Em casa dos pais de Mita, La Plata, 1933 — Ponto de cruz com linha marrom numa fazenda de linho cru, por isso é que a toalha de mesa ficou tão bonita. — Tive mais trabalho com essa toalha do que com o jogo de guardanapos, que são oito pares… se pagassem melhor os bordados seria bom eu arranjar uma empregada que durma em casa e dedicar mais tempo a bordados, depois de fazer a clientela, não acha? — Os bordados parece que não cansam, mas depois de umas horas a gente sente as costas doloridas. — Mas Mita me encomendou uma colcha para a caminha do menino, com cores vivas porque a luz nos quartos é pouca. São três peças seguidas que dão para um hall de janelas grandes, cobertas por um toldo que se pode enrolar. — Se eu tivesse mais tempo, fazia uma colcha para mim. Sabe o que é que mais cansa? Escrever à máquina numa mesa alta feito a minha no escritório. — Se eu morasse nesta casa, ficava sentada do lado desta janela todo o tempo que pudesse para trabalhar na colcha de Mita, por causa da luz. — Mita tem móveis bonitos? — Mamãe tem muita pena que Mita não possa aproveitar esta casa agora, com todas essas comodidades, não é? — Eu tive um pressentimento quando ofereceram esse trabalho a Mita, achava que um ano não acabava nunca, que ia embora por um ano, e agora ela ficou por lá. Temos que nos conformar se ela ficar por lá para sempre. — Ela devia vir duas vezes por ano a La Plata, de férias, em vez de uma só. — Os dias passam voando, o primeiro dia parece que não, parece que rende muito mas depois os dias passam sem a gente perceber. — Olhe, mamãe, eu também não aproveito a casa tanto assim. — Acho que as suas crianças se enfiaram no galinheiro. — Clara, você precisava vir todas as tardes com os meninos, eles não mexem nas plantas. Mas eles deixam o avô maluco por causa dos frangos. — Por quanto vendem os frangos? — Quando você escrever para Mita, mande dizer que tenha paciência com os móveis. Eu tenho medo de uma coisa, se ela comprar os móveis é capaz de ficar para toda a vida nesse lugar. Escreva para sua irmã, ela está sempre querendo receber notícias nossas. — A senhora comprou todos os móveis novos para esta casa? — Se a casa tivesse ficado pronta quando Mita se formou e nós tivéssemos nos mudado, talvez ela ficasse com mais pena de ir trabalhar sozinha nesse lugar. — Coronel Vallejos é tão feia como Mita disse? — Não, Violeta. Eu gostei bastante. Não é verdade, mamãe, que não é tão feia? Logo que cheguei, quando desci do trem me deu a impressão de muito feia porque não há casas nem mesmo de dois andares e tudo parece muito plano. É uma zona de grande seca e não se veem muitas árvores. Na estação há charretes em vez de táxis e a dois quarteirões e meio fica o centro da cidade. Só umas poucas árvores, vê-se que crescem com dificuldade, mas o que não se vê é grama em parte alguma.
Mita plantou grama já duas vezes, contando com o mês de abril, mas não cresceu. — Mas de tanto regar os canteiros do quintal ela tem lindas plantas numa espécie de pátio pequeno para onde dão a cozinha, a salinha de almoço e a porta do hall. — Então não é tão feia assim? — Logo que cheguei achei Vallejos feia, mas a vida é muito sossegada. Mita tem uma empregada que cozinha e arruma a casa, e a babá que toma conta do menino enquanto ela está no hospital. Todos os pobres de Coronel Vallejos a adoram porque Mita não nega algodão, nem água oxigenada, nem gaze para ataduras. — É um hospital novo, bonito? — O farmacêutico que tomou conta do laboratório antes de Mita amesquinhava tudo como se tudo fosse dele e não do hospital. — Eu vi o último filme de Carlos Palau. — Mita irá vê-lo quando passarem em Vallejos. — Quanto tempo esteve de namoro com Carlos Palau? — Nunca imaginamos que Carlos Palau pudesse triunfar. — Ela nunca esteve de namoro com Carlos Palau. Ele a tirava para dançar mas eu sempre aguentava até o fim do baile para voltar para casa com as meninas. — Ele puxava os cordéis atrás do cenário do teatrinho da prefeitura. — É o único galã bacana que o cinema argentino tem. — O marido de Mita é igualzinho a Carlos Palau, eu sempre disse. — Mais ou menos, igualzinho não. — Parte da família dos Palau ainda mora no mesmo cortiço. — Mas nunca acreditei que Mita se acostumasse a morar num lugarejo assim. — O que os frangos comem primeiro são os restos de comida, antes até que o milho. — Vovô, qual é o frango que você vai matar pra domingo? — Hoje vou matar um para o pai de Violeta, não diga nada à sua avó que ela fica zangada. — Violeta está na cozinha com mamãe e vovó, agora não o veem. — Vou matar este frango para o pai de Violeta e mandá-lo de surpresa. — Vovô, quem é que ganha mais, você com os frangos ou o pai de Violeta consertando todos aqueles sapatos? — Clara, na frente de sua mãe eu não podia contar a história do escritório. É um homem que quanto mais a gente conhece mais gosta dele. Declarou-se a mim. — Como você pode dizer que ele se declarou? Isso é quando um rapaz quer ficar noivo, umhomem casado não pode se declarar, o que ele lhe fez foi uma proposta, Violeta.
Não comece a trocar as coisas porque então é melhor que você não me conte nada. — De bem-apanhado não tem nada. Conhecendo-o é que a gente começa a gostar dele. — Se você quiser bordar uma colcha esta é a melhor época, e agora que os dias vão ficando mais compridos e depois do trabalho ainda sobra uma hora de luz, cansa a metade quando se borda com a luz do dia, e você tem a sorte de sair tão cedo do escritório. — Coitada da Adela. — A coitada no escritório tem que trabalhar com luz artificial desde a manhã. — Tenho de ir embora sem ver Adela. — Você não sabia que ela trabalhava até tão tarde? — Adela precisa é ter um título em vez de trabalhar como secretária. — Agora quem tem título é quem não precisa. — Como vão os negócios do marido de Mita? — Vendeu uma casa e com isso comprou alguns bezerros. Mamãe quer que eu faça a colcha para Mita, mas acho que não vou poder. Mando os desenhos de molde para Vallejos e ela pode fazer sozinha. Tem duas empregadas. Não fale nada, mas papai foi matar um frango para você levar de surpresa a seu pai. — Acho muito malfeito que ela tenha se casado nessa cidade em vez de ajudar sua mãe, depois de tantos sacrifícios para fazê-la estudar. — Os óculos novos de Adela são de tartaruga legítima. — Desculpe, não ajudo você a matar o frango porque fico impressionada, mas meu pai vai ficar muito agradecido. — Mita também não gostava de ver quando eu matava um frango, mas depois comia até não poder mais. — A que fazia mais onda era aquela companheira de Mita, da faculdade, a filha do professor. — Sofia Cabalús? — Ela casou? — Lá em Vallejos, Mita deve ter saudades da vida que levava aqui. — Sofia Cabalús nunca mais pôs os pés nesta casa depois que Mita foi embora. Não a vejo há meses e meses. — No escritório me contaram que o pai está doido varrido, vive faltando às aulas. E só ficamlendo. Vocês não veem Sofia porque ela está sempre trancada em casa, lendo.
— Não vá embora antes de Adela chegar. — Quero ver os óculos novos dela. — Custaram quase meio mês de trabalho. — Esses dias que passou sem óculos morria de dor de cabeça. — Vovó, por que é que Violeta pinta os olhos de preto? — Já começou a se meter em complicações com o novo chefe que lhe arranjaram. — O pai vai ficar contente com o franguinho. Sabe Deus há quanto tempo lá não se come frango. — Eu tenho pena de falar com ela, mas é pior ficar sem dizer nada e ela continuar arrumando ainda mais complicações com esse homem. — Coitada da mãe, se levantasse do túmulo. — Violeta percebeu que não levamos mais sapatos para o pai dela. — Cada vez que eu ia apanhar os sapatos tinha que voltar de mãos abanando. Não é possível que prometa consertá-los para terça e depois na terça não estejam prontos, nem que seja só botar umsalto. Assim foi perdendo todos os fregueses, por ficar pensando em outra coisa. — Não ensaiam mais de noite na sede da Sociedade Italiana, não adianta, a ópera é muito difícil, se as vozes são só boazinhas fica uma porcaria. — Um dia é convidado por um, outro dia por outro. Seu pai mesmo de vez em quando paga uma bebida para ele. Ele não conta, mas eu tenho certeza. — Mita e Sofia tiveram que sair do ensaio porque deu nelas um acesso de riso. — Que é que eu posso fazer para o jantar de hoje? — No canteiro do fundo você já tem que começar a cortar a alface porque as pontas estão ficando arroxeadas. — Posso fazer uns bifes com muita salada. Seu pai pode acabar com o cozido do almoço, se é que não está cheio. Por que é que ele vai dar um frango de presente a esse sapateiro? — O pai de Violeta recebe mais cartas da Itália do que nós. — Está na hora de voltar para casa; vou fazer croquetes para o jantar, que as crianças gostam e quando ponho na mesa Tito come sem dizer nada. — Não entendo por que é que ele não vai ao médico. — Papai, quero que você me mate um frango para domingo.
— Eu sempre comi de tudo e nunca tive nada. — Que homem mais teimoso, acha que todos podem comer feito bois como você, que teimoso. — Tito está com o estômago estragado, tem que se cuidar para valer. — E o irmão é igual, logo se vê que são delicados de estômago, é de família. — Não é de família, foi a cunhada que acabou de estragar o estômago de Tito; já quando noivo ele se queixava comigo das digestões, eu perguntava o que é que ele tinha comido e era sempre a mesma coisa: pratos fortes. — Quando Tito morava com o irmão já se queixava do estômago. — Vejo que minha cunhada continua fazendo aqueles ensopados malfeitos, dá gosto na comida à custa de pimentão, a única coisa em que pensa é sapecar pimentão. — Essa mulher vive na rua, que tempo pode ter para tratar da cozinha? — Um ensopado bem feito precisa de muito tempo e muito cuidado. Mamãe, você não sabe como ajuda ter plantação de verduras aqui na sua casa, porque senão é preciso estar comprando uma porção de coisas, de verduras e de temperos que não sejam pesados. Você não pode deixar de ter alfavaca, alecrim e salsa aos montes. Ela nunca tem nada na despensa, aí na última hora joga pimentão na panela e qualquer comida fica pesada, mesmo gastando um dinheirão em carne semgordura. — Não sei como Mita estará se arrumando porque Berto tem um estômago muito delicado também. — Se come tranquilo digere qualquer coisa. Diz Mita que tudo é de nervoso, de fato Berto não é de estômago delicado como Tito. — Vovô foi levar o frango para o pai de Violeta. Posso ir com ele, mamãe? — Ele foi com o avental cinza. Se Mita soubesse que ele sai com o avental cinza ia ficar furiosa. — Clara, o prazer de seu pai é andar com aquele avental. — Mita não defenderia mais Violeta se soubesse o que falou dela. — Mamãe, vovô já tinha atravessado a rua, não pude segui-lo. — Mas Adela não podia mesmo ter estudado com a vista tão ruim. Lembra as dores de cabeça que tinha. — Esse horário é interminável e ela tem de trabalhar com a luz acesa. — Quem sabe se Mita viesse morar em La Plata tornava a ficar entusiasmada pela carreira. O pai de Sofia bem que podia ajudá-la a entrar na faculdade como assistente de alguém.
— Que vontade eu tenho de ver o menino de Mita! — Não, porque o que Beto quer é que Mita não trabalhe mais, logo que as coisas dele se arrumarem um pouco. — Estou morrendo de cansada. — Violeta pensava que você trabalhava das nove às seis, teve que ir fazer o jantar para o pai. Mandou lembranças. — Ela queria me dizer alguma coisa? — Começou a falar com Clara sobre um homem do escritório. — Coitada, eu tinha vontade de conversar com Violeta. O pai faz o jantar sozinho, sabe Já aonde Violeta foi. — Disse que tinha que ir fazer o jantar do pai, foi embora antes das sete. — Mamãe, estou morrendo de cansada. Que é que você fez hoje de tarde? — Eu queria limpar o tapete da escada, mas como Clara veio nós nos sentamos e costuramos um pouco. — Você a convenceu a fazer a colcha de Mita? — Vai mandar todos os desenhos. Que vontade tenho de ver o menino de Mita. — Fica muito bonito o ladrilho do piso encerado, enquanto eu esperava no saguão que você me abrisse a porta, via contra a luz que tudo brilhava, do saguão até o fundo do hall. — Clara tinha razão, mas não vou deixar que ela encere outra vez quando acabar o brilho, já basta a trabalheira que ela tem com a casa, os meninos e o marido. Como ele gosta de croquetes e não pode comer frituras, Clara tem a paciência de ferver a carne, depois mói e tempera com alecrime queijo e põe no forno até os croquetes ficarem dourados, parecendo croquetes fritos de verdade: engana a vista e não faz mal ao estômago. — Se for preciso, no sábado que vem eu posso encerar tudo de tarde. — Violeta não sabia que você tinha um horário tão comprido. — Hoje houve trabalho à beça. — Violeta se queixava de que a máquina de escrever fica numa mesa alta, e ela se cansa. — O escritório dela não tem a metade do trabalho do meu. — Estava com olhos pintados como uma cigana. com certeza foi encontrar o tal homem. — Mas se for casado ele deve estar jantando em casa a esta hora. — Deve ter ido se encontrar com algum outro homem. — Que é que você quer que ela faça? Se voltar para casa só encontra o pai.
— Eu às vezes penso como seria se as mães se levantassem do túmulo. — Primeiro você tem que varrer, depois passar o pano, assim o piso fica bem limpo para receber a cera. Depois, molha o pano com a cera, sem empapá-lo, e espalha uma camada de cera bem igual por todo o ladrilho.Depois deixa secar um pouco e vem a parte mais cansativa que é a de dar brilho andando em cima dos panos. — Ela não ficava assim se a mãe fosse viva. — No verão, do saguão não vai se ver só o ladrilho encerado do saguão e do hall, porque estando abertas as portas que comunicam o hau com o pátio coberto vai se ver todo o ladrilho até o fundo do pátio coberto. — Mita diz que não tem prazer em arrumar a casa que alugou porque é muito velha. — O pior é que em Vallejos custa muito fazer as plantas crescerem. — É bom a gente ter esta casa grande, mas também dá muito trabalho mantê-la limpa. — Coitada da Mita, nunca pôde aproveitá-la. — Não quero que você ande com esse avental fora do galinheiro. — Papai, ponha a mesa que estou muito cansada. Sinto dor nas costas. — Quanto tempo faz que não escrevem da Itália? — Ontem veio carta de Mita e só. Eu gostaria de mandar uma fotografia da casa para o pessoal da Itália. — O que é que tinha no embrulho que Clara levou? — Pão velho, para fazer farinha de rosca. — Você não mandou nenhuma fotografia da casa para a Itália? Mande, que eles sempre estão querendo receber notícias. — vou escrever, apesar de eles não terem escrito. — Quando acabarem de cortar a alfaia vão escrever. — Mita diz que tem horror do começo da primavera em Coronel Vallejos, pois é quando mais sopra o vento e levanta poeira. — Adela, escreva para sua irmã que está sempre querendo receber notícias, vocês não sabem o que é ficar longe da família. — O que é que eu digo? — Não vai contar que eu saí com o avental cinza. Diga a ela para vir depressa que queremos ver o menino. — E muitas lembranças para Berto. — Diga a ela que se vierem para La Plata podem morar conosco, que a casa é grande de sobra.
A gente teria que arranjar algum emprego bom para Berto. — Papai, não seja cabeça-dura. Ele já disse que não quer emprego. — Diga a ela que esteve com Sofia Cabalús, conte uma mentira. — Sempre penso em telefonar para ela, depois esqueço. Amanhã vou telefonar do escritório. — Diga que Sofia Cabalús lhe disse que o pai pode arranjar uma colocação para ela na faculdade, como assistente de outro professor. — Violeta fez algum mexerico novo? — Deu para falar de Mita, diz que para que fez o sacrifício de estudar farmácia — não era o que ela queria — se depois casou e agora não pensa exercer mais a profissão. — vou escrever a Mita dizendo que se vier para La Plata e se conseguir emprego na universidade, pode se matricular na faculdade de letras, como ela ‘queria. — Chega de estudar, até quando? — Papai, pare de comer, senão você estoura. — Não dê muito pão velho a Clara, depois não sobra para as galinhas. — Já ralei um vidro inteiro de farinha de rosca para os bifes à milanesa, assim tudo o que sobrar esta semana você pode dar para as galinhas. — Você se queixa de que não há pão, mas come tanto pão na mesa que não sei como cabe no seu estômago. — Onde está passando o filme de Carlos Palau? — É estreia, no Select. — Quando passar num lugar mais barato eu quero ver. — Na fotografia do jornal ele está igualzinho a Berto. — Hoje Violeta só fez criticar Mita, porque Mita era louca por cinema. — Acho que Violeta escreveu a Mita e ela não respondeu. — Por isso estava implicando com Mita. — Na última carta Mita pôs no fim: “Esta carta é também para Violeta”. — Violeta queria uma carta especial para ela. — O que foi que ela disse? — Que Mita tinha mania de cinema e que sempre segue os seus caprichos e casou com Berto que é igual a um artista de cinema. — Se você não comer vai ficar doente. — De tão cansada que estou a fome vai embora. Hoje meus óculos caíram no chão, quase morro de susto.
— Onde? — Na rua. Se quebrassem de novo acho que morria. — Quando você precisa ir outra vez ao oculista?— Tenho pena de gastar minha vista no cinema, senão ia ver Carlos Palau. — Principalmente de perfil ele se parece com Berto. — Se Mita arranjasse emprego na faculdade podíamos nos encontrar na saída do meu escritório. Quando vejo as janelas da biblioteca, de passagem, sempre me lembro de Mita. — E pensar que depois de todas as horas estudando as matérias dela ainda tinha ânimo de se enfiar lá com Sofia. — Para ler mais ainda, Mita tem uma vista resistente à beça. — Para ler romances. — Sempre vejo as mesmas caras, há pouca luz nessa biblioteca. As pobres lampadazinhas penduradas do teto estão pretas de tão sujas, têm uma cúpula de vidro na forma de uma sainha de tule, de vidro branco, e estão cheias de fuligem. com um pano empapado de terebintina dava para limpá-las em um minuto, tanto a lampadazinha como o abajur, e haveria mais luz nessa biblioteca.
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