mais forte que tinha. No entanto, ele se confundiu na hora de apertar o botão e acabou ativando o comando de “Encontrar Item”, que revelava o item mágico mais poderoso por perto dentre aqueles ainda não conquistados. Os chifres de Caladirth imediatamente adquiriram uma aura avermelhada. — Primeiro pensei que, se eu conseguisse matá-la, seria bem maneiro ter uma espada feita com os chifres dela, mas aí tive uma ideia — explicou Artie. — Foi como uma inspiração, sei lá. Só para confirmar, apertei o “Encontrar Item” novamente e não restava dúvida: os chifres voltaram a brilhar. Então, mudei para o combate corpo a corpo, mirei nos chifres e coloquei o Qwon em ação. Assim que acertei o golpe, ela gritou e caiu. E foi isso. Kay estava com o olhar fixo e balançava a cabeça. — Uau. Os chifres. Quem diria? — disse ela, pegando o refrigerante das mãos do irmão e tomando três grandes goles. Ela então deu de ombros e comentou: — Você tem que entrar nos fóruns e avisar isso aos diretores da Coca-Cola. Artie nunca conseguira descobrir o motivo, mas, para Kay, diretores da Coca-Cola significava “nerds”. — Qual é, Kay, você sabe que eu odeio fóruns de jogos. — Sim, sim, “gamer purista” e tal. Nunca usar detonados. Mas caramba, Artie.
Você merece a fama. Vá se exibir um pouco! Fácil para ela dizer. Artie adorava a irmã, mas a verdade é que os dois eram bem diferentes. Ela era ótima em video games, excelente corredora, ex-estrela da liga infantil de beisebol, aluna nota dez, e também sabia dançar — em outras palavras, superdescolada. Ele, por outro lado, era umjogador mais ou menos, franzino, saco de pancadas peso leve, ímã de valentões, aluno nota sete, nunca tinha dançado e só era um pouco maneiro por ter uma irmã muito legal. Mas a principal razão para Artie não gostar de atenção era Frankie Finkelstein. Anos suportando o ódio de Frankie Finkelstein tinham ensinado a Artie que o melhor era ser discreto. Se Artie não ficasse completamente na dele, Finkelstein encontrava diversas oportunidades para socá-lo, chutá-lo, empurrá-lo, xingá-lo e lhe dar cascudos e chaves de braço. E tudo isso era um saco. No entanto, conforme essas coisas passavam pela cabeça de Artie, ele percebia que a irmã provavelmente estava certa. Ele tinha matado Caladirth afinal, oras! Por que não se gabar umpouquinho? Artie olhou para Kay e disse: — Sim, está bem. Acho que vou fazer isso, sim. — Ótimo! — falou ela, com a voz aguda. — Mas não agora, garotão. Primeiro nós dois temos que ajudar Kynder no quintal. — Ah, é. Assim, Artie e Kay subiram as escadas e entraram na cozinha. Artie enroscou a tampinha do refrigerante e o escondeu no fundo da geladeira. Kynder não aprovava refrigerantes e nutria um ódio especial por Mountain Dew, dizendo sempre que aquilo ia “literalmente transformá-lo em um viciado em drogas”, embora esse efeito ainda não tivesse sido provocado em Artie, mesmo depois de três anos bebendo o refrigerante (ele só ganhara seis cáries). Em seguida, os dois foram para o quintal, caminhando na direção da pequena horta que, depois dos filhos, era o grande orgulho de Kynder. Kynder também era alto, magro e ruivo. Seus olhos eram castanho-claros e ele tinha um bigode bem-cuidado que dava ao seu nariz reto a aparência de um T invertido, e em seu rosto repousavamgrandes óculos quadrados que talvez — talvez — tivessem sido maneiros na década de 1980. Ele ainda estava com o ridículo shortinho de corrida que usava em seu cooper matinal, mas tinha substituído os tênis por um par de galochas verdes que deviam estar derretendo seus pés, já que a temperatura do lado de fora quase chegava aos trinta e dois graus. Sim, Kynder também era diretor da Coca-Cola, como diria Kay. Um nerd modesto, bem de vida e semiaposentado, adorado pelos filhos.
— Ei, crianças, terminaram de praticar? Por incrível que pareça, era assim que eles se referiam a jogar video game na casa dos Kingfisher. — Sim. O sinistrão aqui finalmente matou Caladirth. — Jura? Que legal, Arthur! Você vinha tentando isso desde o dia em que levou um beijo na bochecha da Qwon, né? Era assim que o último dia do sexto ano ficaria eternamente conhecido na casa dos Kingfisher, e Kay e Kynder vinham provocando Artie desde então. Artie não fazia ideia de como o pai sabia que Qwon — não o machado de guerra virtual, mas a menina da escola que dera nome ao objeto — o tinha beijado, mas o fato é que ele sabia. — Legal ter se lembrado disso, sabichão — gracejou Kay. — Ah, calem a boca vocês dois — resmungou Artie. Ele sentou-se perto dos tomates e começou a arrancar ervas daninhas do solo, imaginando o que aconteceria a seguir naquele jogo louco que ele tanto adorava. DE COMO ARTIE É CONTATADO POR SEU HUMILDE CRIADO Artie, Kay e Kynder moravam em uma casa amarela de madeira na rua Castleman, emShadyside, Pensilvânia, cerca de cinco quilômetros do centro de Pittsburgh. Tanto Kay quanto Artie chamavam o pai pelo primeiro nome desde que tinham em torno de oito anos. Isso foi na época emque Artie descobriu que era adotado, e, embora Kynder fosse o único pai que ele já conhecera, o menino parou de chamá-lo assim e começou a chamá-lo pelo nome. Poucos meses depois, Kay passou a fazer o mesmo. Kynder achou que era uma idiossincrasia divertida e gostou, por isso nunca insistiu em ser chamado de pai, papai ou qualquer coisa do tipo. A mãe de Kay abandonou a família quando a filha tinha três anos e Artie dois, sendo que ele foi adotado com exatos um ano e três dias. Kynder pouco falava sobre a esposa e nunca comentara o motivo pelo qual ela fora embora. Artie nem sequer sabia o nome dela, e a irmã nunca chegara a dividir a informação com ele. Quando o assunto era a mãe, Kay nunca compartilhava nada comArtie. Bem, todas as crianças têm segredos, não é mesmo? Até mesmo irmãs como Kay. Naquela noite, depois do jantar, Artie entrou no fórum do Outro Mundo para contar seu segredinho. Ele começou um novo tópico chamado “matei Caladirth s/ detonado” e esperou. Alguns minutos depois, havia dezenas de posts parabenizando-o. Ele leu todos, cheio de orgulho. Artie pensou que devia ser isso que Kay sentia. A maioria dos posts era de membros registrados, mas parte era de usuários anônimos, e alguns eram trolls. Um deles chamou Artie de fracote por ter escolhido um personagem mago-guerreiro.
Aparentemente o rapaz tinha algo contra magos-guerreiros. Artie não deu a menor importância. Quem fazia esse tipo de coisa era idiota. Artie estava prestes a se desconectar e ir para o quarto quando uma atualização automática da página mostrou um post intitulado “Easter egg de Arthur”. Curioso, ele clicou duas vezes no tópico. Lá dizia: Arthur, você precisa encontrar o seu Easter egg esta noite. Procure no lugar mais óbvio. – SrP Todos que já jogaram video game para valer sabem o que é um Easter egg: é um segredo, geralmente uma brincadeira, que fica escondido no meio do jogo, mais ou menos como… bem, como um ovo de Páscoa. Por mais difícil que fosse encontrá-los — normalmente é preciso procurar na Internet para ter alguma chance de conseguir isso —, eles estavam disponíveis para todos os jogadores. Como Arthur poderia ter o seu próprio Easter egg no Outro Mundo? Também era estranho o fato de o post de SrP ser privado — somente Artie podia lê-lo. Artie clicou no botão “responder” e simplesmente escreveu: “Hã?” Em vinte segundos veio a resposta: Arthur, já começou. Encontre seu ovo. Está com Caladirth. Você precisa fazer isso. Já falei mais do que deveria. Vá em busca de seu ovo, e de seu destino. – SrP Mas de que diabos aquele cara estava falando? Artie tinha um destino? Em um jogo de video game? Isso era estranho demais para se ignorar. Artie saiu do fórum e desceu correndo até a sala de jogos. Ligou a TV, pegou o controle e retomou o jogo. Com a trilha sonora saindo das caixas de som ao fundo, ele levou Mentecapto, o Cinzento, de um canto do covil de Caladirth para o outro, à procura de algo fora do comum, mas não viu nada. Vasculhou a pilha de tesouros. Era uma bela pilhagem, o que o animou a continuar jogando, mas nada parecia especial. Procure no lugar mais óbvio, dizia a mensagem. O lugar mais óbvio… o lugar mais óbvio… Os ovos! Artie conduziu Mentecapto até os três ovos grandes e escuros de dragão. Mentecapto pegou um —nada de estranho — e o colocou de volta no lugar.
Em seguida, pegou outro e o virou. Na parte de baixo, dizia: “Abra-me.” Artie sacudiu a cabeça e fez o personagem atirar o ovo no chão, o que o fez explodir em uma neblina cor de laranja cintilante. Dentro não havia nenhum filhote de dragão morto nem restos grudentos de clara de ovo — apenas pó. Mas então o pó assentou, e ali, aconchegada na parte interna de um pedaço da casca, havia uma mensagem. Mentecapto a pegou e foi para o modo Inspecionar Item. Artie foi tomado pelo nervosismo. A mensagem dizia: “Arthur. Em uma semana você virá até mim na TI. Você é especial, Arthur, e necessito de seus serviços e poder. Espero por você há muito tempo. Seu humilde criado, M.” Espere. Ele era especial? E tinha um criado? Um criado humilde? O quê? Artie ficou parado por dois minutos. Estava meio tonto. O controle escorregou de suas mãos e caiu no chão, o que fez Artie acordar do devaneio. Ele voltou a ler a mensagem. O que estava acontecendo? Ficou assustado de repente, como se Finkelstein estivesse avançando na direção dele com um bastão de beisebol e sem dinheiro para o almoço. Ele desligou o jogo, correu para o quarto e se enfiou sob as cobertas, e lá concluiu que, sim, ele acabara de levar um trote; era apenas coincidência seu nome ser Arthur e haver um Easter egg no Outro Mundo endereçado a alguém que se chamava assim. Sim, era isso. Uma coincidência. Por fim, Artie caiu em um sono inquieto
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