Para começar, olha quanto livro. Lá estavam os seus romances de Edith Wharton, organizados não por título mas por data de publicação; lá estava o conjunto completo de Henry James da Modern Library, presente do pai dela no seu aniversário de vinte e cinco anos; lá estavam os de capa mole e com orelhas de burro que ela teve que ler em disciplinas da faculdade, um monte de Dickens, uma pitada de Trollope, além de boas doses de Austen, George Eliot, e das temíveis irmãs Brontë. Lá estava uma montanha de volumes pretos e brancos da New Directions, quase tudo poesia de gente como H. D. ou Denise Levertov. Lá estavam os romances de Colette que ela lia às escondidas. Lá estava a primeira edição de Couples, que era da mãe dela, que Madeleine tinha sondado subrepticiamente na sexta série e que agora estava usando para dar apoio textual à sua monografia de conclusão de curso sobre o romance e o casamento. Lá estava, em resumo, uma biblioteca de tamanho médio, mas ainda portátil, que representava basicamente tudo que Madeleine tinha lido na universidade, uma coleção de textos, aparentemente escolhidos de maneira aleatória, cujo foco lentamente se fechava, como um teste de personalidade, um teste sofisticado em que você não conseguisse trapacear ao perceber as implicações das questões e em que finalmente você ficava tão perdida que o seu único recurso fosse responder a verdade pura e simples. E aí você ficava esperando o resultado, torcendo por “Artística”, ou “Passional”, pensando que podia aceitar “Sensível”, temendo secretamente “Narcisista” e “Caseira”, mas recebendo finalmente um veredito de dois gumes que lhe causava sensações diferentes dependendo do dia, da hora, ou do cara que por acaso você estivesse namorando: “Romântica Incurável”. Eram esses os livros no quarto em que Madeleine estava deitada, com um travesseiro em cima da cabeça, na manhã da sua formatura na universidade. Ela tinha lido cada um deles, muitas vezes relido, não raro sublinhando trechos, mas isso não lhe servia de nada agora. Madeleine estava tentando ignorar o quarto e tudo que estava nele. Estava torcendo para se deixar cair de novo no oblívio em que tinha ficado bem aconchegada pelas últimas três horas. Qualquer nível mais alto de consciência a forçaria a encarar certos fatos desagradáveis: por exemplo, a quantidade e a variedade de álcool que tinha ingerido na noite anterior e o fato de que tinha ido dormir sem tirar as lentes. Pensar nesse tipo de detalhe evocaria, por sua vez, os motivos de ela ter bebido tanto assim para começo de conversa, o que ela definitivamente não queria fazer. Então Madeleine ajeitou o travesseiro, bloqueando a luz do começo da manhã, e tentou pegar no sono de novo. Mas não adiantou. Porque bem naquela hora, na outra ponta do apartamento, a campainha começou a tocar. Começo de junho, Providence, Rhode Island, o sol no céu já há quase duas horas, iluminando a baía clara e as chaminés da Narragansett Electric, nascente como o sol do selo de Brown University gravado em todas as flâmulas e bandeiras desfraldadas sobre o campus, um sol de rosto sagaz, que representava o saber. Mas este sol — o que estava sobre Providence — estava saindo na frente do metafórico, porque os fundadores da universidade, com seu pessimismo batista, tinham escolhido representar a luz do saber amortalhada por nuvens, indicando que a ignorância ainda não tinha sido eliminada do reino dos homens, enquanto o sol de verdade estava naquele exato momento abrindo caminho à força por entre a cobertura de nuvens, soltando raios lascados de luz lá de cima e dando esperança aos esquadrões de pais, que tinham passado o fim de semana inteiro encharcados e gelados, de que o clima atípico não fosse estragar o dia de festa. Por todo o College Hill, nos jardins geométricos das mansões georgianas, os jardins com cheiro de magnólia das vitorianas, sobre calçadas de tijolos que margeavam grades negras de metal como as de uma tirinha de Charles Addams ou de um conto de Lovecraft; na frente dos estúdios da Rhode Island School of Design, onde um estudante de pintura, que passara a noite inteira acordado trabalhando, amplificava aos berros sua Patti Smith; reluzindo nos instrumentos (tuba e trompete, respectivamente) de dois dos membros da banda marcial de Brown que tinham chegado cedo ao lugar marcado e estavam olhando em volta nervosos, perguntando-se onde é que estavam os outros; iluminando as ruelas de pedras que desciama colina para o rio poluído, o sol brilhava em cada maçaneta de latão, cada asa de inseto, cada folha de grama. E, afinada com a luz que subitamente jorrava, como a arma que dá a largada de alguma atividade, a campainha do apartamento de quarto andar de Madeleine começou, clamorosamente, insistentemente, a tocar. A onda chegava até ela menos como som que como sensação, um choque elétrico que lhe corria espinha acima. Em um mesmo gesto Madeleine arrancou o travesseiro da cabeça e sentou na cama. Ela sabia quem estava tocando o interfone.
Eram os seus pais. Ela tinha aceitado encontrar Alton e Phyllida para o café da manhã às sete e meia. Tinha combinado com eles dois meses atrás, em abril, e agora aqui estavam eles, na hora marcada, à sua maneira ansiosa, com que ela podia contar. O fato de que Alton e Phyllida tinham vindo de carro lá de Nova Jersey para ver a formatura dela, de que não estavam aqui hoje para comemorar apenas o sucesso dela, mas o deles como pais, não tinha emsi nada de errado ou inesperado. O problema era que Madeleine, pela primeira vez na vida, não queria participar disso. Ela não estava com orgulho de si própria. Não estava a fim de comemorar. Tinha perdido a crença na relevância do dia e do que o dia representava. Ela pensou em não atender. Mas sabia que se não atendesse uma das suas colegas de quarto ia atender, e aí ela ia ter que explicar onde tinha ido parar ontem à noite, e com quem. Portanto, Madeleine escorregou da cama e relutantemente se pôs de pé. Por um momento pareceu dar certo, aquilo de ficar de pé. Sua cabeça parecia curiosamente leve, como que esvaziada. Mas aí o sangue, drenando-se do crânio como se de uma ampulheta, encontrou um gargalo, e a parte de trás da cabeça explodiu de dor. No meio dessa pancada, como o núcleo furioso de que ela emanava, irrompeu de novo o interfone. Ela saiu do quarto e foi tropeçando descalça até o interfone da entrada, batendo no botão falar para calar a campainha. “Oi?” “O que aconteceu? Você não escutou o interfone?” Era a voz de Alton, grave e peremptória como sempre, apesar de estar saindo de um alto-falante minúsculo. “Desculpa”, Madeleine disse. “Eu estava no chuveiro.” “Até parece. Será que dava para você deixar a gente entrar?” Madeleine não queria. Ela precisava se lavar antes. “Eu já estou descendo.” Dessa vez ela segurou demais o botão falar, cortando a resposta de Alton. Ela apertou de novo e disse: “Papai?”.
Mas enquanto estava falando Alton também devia estar, porque quando ela apertou ouvir só veio estática. Madeleine aproveitou essa pausa na comunicação para apoiar a cabeça no caixilho da porta. A madeira era uma sensação fresca e boa. Veio-lhe a ideia de que, se pudesse deixar o rosto apertado contra a madeira pacificante, podia conseguir curar a dor de cabeça, e se pudesse deixar a testa contra o caixilho pelo resto do dia, de alguma maneira conseguindo ainda sair do apartamento, podia até conseguir aguentar tomar café com os pais, marchar no desfile de formatura, pegar um diploma e se formar. Ela ergueu o rosto e apertou falar de novo. “Papai?” Mas foi a voz de Phyllida que respondeu. “Maddy? O que está acontecendo? Abra para nós.” “As minhas amigas ainda estão dormindo. Eu vou descer. Não toquem mais.” “Nós queremos ver o seu apartamento!” “Agora não. Eu vou descer. Não toquem.” Ela tirou a mão dos botões e se afastou, olhando fixamente para o interfone como que para ver se ele tinha coragem de abrir a boca. Quando ele não abriu, ela voltou pelo corredor. Estava chegando ao banheiro quando a sua colega Abby emergiu, fechando o caminho. Ela bocejou, passando a mão pelo cabelo imenso, e aí, percebendo Madeleine, sorriu cúmplice. “Então”, Abby disse, “onde é que você foi se esconder ontem de noite?” “Os meus pais estão aqui”, Madeleine explicou. “Eu tenho que ir tomar café.” “Anda, me conta.” “Não tem nada pra contar. Eu estou atrasada.” “Mas como é que você está com a mesma roupa, então?” Em vez de responder, Madeleine baixou os olhos e se viu. Dez horas antes, quando tinha pegado o vestidinho preto Betsey Johnson emprestado com Olivia, Madeleine achou que tinha ficado bemnele. Mas agora o vestido parecia quente e grudento, o grande cinto de couro lembrava um artefato sadomasô e tinha uma mancha perto da barra que ela não queria identificar.
Abby, enquanto isso, tinha batido na porta de Olivia e entrado. “O coração partido da Maddy já era”, ela disse. “Acorda! Você tem que ver isso aqui.” O caminho para o banheiro estava livre. A necessidade que Madeleine sentia de um banho era radical, quase patológica. No mínimo ela precisava escovar os dentes. Mas a voz de Olivia agora já era audível. Logo Madeleine teria duas colegas a interrogando. Havia o risco de que os seus pais começassem a tocar a campainha de novo a qualquer momento. Tentando fazer o mínimo de barulho, ela foi avançando pelo corredor aos poucos. Enfiou os pés em um par de mocassins que tinhamficado na porta, esmagando o calcanhar dos sapatos enquanto se equilibrava, e escapou para o corredor externo. O elevador estava esperando no fim da passarela floral. Esperando, Madeleine percebeu, porque ela não tinha fechado a porta de correr quando saiu cambaleante dali umas horas antes. Agora ela fechou a porta direitinho e apertou o botão do térreo, e com um tranco o aparelho antiquado começou a descer pela escuridão das entranhas do prédio. O prédio de Madeleine, um castelo neorromanesco chamado Narragansett que abraçava a íngreme esquina da Benefit com a Church Street, tinha sido construído na virada do século. Entre os seus detalhes de época remanescentes — a claraboia de vitral, as arandelas de latão nas paredes, o saguão de mármore — estava o elevador. Feito de barras curvas de metal como uma gaiola gigante, o elevador miraculosamente ainda funcionava, mas andava devagar, e enquanto a cabine baixava Madeleine aproveitou a chance de se fazer mais apresentável. Ela passou as mãos pelo cabelo, penteando-o com os dedos. Limpou os dentes da frente com o indicador. Esfregou os olhos para tirar migalhas de rímel e molhou os lábios com a língua. Finalmente, ao passar pela balaustrada no segundo piso, ela verificou seu reflexo no espelhinho preso ao painel traseiro. Uma das coisas boas de ter vinte e dois anos, ou de ser Madeleine Hanna, era que três semanas de angústia romântica, seguidas por uma bebedeira épica, não faziam um estrago que se pudesse perceber. Não fosse um inchaço em volta dos olhos, Madeleine parecia a mesma moça morena e bonita de sempre. As simetrias do seu rosto — o nariz reto, os zigomas e a mandíbula Katharine Hepburn-escos — eram quase matemáticas na sua precisão. Somente o leve vinco na testa testemunhava a pessoa levemente angustiada que Madeleine sentia, intrinsecamente, que era.
Ela podia ver os seus pais esperando lá embaixo. Estavam presos entre a porta do saguão e a porta da rua, Alton com um paletó de anarruga, Phyllida com um tailleur marinho e uma bolsa de fecho dourado combinando. Por um segundo Madeleine teve um impulso de parar o elevador e deixar seus pais presos na entrada em meio à bagunça de uma cidade universitária — os pôsteres de bandas new wave com nomes como Tristeza Profunda ou Clitóris, os desenhos pornográficos à la Egon Schiele do carinha da Rhode Island School of Design do segundo andar, todos os xerox clamorosos cujas entrelinhas traziam a mensagem de que os valores sadios e patrióticos da geração dos seus pais estavam agora na lata de lixo da história, substituídos por uma sensibilidade niilista, pós-punk, que a própria Madeleine não entendia mas ficava mais que contente de fingir que entendia para chocar os pais — antes que o elevador parasse no saguão e ela abrisse a porta e saísse para encontrá-los. Alton foi o primeiro a passar pela porta. “Olha ela aqui!”, ele disse avidamente. “A bacharel!” Com sua atitude de quem sobe à rede numa partida de tênis, ele avançou sobre ela e a colheu numabraço. Madeleine enrijeceu, com medo de estar cheirando a álcool ou, pior, a sexo. “Não sei por que você não quis deixar a gente ver o seu apartamento”, Phyllida disse, vindo na sequência. “Eu queria conhecer a Abby e a Olivia. Nós íamos adorar convidar as duas para jantar depois.” “Nós não vamos ficar para jantar”, Alton lembrou Phyllida. “Bom, nós até podíamos. Depende da agenda da Maddy.” “Não, não foi isso que foi combinado. O combinado é encontrar a Maddy para o café da manhã e aí sair depois da cerimônia.” “O seu pai e esses combinados”, Phyllida disse a Madeleine. “Você vai usar esse vestido na cerimônia?” “Não sei”, Madeleine respondeu. “Eu não consigo me acostumar com essas ombreiras que as meninas andam usando. É tão masculino.” “É da Olivia.” “Você está com uma cara bem acabadinha, Mad”, Alton disse. “Festança de noite?” “Não muito.” “Você não tem nada seu para usar?”, Phyllida perguntou. “Eu vou estar de beca, mamãe”, Madeleine disse e, para evitar maiores inspeções, passou por eles rumo à entrada. Lá fora, o sol tinha perdido a batalha com as nuvens e desaparecido.
O tempo não estava com uma cara melhor que a do fim de semana. O Baile do Campus, sexta à noite, tinha sido praticamente esvaziado pela chuva. O culto de formatura, no domingo, tinha se realizado sob uma garoa contínua. Agora, na segunda, a chuva tinha parado, mas a temperatura estava mais para o final do inverno do que para o início de verão. Enquanto esperava que os pais se juntassem a ela na calçada, ocorreu a Madeleine que ela não tinha feito sexo, não de verdade. Era um certo consolo. “A sua irmã mandou pedir desculpas”, Phyllida disse, ao sair. “Ela tem que levar o Ricardo Coração de Leão para fazer uma ultrassonografia hoje.” Ricardo Coração de Leão era o sobrinho de Madeleine, de nove semanas. Todos os outros chamavam o menino de Richard. “O que é que ele tem?”, Madeleine perguntou. “Um dos rins é pequenininho, parece. Os médicos querem ficar de olho. Na minha modesta opinião, esses ultrassons só servem para achar motivo para a gente se preocupar.” “Por falar em ultrassom”, Alton disse, “eu preciso fazer um do joelho.” Phyllida não lhe deu atenção. “Enfim, a Allie está tristíssima por não ver a sua formatura. E o Blake também. Mas eles estão torcendo para você e o seu novo amor darem uma passadinha lá no verão, na ida para Cape Cod.” Você tinha que ficar atenta perto da Phyllida. Olha ela aqui, falando aparentemente sobre o rinzinho do Ricardo Coração de Leão, e já tinha dado um jeito de mudar o assunto para o novo namorado de Madeleine, Leonard (que Phyllida e Alton nunca tinham encontrado), e para Cape Cod (onde Madeleine tinha anunciado ter planos de coabitar com ele). Em um dia normal, quando o seu cérebro estivesse funcionando, Madeleine teria conseguido se manter um passo à frente de Phyllida, mas hoje o melhor que ela conseguia era deixar que as palavras passassem boiando. Por sorte, Alton mudou o assunto. “Então, que lugar você recomenda para o café?” Madeleine se virou e olhou vagamente para a Benefit Street. “Tem um lugar, indo por aqui.
” Ela começou a arrastar os pés pela calçada. Andar — movimento — parecia uma boa ideia. Ela foi na frente deles por uma fileira de casas exóticas e bem cuidadas com letreiros históricos, e umgrande prédio de apartamentos com um telhado de duas águas. Providence era uma cidade corrupta, tomada pelo crime e controlada pela máfia, mas em cima do College Hill era difícil ver essa realidade. A cidade borrada e as fábricas de tecido, moribundas ou mortas, estendiam-se lá embaixo, no horizonte cruel. Aqui as ruas estreitas, muitas delas calçadas com pedras, escalavam morros cobertos de mansões ou se enroscavam em torno de cemitérios puritanos cheios de lápides estreitas como as portas do paraíso, ruas com nomes como Prospecto, Benevolente, Esperança e Encontro, que davamtodas no arborizado campus que ficava no topo. A mera estatura física sugeria uma estatura intelectual. “Não são uma beleza essas calçadas de pedra?”, Phyllida disse enquanto seguia. “A da nossa rua era assim. É muito mais elegante. Mas aí a prefeitura trocou por concreto.” “E nos passou a conta, ainda”, Alton disse. Ele estava mancando de leve, por último na fila. A perna direita da sua calça grafite estava inchada com a joelheira que ele usava dentro e fora da quadra de tênis. Alton tinha sido campeão do clube na sua faixa etária doze vezes consecutivas, um daqueles sujeitos mais velhos com uma faixa na cabeça delimitando uma calvície incipiente, umforehand bem inconstante e um olhar totalmente aterrador. Madeleine vinha tentando ganhar de Alton a vida toda, sem sucesso. Isso era ainda mais enervante porque ela era melhor que ele, a essa altura. Mas toda vez que ela ganhava um set de Alton ele começava a intimidá-la, a ser mau, a questionar bolas, e o jogo dela desmontava. Madeleine tinha medo que houvesse nisso algo paradigmático, que o seu destino fosse passar a vida intimidada por homens menos competentes. Como resultado, as partidas de tênis de Madeleine contra Alton tinham assumido um significado pessoal tão exagerado para ela que ela ficava tensa sempre que jogava com ele, com resultados previsíveis. E Alton ainda se vangloriava quando vencia, ainda ficava todo coradinho e saltitante, como se tivesse batido a filha por puro talento. Na esquina da Benefit com a Waterman, eles passaram por trás do campanário branco da Primeira Igreja Batista. Como preparação para a cerimônia, tinham instalado alto-falantes no gramado. Um homem de gravata-borboleta, um sujeito com cara de pró-reitor de graduação, fumava seu cigarro tensamente e examinava um monte de balões amarrados à cerca da igreja. A essa altura Phyllida tinha alcançado Madeleine, segurando-lhe o braço para vencer as pedras irregulares da calçada, que as raízes dos plátanos carcomidos que seguiam o meio-fio empurravampara cima.
Quando era menina, Madeleine achava a mãe bonita, mas isso foi há muito tempo. O rosto de Phyllida havia ficado mais pesado com os anos; as bochechas dela estavam começando a cair como as de um camelo. As roupas conservadoras que ela usava — roupas de uma filantropa ou uma embaixadora — em geral procuravam esconder seu corpo. O cabelo de Phyllida era a sede da sua força. Ele ficava dispendiosamente arrumado em um formato de cúpula lisa, como uma concha acústica para a apresentação daquele espetáculo já há tantos anos em cartaz, o seu rosto. Desde que Madeleine se conhecia por gente, Phyllida jamais tinha ficado sem palavras ou constrangida por alguma questão de etiqueta. Entre amigos, Madeleine gostava de rir da formalidade da mãe, mas muitas vezes se via comparando os modos de outras pessoas com os de Phyllida, desfavoravelmente. E agora mesmo Phyllida estava olhando para Madeleine com a expressão correta para este momento: animada com a pompa e a cerimônia, ansiosa por fazer perguntas inteligentes para algumdos professores de Madeleine que ela por acaso encontrasse, ou por trocar gracejos com outros pais de formandos. Em poucas palavras, ela estava aberta a tudo e a todos e estava bem no compasso daquela ostentação social e acadêmica; e tudo isso exacerbava a sensação de Madeleine, de estar fora do compasso, naquele dia e pelo resto da vida. Mas ela seguia em frente, atravessando a Waterman Street e subindo os degraus da Carr House, em busca de refúgio e de um café. O café tinha acabado de abrir. O cara do balcão, com uns óculos Elvis Costello, estava enxaguando a máquina de expresso. Em uma mesa junto da parede, uma menina com cabelo cor-derosa e duro fumava um cigarro de cravo e lia As cidades invisíveis. “Tainted love” tocava no rádio em cima da geladeira. Phyllida, protegendo a bolsa contra o peito, tinha parado para examinar a arte estudantil nas paredes: seis pinturas de cachorrinhos pequenos com doenças de pele usando golas elisabetanas feitas de garrafas de água sanitária. “Não é divertido, isso aqui?”, ela disse tolerantemente. “La Bohème”, Alton disse. Madeleine instalou os pais numa mesa perto da bay window, o mais longe possível da menina de cabelo rosa, e foi até o balcão. O cara não teve pressa de vir atender. Ela pediu três cafés — um grande para ela — e bagels. Enquanto os bagels estavam tostando, ela levou os cafés para os seus pais. Alton, que não conseguia ficar sentado à mesa do café sem ler, tinha apanhado um Village Voice que alguém tinha deixado de lado numa mesa vizinha e estava dando uma olhada. Phyllida encarava abertamente a menina do cabelo rosa. “Você acha que aquilo é confortável?”, ela inquiriu baixinho. Madeleine se virou e viu que a calça preta esfarrapada da menina estava presa com algumas centenas de alfinetes de segurança.
“Sei lá, mãe. Por que você não vai perguntar?” “Eu fico com medo de levar uma alfinetada.” “Segundo esse artigo aqui”, Alton disse, lendo o Voice, “o homossexualismo não existia antes do século xix. Foi inventado. Na Alemanha.” O café estava quente, bom, um salva-vidas. Ao tomar um gole, Madeleine começou a se sentir menos podre. Depois de alguns minutos, ela foi buscar os bagels. Estavam meio queimados, mas ela não queria esperar por outros, então levou aqueles mesmo para a mesa. Depois de examinar o seu comuma expressão azeda, Alton começou a raspá-lo vingativamente com uma faca de plástico. Phyllida perguntou: “Então, nós vamos conhecer o Leonard hoje?” “Não sei”, Madeleine disse. “Alguma coisa que você queira contar para nós?” “Não.” “Vocês ainda estão com planos de passar o verão morando juntos?” A essa altura Madeleine tinha dado uma mordida no seu bagel. E como a resposta para a pergunta da sua mãe era complicada — tecnicamente, Madeleine e Leonard não estavam com planos de morar juntos porque tinham terminado três semanas atrás; apesar desse fato, contudo, Madeleine não tinha perdido a esperança de uma reconciliação, e como já tinha feito um esforço tão grande para acostumar os pais à ideia de ir morar com um cara, não queria pôr isso em risco admitindo que o plano estava cancelado —, ela ficou aliviada por poder apontar para a boca cheia, o que a impedia de responder. “Bom, você agora é adulta”, Phyllida disse. “Você pode fazer o que quiser. Se bem que, só para constar, eu tenha que dizer que eu não aprovo.” “Você já fez isso constar”, Alton interrompeu.
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