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A Torre Proibida – Marion Zimmer Bradley

Damon Ridenow cavalgava por uma terra vazia. Durante a maior parte do ano, o grande platô das colinas Kilghard estivera sob a influência maligna dos homens-gatos. As colheitas murchavam nos campos, sob a escuridão anormal, que bloqueava a luz do sol; os pobres habitantes do distrito se refugiavam em suas casas, com medo de se arriscarem a sair. Mas agora os homens voltavam a trabalhar à luz do grande sol vermelho de Darkover, acumulando as colheitas contra as nevascas iminentes. Era o início do outono, e quase tudo já fora colhido. O Grande Gato fora morto nas cavernas de Corresanti, e a grande matriz ilegal, que ele descobrira e usara de maneira tão terrível, também fora destruída. Os homens-gatos sobreviventes haviam fugido para as florestas distantes, além das montanhas, ou tombado sob as espadas dos guardas que Damon enviara para desbaratá-los. A terra se achava agora livre do terror, e Damon, a maior parte do seu exército dispensada, agora voltava para casa. Não para sua propriedade ancestral de Serrais; era um filho mais moço, não estava destinado a ser o herdeiro, e jamais sentira Serrais como seu lar. Em vez disso, seguia para Armida, onde se casaria. Parando o cavalo à beira da estrada, ele observou os últimos homens se separarem. Havia guardas em uniformes preto e verde que iriam para Thendara; uns poucos homens, dos Domínios de Ardais e Hastur, seguiriam para o norte, até as Hellers; e outros viajariam para o sul, até as planícies de Valeron. ― Deveria falar aos homens, Lorde Damon — sugeriu um homem baixo, ao lado de Damon. ― Não sou muito bom em fazer discursos. Damon era franzino, com o rosto de um homem dedicado aos estudos. Até aquela campanha, nunca se imaginara um soldado, e ainda sentia-se surpreso consigo mesmo por ter comandado compleno êxito aqueles homens, contra os remanescentes dos homens-gatos {1} . ― Eles esperam, Lorde — insistiu Eduin. Damon suspirou, sabendo que era verdade. Afinal, era um Comyn dos Domínios; não um Lorde de um Domínio, nem um herdeiro Comyn, mas ainda assim um Comyn, da velha casta de telepatas, com poderes psíquicos, que governava os Domínios desde tempos imemoriais. Já haviam passado os dias em que aqueles do Comyn eram tratados como deuses vivos, mas ainda persistia o respeito, quase reverência. E Damon fora treinado para as responsabilidades de um filho do Comyn. Suspirando de novo, ele conduziu o cavalo para um ponto em que todos os homens à espera poderiamvê-lo. ― Nosso trabalho está feito. Graças a vocês, que atenderam ao meu chamado, reina a paz nas colinas Kilghard e em nossos lares. Só me resta apresentar-lhes meus agradecimentos e minhas despedidas.


O jovem oficial que trouxera os homens de Thendara aproximou-se de Damon, enquanto os outros se afastavam. ― Lorde Alton cavalgará para Thendara conosco? Devemos aguardá-lo? ― Teria de esperar muito tempo — respondeu Damon. — Ele foi ferido na primeira batalha com os homens-gatos, um ferimento pequeno, mas a espinha teve uma lesão além da cura. Ficou paralisado da cintura para baixo. Acho que ele nunca mais tornará a cavalgar para parte alguma. O jovem oficial mostrou-se apreensivo. ― Quem vai comandar a Guarda agora? Era uma indagação procedente. O comando da Guarda pertencia ao Domínio de Alton por gerações; Esteban Lanart de Armida, Lorde Alton, a comandara por muitos anos. Mas o filho sobrevivente mais velho de Dom Esteban, Lorde Domenic, tinha apenas dezessete anos. Embora umhomem pela lei dos Domínios, não tinha idade nem autoridade para comandar. O outro filho Alton, o pequeno Valdir, era um garoto de onze anos, noviço no mosteiro de Nevarsin, estudando sob a orientação dos irmãos de São-Valentim-das-Neves. Então quem comandaria os guardas. Era uma pergunta da maior importância, pensou Damon, mas ele não sabia a resposta. E declarou: ― Caberá ao Conselho do Comyn decidir, quando se reunir no próximo verão, em Thendara. Nunca houvera guerra em Darkover durante o inverno; e nunca haveria. No inverno, havia uminimigo mais implacável, o frio cruel, com nevascas terríveis se abatendo sobre os Domínios, vindas das Hellers. Nenhum exército poderia se deslocar para atacar os Domínios durante o inverno. Até os salteadores mantinham-se perto de suas casas. Podiam esperar que a próxima sessão do Conselho escolhesse um novo comandante. Damon mudou de assunto. ― Pretende alcançar Thendara ao cair da noite? ― A menos que alguma coisa nos atrase no caminho. ― Então não permita que eu os retarde. — Damon fez uma mesura. — O comando desses homens é seu, parente. O jovem oficial não pôde disfarçar um sorriso.

Ainda era muito jovem, e aquele era seu primeiro comando, embora breve e temporário. Damon observou-o, com um sorriso pensativo, enquanto ele reunia seus homens e se afastava. Era um oficial nato, e com Dom Esteban incapacitado, os oficiais competentes podiam esperar promoções. Damon, embora tivesse comandado aquela missão, nunca se imaginara um soldado. Como todos os filhos do Comyn, servira no corpo de cadetes e tivera seu período como oficial, mas seus talentos e ambições se voltavam para outro lado. Aos dezessete anos fora admitido na Torre de Arilinn como um telepata, para ser treinado nas antigas ciências da matriz de Darkover. Por muitos e muitos anos trabalhara ali, desenvolvendo-se em força e habilidade, até se tornar um técnico psíquico. E depois fora dispensado da torre. Não por culpa sua, a Guardiã lhe assegurara, mas porque era sensitivo demais, a tal ponto que sua saúde e até a sanidade poderiam ser destruídas sob as tremendas pressões do trabalho com a matriz. Rebelado mas obediente, Damon fora embora. A palavra de uma Guardiã era lei, nunca se devia questionar ou resistir. Sua vida desmantelada, as ambições arruinadas, tentara construir uma nova vida na Guarda, embora não fosse um soldado e soubesse disso. Fora mestre de cadetes por algumtempo, depois oficial de hospital e oficial de suprimentos. E naquela última campanha, contra os homens-gatos, aprendera a agir com confiança. Mas não sentia o menor desejo de comandar, renunciava agora ao posto com a maior satisfação. Ficou observando os homens se afastarem, até que as formas sumiram na poeira da estrada. Agora, seguiria para Armida… ― Lorde Damon — disse Eduin, ao seu lado -, há cavaleiros na estrada. ― Viajantes? Nesta época? Parecia impossível. As neves mais fortes do inverno ainda não haviam começado, mas a qualquer dia agora a primeira grande tempestade viria das Hellers, bloqueando as estradas por dias a fio. Havia um velho ditado: Só os loucos ou os desesperados viajam no inverno. Damon contraiu os olhos para divisar os cavaleiros distantes, mas era um tanto míope desde a infância, e só pôde avistar sombras indefinidas. ― Seus olhos são melhores do que os meus, Eduin. Acha que são homens armados? ― Não creio, Lorde Damon: há uma dama viajando com eles. ― Nesta época? Parece bastante improvável. O que poderia levar uma mulher a partir numa viagem incerta, na iminência do inverno? ― É um estandarte Hastur, Lorde Damon.

Só que Lorde Hastur e sua dama não deixariam Thendara neste momento. E se por algum motivo tivessem de ir para o Castelo Hastur, não seguiriam por esta estrada. Não consigo entender. Antes mesmo que ele acabasse de falar, Damon já sabia a identidade da mulher que viajava com a pequena escolta de guardas. Apenas uma mulher em Darkover viajaria sozinha sob o estandarte de Hastur, e apenas uma Hastur teria motivos para viajar assim. ― É a Dama de Arilinn — disse ele finalmente-, relutante, e viu o rosto de Eduin se iluminar em espanto e respeito. Leonie Hastur. Leonie de Arilinn, Guardiã da Torre de Arilinn. Damon sabia que, por cortesia, deveria ir ao encontro de sua parenta, para lhe dar as boas-vindas, mas permaneceu onde estava, imóvel em cima do cavalo, fazendo um esforço para se controlar. O tempo parecia ter-se desvanecido. Num recesso intemporal de sua mente, um Damon mais jovem se descobriu diante da Guardiã de Arelinn, de cabeça baixa, ouvindo as palavras que destruíram sua vida: ― Não é que você tenha falhado ou me desagradado. Mas é sensitivo demais para este trabalho, vulnerável demais. Se tivesse nascido mulher, seria uma Guardiã. Mas do jeito que são as coisas… Há anos que o venho observando. Deve nos deixar, Damon, para o seu próprio bem. Damon partira sem protestos, pois tinha um sentimento de culpa. Amara Leonie, amara-a com a paixão desesperada de um jovem solitário, mas amara de uma forma casta, sem uma única palavra ou contato. Pois Leonie, como todas as Guardiãs, tinha um compromisso com a virgindade, nunca deveria ser olhada com algum pensamento sensual, nunca deveria ser tocada por qualquer homem. Leonie descobrira isso de algum modo, temera que ele poderia um dia perder o controle e abordá-la — mesmo que fosse apenas em pensamento — de um jeito que nenhuma Guardiã podia ser abordada? Abalado, Damon fugira. Parecia agora, anos depois, que uma vida inteira se estendia entre o jovem Damon, lançado num mundo hostil para construir uma vida nova, e o Damon de hoje, no comando de si mesmo, veterano daquela campanha vitoriosa. A lembrança ainda era bem viva — e assim continuaria até sua morte -, mas Damon fortaleceu-se, enquanto Leonie se aproximava, com a lembrança de Ellemir Lanart, que o esperava em Armida. Eu deveria ter casado antes de partir para esta campanha. Bem que quisera, mas Dom Esteban achara que um casamento precipitado seria impróprio para gente de sua casta. Não permitiria que sua filha fosse lEvanda às pressas para o leito nupcial como uma criada grávida! Damon concordara como adiamento. A realidade de Ellemir, sua esposa prometida, deveria agora banir até as lembranças mais angustiantes.

Recorrendo a todo o controle de que era capaz, Damon finalmente se adiantou, com Eduin ao seu lado. ― Concede-nos a graça por sua presença, parenta — disse ele, solene, fazendo uma reverência, da sela. — Mas já passou o tempo em que se poderia viajar sem problemas por estas colinas. Para onde vai nesta época do ano? Leonie retribuiu a reverência com a formalidade excessiva de uma dama do Comyn diante de forasteiros. ― Saudações, Damon. Viajo para Armida, entre outras coisas para o seu casamento. ― Sinto-me honrado. — A viagem desde Arilinn era longa, e sempre árdua, em qualquer estação. — Mas não é apenas para o meu casamento, não é mesmo, Leonie? ― Tem razão, não é só para isso… embora seja verdade que lhe desejo toda a felicidade, primo. Pela primeira vez, por um instante, os olhos dos dois se encontraram, mas Damon logo desviou os seus. Leonie Hastur, Dama de Arilinn, era alta, esguia, com os cabelos vermelhos do Comyn, agora grisalhos, sob o capuz do manto de montaria. Talvez tivesse sido bela outrora; Damon nunca seria capaz de julgar. ― Callista me enviou o aviso de que deseja renunciar a seu juramento com a Torre e casar. — Leonie suspirou. — Não sou mais jovem. Gostaria de deixar meu lugar como Guardiã, passando-o para Callista, assim que ela se tornasse um pouco mais velha. Damon inclinou a cabeça, em silêncio. Isso estava previsto desde que Callista ingressara na Torre de Arilinn, aos treze anos. Damon fora um técnico psíquico antes do primeiro ano de Callista ali, e fora consultado sobre a decisão de prepará-la para ser uma Guardiã. ― Mas agora ela deseja nos deixar para casar. Disse-me que seu amante… — Leonie usou a inflexão polida, que fazia com que a palavra significasse “marido prometido”. — …é de outro mundo, um dos terráqueos que construíram o espaçoporto em Thendara. O que sabe a respeito, Damon? Parece-me incrível, fantástico mesmo, como uma balada antiga. Como ela conheceu esse terráqueo? Disse-me seu nome, mas esqueci… ― Andrew Carr — informou Damon, enquanto viravam os cavalos na direção de Armida. As respectivas escoltas e a dama de companhia de Leonie mantiveram-se a uma distância respeitosa.

O grande sol vermelho pairava baixo no céu, projetando uma estranha claridade sobre os picos das colinas Kilghard, por trás deles. Nuvens começavam a se acumular ao norte, e soprava umvento frio, dos picos distantes e invisíveis das Hellers. ― Mesmo agora, ainda não entendo direito como tudo começou — acrescentou Damon, depois de um longo silêncio. — Só sei que quando Callista foi seqüestrada pelos homens-gatos, e se encontrava sozinha, na escuridão e com medo, aprisionada nas cavernas de Corresanti, nenhum dos parentes conseguiu fazer contato com .sua mente. Leonie estremeceu, puxando o capuz para proteger melhor o rosto. ― Foi um momento assustador… ― É verdade. O terráqueo, Andrew Carr, foi capaz, de alguma forma, de alcançar sua mente e pensamento. Até hoje, ainda não conheço todos os detalhes, mas sei que ele conseguiu sustentá-la em sua prisão solitária, era o único que podia se comunicar. E assim se tornaram ligados na mente e no coração, embora nunca tivessem se encontrado pessoalmente. Leonie suspirou. ― Esses vínculos podem ser mais fortes do que os vínculos da carne. E assim eles passaram a se amar, e se encontraram quando ela foi resgatada… ― Foi Andrew Cair o maior responsável pela salvação de Callista — assegurou Damon. — E agora eles estão comprometidos um com o outro. Pode ter certeza, Leonie, de que não é nenhuma fantasia, nascida do medo de uma moça solitária ou do desejo de um homem solitário. Callista me disse, antes de minha partida para esta campanha, que, se não obtivesse o consentimento do pai e o seu, deixaria Armida e Darkover, iria com Andrew para o mundo dele. Leonie balançou a cabeça, pesarosa. ― Tenho visto as naves terráqueas no espaço-porto em Thendara. E meu irmão Lorill, que integra o Conselho e trata com eles, diz que os terráqueos são humanos como nós. Mas casamento, Damon? Uma jovem deste planeta com um homem de outro mundo? Mesmo que Callista não fosse Guardiã, destinada à virgindade, tal casamento seria difícil, perigoso para ambos. ― Acho que eles sabem disso, Leonie, mas estão determinados. ― Sempre achei que nenhuma Guardiã deveria casar — disse Leonie, numa voz estranha e distante. — Pensei assim durante toda a minha vida, e foi como me comportei. Se não fosse por isso… Ela lançou um olhar rápido para Damon, que ficou impressionado com a angústia em sua voz. Ele tentou se defender contra isso.

Ellemir, pensou, como se fosse um amuleto a protegê-lo. Mas Leonie continuou, suspirando: ― Se Callista tivesse se apaixonado por um homem de seu próprio clã e casta, eu não lhe imporia minhas convicções; ao contrário, poderia liberá-la de bom grado. Não… — Leonie fez uma pausa. — Não, não de bom grado, conhecendo os problemas que aguardam qualquer mulher treinada e condicionada como Guardiã para um círculo da matriz, jamais de bom grado. Mas a liberaria, e a entregaria em casamento com a cortesia que devo demonstrar. Mas como posso dá-la a um alienígena, a um homem de outro mundo, que nem mesmo nasceu em nosso solo, sob nosso sol? O pensamento me deixa gelada de horror, Damon! Deixa minha pele toda arrepiada! ― Também me senti assim, Leonie, a princípio. Mas Andrew não é um alienígena. Minha mente sabe que ele nasceu em outro mundo, que gira em torno do sol de outro céu, uma estrela distante, que nem mesmo é um ponto de luz em nosso céu. Mas ele não é inumano, não é um monstro disfarçado de homem. É um dos nossos, um ser humano como eu. Pode ser forasteiro, mas não é um alienígena. Tenho certeza disso, Leonie. Sua mente esteve ligada à minha. Num gesto inconsciente, Damon levantou a mão para a pedra de matriz, o cristal que ampliava os poderes psíquicos, pendurada em seu pescoço, numa bolsa isolante, antes de acrescentar: ― Ele tem laran. Leonie fitou-o chocada, incapaz de acreditar. O laran era o poder psíquico que distinguia o Comyn dos Domínios das pessoas comuns, o dom hereditário embutido no sangue Comyn. ― Laran! — exclamou ela, quase com raiva. — Não posso acreditar! ― Acreditar ou desacreditar não altera um fato, Leonie. Eu tenho laran desde que era menino, fui treinado na Torre, e posso lhe garantir que esse terráqueo também possui Laran. Estive em contato com sua mente, e asseguro que ele não é absolutamente diferente de um homem do nosso mundo. Não há motivo para sentir horror e repulsa pela escolha de Callista. Ele é apenas um ser humano como nós. ― E é seu amigo. Damon acenou com a cabeça. ― Isso mesmo, meu amigo.

E para salvar Callista, nós nos unimos… através da matriz. Não havia necessidade de dizer mais nada. Era o vínculo mais forte conhecido, mais forte que o parentesco de sangue, mais forte que os laços do amor. Unira Damon e Ellemir, assim como Andrew e Callista. Leonie suspirou. ― Então é assim.” Neste caso, acho que devo aceitar, independentemente de seu nascimento ou casta. Como ele tem laran, é um marido conveniente… se é que algum homem pode se tornar de fato um marido aceitável para uma mulher treinada para ser Guardiã! ― Há ocasiões em que até esqueço que ele não é um dos nossos — comentou Damon. — É verdade que também há ocasiões em que ele parece estranho, quase alienígena, mas a diferença é apenas de costume e cultura. ― Até mesmo isso pode fazer uma grande diferença, Damon. Lembro quando Melora Aillard foi seqüestrada por Jalak de Shainsa, e tudo o que ela suportou ali. Jamais um casamento entre os Domínios e as Cidades Secas sobreviveu sem uma tragédia. E um homem de outro mundo e outro sol deve ser ainda mais estranho. ― Não tenho tanta certeza disso. De qualquer forma, Andrew é meu amigo, e o apoiarei em suas pretensões. Leonie arriou na sela. ― Não deve conceder sua amizade nem se ligar através da matriz a alguém que é indigno. Mas mesmo que seja verdade tudo o que você disse, como pode um casamento assim escapar ao desastre? Ainda que ele fosse um dos nossos, com plena compreensão do poder da Torre sobre o corpo e a mente de uma Guardiã, seria quase impossível. Você ousaria tanto? Damon esquivou-se a responder, Ela não podia estar falando sério, não da maneira como ele pensava. Não tinham vivido durante a Era do Caos, quando as Guardiãs eram mutiladas, até neutralizadas, convertidas em menos do que mulheres. É verdade que as Guardiãs ainda eramtreinadas, Damon sabia, com uma disciplina rigorosa, para viverem apartadas dos homens, comreflexos embutidos no corpo e no cérebro. Mas não mais eram mudadas. E, com certeza, Leonie não poderia saber… ou ele seria o único homem a quem ela jamais faria tal pergunta, refletiu Damon. Sem dúvida, era uma indagação inocente, ela jamais descobrira. Ele respirou fundo para enfrentar a inocência em Leonie, forçou-se a fitá-la, a dizer em voz baixa: ― Claro que sim, Leonie, se eu amasse como Andrew ama.

Por mais que ele se esforçasse para manter a voz firme e impassível, alguma coisa de sua luta interior transpareceu para Leonie. Ela levantou o rosto, os olhos se encontraram por um segundo… e desta vez foi Leonie quem desviou os seus. Ellemir, lembrou-se Damon, desesperado. Ellemir, minha amada, minha esposa prometida. Sua voz se manteve calma quando disse: ― Tente se encontrar com Andrew sem preconceitos, Leonie, e creio que vai descobrir que se trata de um homem a quem concederá Callista com a maior satisfação. Leonie conseguira recuperar o controle. ― Ainda mais por sua exortação, Damon. Mas mesmo que seja verdade tudo o que diz, continuo relutante. ― Sei disso. Damon olhou para a estrada. Podiam agora avistar os grandes portões de Armida, a propriedade hereditária do Domínio de Alton. O lar, pensou ele, onde Ellemir o esperava. ― Mas mesmo que seja verdade tudo o que você diz, Leonie, não sei o que poderíamos fazer para deter Callista. Ela não é nenhuma garota boba, dominada por uma paixão repentina; é uma mulher adulta, treinada na Torre, acostumada a impor sua vontade, e creio que o fará de novo, não importa o que todos os outros possam pensar. Leonie suspirou mais uma vez. ― Eu não a obrigaria a voltar contra a sua vontade; o fardo de uma Guardiã é pesado demais para ser carregado sem consentimento. Eu o carreguei pela vida inteira, e falo com conhecimento de causa. — Ela parecia cansada, abatida. — Mas não é fácil encontrar Guardiãs. Se eu puder recuperála para Arilinn, Damon, sabe que devo fazê-lo. Damon sabia muito bem. Os antigos dons psíquicos dos Sete Domínios, embutidos nos genes das famílias do Comyn há centenas ou mesmo milhares de anos, estavam desaparecendo. Os telepatas eram mais raros do que em qualquer outra ocasião. Não se podia mais considerar como um fato consumado que nem mesmo os filhos e as filhas da linhagem dileta de cada Domínio teriam o dom, o poder psíquico herdado de sua Casa. E, agora, não eram muitos os que se importavam com isso.

O irmão mais velho de Damon, herdeiro da família Ridenow, de Serrais, não tinha laran. Damon era o único entre todos os irmãos que possuía um laran integral, e nunca se sentira muito honrado com isso. Ao contrário, seu trabalho na Torre despertara o desprezo dos irmãos, que o consideravam diminuído como homem por isso. Era difícil encontrar telepatas com bastante força para o trabalho na Torre. Algumas das antigas Torres haviam sido fechadas, não mais se ensinavam ali as antigas ciências psíquicas de Darkover. Forasteiros, pessoas que tinham apenas uma quantidade ínfima de sangue Comyn, haviam sido admitidos em Torres menores. Arilinn, no entanto, apegava-se aos costumes antigos e só aceitava pessoas com o melhor sangue dos Domínios, e eram bem poucas as mulheres com força, capacidade psíquica, vigor — sem falar na coragem e na disposição de sacrificar quase tudo que tornava a vida apreciável para as mulheres nos Domínios — para suportar a terrível disciplina das Guardiãs. Quem encontrariam para tomar o lugar de Callista? De qualquer forma, portanto, seria uma tragédia. Arilinn devia perder uma Guardiã… ou Andrew uma esposa, callista um marido. Damon soltou um suspiro profundo. ― Sei disso, Leonie. E eles seguiram em silêncio pelo resto do caminho até os portões de Armida. Capítulo Dois Do pátio externo de Armida, Andrew Cair avistou os cavaleiros que se aproximavam. Chamou os cavalariços e os atendentes para aguardarem a expedição e depois foi ao salão principal para anunciar a chegada. ― É Damon voltando! — exclamou Ellemir, no maior excitamento. Ela saiu correndo para o pátio. Andrew foi atrás, mais devagar, com Callista ao seu lado. ― Não é apenas Damon — murmurou ela. Andrew compreendeu, sem precisar perguntar, que ela usara sua percepção psíquica para identificar os viajantes. Já se acostumara a isso agora, e não mais lhe parecia fantástico ou assustador. Callista sorriu-lhe, e mais uma vez ele ficou impressionado com sua beleza. Tendia a esquecer como ela era linda quando não a estava contemplando. Antes de vê-la pessoalmente, conhecera sua mente e coração, gentileza, coragem, raciocínio rápido. Depois, passara a conhecer e apreciar sua alegria e espírito, mesmo quando se encontrava sozinha, apavorada, aprisionada na escuridão de Corresanti. Mas Callista também era bonita, muito bonita, uma jovem esguia, de pernas compridas, cabelos avermelhados, presos em tranças caindo pelas costas, olhos cinza, por baixo de sobrancelhas retas.

Ela acrescentou, enquanto andava ao seu lado: ― É Leonie, a leronis de Arilinn. Ela veio, como eu pedi. Andrew pegou a mão de Callista, embora isso fosse sempre um risco. Sabia que ela fora treinada e disciplinada, por meios que ele não podia imaginar, a evitar o menor contato. Mas agora, embora seus dedos tremessem um pouco, ela permitiu o contato. Parecia que aquele tremor era umindício da tempestade interior que a sacudia, apesar da calma disciplinada. Andrew podia ver, nos pulsos e nas mãos esguias, algumas cicatrizes mínimas, parecendo talhos ou queimaduras cicatrizados. Interrogara-a a respeito. Callista dera de ombros, limitando-se a dizer: ― São antigas, há muito que já sararam. Foram… acessórios para a memória. Ela não quisera dizer mais nada, mas Andrew adivinhara o que representavam, e o horror o dominara. Poderia algum dia conhecer realmente aquela mulher? ― Pensei que você era a Guardiã de Arilinn, Callista — comentou ele agora. ― Leonie já é Guardiã antes mesmo de meu nascimento. Preparou-me para assumir seu lugar umdia. E eu já começara a trabalhar como Guardiã. Cabe a ela me liberar, se assim desejar. Mais uma vez houve um ligeiro tremor, o olhar desviado às pressas. Que poder aquela velha terrível tinha sobre Callista? Andrew observou Ellemir correndo para o portão. Como ela era parecida com Callista, tambémalta e esguia, os mesmos cabelos avermelhados, os mesmos olhos cinza, pestanas escuras, sobrancelhas retas… e ao mesmo tempo tão diferente da irmã gêmea! Com uma tristeza profunda, que não sabia ser inveja, ele viu Ellemir correr para Damon, que desceu da sela e abraçou-a, para umbeijo prolongado. Callista algum dia se sentiria bastante livre para correr ao seu encontro assim? Callista conduziu-o até Leonie, que desmontara com a ajuda de um dos guardas da escolta. Os dedos de Callista ainda se entrelaçavam com os de Andrew, um gesto de desafio, uma violação deliberada do tabu. Andrew sabia que ela queria que Leonie visse. Damon apresentou Ellemir à Guardiã. ― Sua visita é uma honra — disse Ellemir. — Seja bem-vinda a Armida.

Andrew observava atentamente quando Leonie baixou o capuz. Preparado para uma megera horrenda e autoritária, ficou aturdido ao constatar que ela era apenas uma mulher magra, frágil, de idade já avançada, com olhos adoráveis, os remanescentes do que devia ter sido uma beleza extraordinária. Não parecia rigorosa ou intimidativa, e sorriu para Ellemir com extrema gentileza. ― É. muito parecida com Callista, criança. Sua irmã me ensinou a amá-la, e fico contente por finalmente conhecê-la em pessoa. A voz era suave, clara e jovial. Ela virou-se para Callista, estendendo as mãos, num gesto de saudação. ― Está bem de novo, chiya? Era surpreendente que alguém pudesse chamar a equilibrada Callista de “garotinha”. Callista largou a mão de Andrew; as pontas de seus dedos mal roçaram as de Leonie. ― Estou, sim. — Ela riu. — Mas ainda durmo como uma criança, com uma luz acesa no quarto, a fim de não acordar na escuridão e pensar que estou outra vez na amaldiçoada caverna dos homensgatos. Envergonha-se de mim, parenta? Andrew fez uma reverência formal. Já conhecia o suficiente dos costumes darkovanos para não fitar diretamente a leronis, mas sentiu que os olhos cinza de Leonie o avaliavam. Callista acrescentou, com um tremor de desafio na voz: ― Este é Andrew, meu marido prometido! ― Ainda não tem o direito de dizer isso, chiya — protestou Leonie. — Falaremos a respeito mais tarde. Agora, quero cumprimentar meu anfitrião. Lembrada de seu dever como anfitriã, Ellemir largou a mão de Damon e subiu a escadaria da casa com Leonie. Andrew e callista as seguiram. Ele tentou pegar a mão de Callista, que se esquivou, não de forma deliberada, mas pelo hábito inconsciente de anos. Andrew sentiu que ela nem dava conta de sua presença naquele momento. O Grande Salão de Armida era enorme, com chão de pedra, mobiliado ao estilo antigo, com bancos embutidos ao longo das paredes, estandartes e armas pendurados por cima da imensa lareira de pedra. Numa extremidade do salão havia uma mesa fixada no chão. Perto dali, Dom Esteban Lanart, Lorde Alton, estava deitado numa cama com rodinhas, recostado em travesseiros.

Era um homem corpulento, ombros largos, cabelos vermelhos crespos, entremeados de fios brancos. Ao ver as pessoas entrando no salão, ele disse, irritado: ― Dezi, meu rapaz, ajude-me a levantar para receber as visitas. Um rapaz sentado num dos bancos levantou-se de um pulo, ajeitou os travesseiros nas costas do velho, ajudou-o a assumir uma posição sentada. Damon pensou a princípio que o rapaz era um dos criados de Esteban, mas depois notou a sua grande semelhança com o velho lorde do Comyn. Era quase um menino, muito magro, cabelos vermelhos também crespos, olhos mais azuis do que cinza, as feições quase iguais às de Ellemir. Ele se parece com Coryn, pensou Damon. Coryn fora o primeiro filho de Dom Esteban, de sua primeira esposa, há muito falecida. Muitos anos mais velho do que Ellemir e Callista, fora amigo jurado de Damon na adolescência. Mas Coryn morrera e fora enterrado havia muito tempo. E não tinha idade suficiente para ter um filho daquele tamanho. O menino é um Alton, não resta a menor dúvida, pensou Damon. Mas quem é ele? Nunca o vi antes! Leonie, no entanto, pareceu reconhecê-lo no mesmo instante. ― Com

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