Estou deitado sobre o lado esquerdo, de olhos fechados, imóvel, mas não estou adormecido nemsequer sonolento. É a minha posição de invocar-te, de poder esvaziar o espírito para receber a tua presença imaginária. Nesta imobilidade tomo muita consciência do meu corpo. O joelho direito pesame sobre o esquerdo. Osso com osso faz doer Questão de dois centímetros, procuro uma almofadinha de músculo e fico bem. As mãos estão unidas, dedos juntos, palma contra palma, como um suplicante do século catorze. Unidas e entaladas entre a face esquerda e o colchão. Mas os dedos mindinho e anelar da mão direita começam a ficar ligeiramente dormentes. Não quero mexer-me mas tem de ser. Levanto a mão no ar, abro e fecho abro e fecho abro e fecho, pensar-se-ia que te digo adeus. Mas não. Nunca te direi adeus meu amor, e a mão volta para o seu lugar. Agora podes vir. Quero que desmanches a tua trança, que espalhes os cabelos louros, frisados, imensos, sobre o meu rosto, que roces os teus seios nas minhas costas, que deslizes por cima de mim, que me inundes do teu singularíssimo perfume. Ele está a espreitar-me. Sei que está. Não preciso de abrir os olhos para sentir uma alteração na luz. Isto acontece quando ele cola a testa ao postigo de vidro fingido da minha cela para saber o que se passa aqui. Sei que ele está lá porque intercepta a luminosidade da manhã tentando certificar-se de que estou a dormir. Ele gosta que eu esteja a dormir para ter o prazer de me acordar com dois berros. Hesita. Tão quieto assim só bem desperto ou morto. Os adormecidos movem-se no sono, mastigam o cuspo, murmuram. Enquanto o meu guarda-enfermeiro-carrasco espera que eu adormeça para me chamar emseguida, tu desvaneces-te, não queres testemunhas do nosso sagrado momento de amor. Voltarás mais tarde, talvez na primeira alvorada, para me embalares na tua nudez, na tua paixão, na tua piedade.
Agora finjo que durmo. Volto-me com um resmungo, deixo cair um fio de baba pelo canto da boca. Ele entra. O doutorzinho está à tua espera, lazarento. Já ouvi falar deste novo médico que pergunta o mesmo a todos, foste violado pelo pai, abandonado pela mãe, sentes culpa na morte de um amigo. Não, não, não, respondem todos e ele fica num beco sem saída, não pode consubstanciar as suas teorias, não pode provar nada, não pode curar ninguém. Interroga-me num gabinete demasiado pequeno com o ar condicionado no máximo e tenho frio, não consigo pensar, dar respostas coerentes, quero estar nos teus braços, beijar a tua boca de ameixa doce e sumarenta como no tempo em que, e o doutorzinho, que idade tinha quando morreram os seus pais, como é que reagiu, sente-se culpado, e eu, ninguém morreu, nunca ninguém morre, só quem nós matamos na memória, no pensamento e no coração claro, mas não é isso, o que perguntamos é se, tenho frio, viu o seu pai morto, a sua mãe, algum irmão, diga-nos o que sentiu senhor Pedro Santa Clara. Não senti nada, fui eu que os matei no coração no pensamento e na memória, porque tenho a memória o pensamento e o coração ocupados com outras coisas tente lembrar-se, não me lixem os cornos, queríamos perceber a sua infância, estou cansado, alguém abusou, vá para o caralho, doutor, com o seu Freud desenterrado, o seu plural majestático e a sua psiquiatria de compêndio, tenho a certeza de que você é que levou no cu aos seis anos, pra cima de mim não o senhor Santa Clara não precisa de me ofender, acalme-o, senhor enfermeiro, eu cala-te, cabrão, se não queres ir para a cela à prova de som metido numa camisa-de-forças, o senhor doutor só te quer ajudar minha besta tenho frio, quero o colete-de-forças, este doutorzinho saído dos cueiros não percebe nada, não sabe quemeu sou pois, já sabemos que és o D. Pedro, maluco de merda, responde ao senhor doutor, responde, responde, responde, responde Mas eu não quero responder, não me quero tratar, só quero os teus olhos atlânticos, verdes, transparentes, senhores de todos os segredos, de todos os feitiços, de todas as paixões, tira-me daqui, leva-me, embala-me, adormece-me, deixa-me pousar a cabeça no teu colo de garça, nas tuas coxas perfumadas, começo a gritar Inês, Inês, Inês, Inês, Inês, espetam-me uma injecção ao acaso no corpo que se debate e suavemente surges do nevoeiro com a tua trança luminosa, os teus seios de nácar, as tuas ancas de deusa e ao som de cantos gregorianos que enfeitam a penumbra, deixas que me apoie na seda dos teus ombros para atravessar, mísero, estropiado e chorando, as ogivas da minha solidão. Ao princípio achávamos que era apenas uma coincidência, Pedro e Inês e os seus amores contrariados, depois, com o decurso dos acontecimentos e o progresso da minha loucura comecei a pensar que eu devia ser a reencarnação de D. Pedro I, o Cru, mas agora tenho a certeza de que sou o próprio rei, o que não descansa, o que não dorme, o que arrasta a amada pelas noites fantasmagóricas do seu reino, o que manda acender fogueiras para aquecer-lhe o corpo gelado, pela morte, segredamuns, pela paixão perdida, afirmam outros. Não me juraste tu, Inês, que nada conseguiria separar-nos? Como puderam os esbirros de meu pai pensar que te matavam, que matavam este amor sem fronteiras, sem tempo, sem espaço, materializado de onde em onde na história, na eternidade, no coração dos homens? Somos, para sempre, da vida e da morte, para sempre, para sempre, para sempre, somos senhores do tempo, escravos do tempo, a droga que me enfiaram nas veias envolve-me agora nos seus tentáculos quentes e sábios, leva-me pelas ruas da eternidade, por onde é dantes, é depois, é agora, passado e futuro onde perenemente te encontro, te amo, te venero e te conduzo à morte e enlouqueço. Uma manhã igual a todas as outras. O café com leite pouco quente, a taça da compota besuntada do lado de fora, a manteiga dura, impossível de espalhar no pão fresco. Não quero começar o dia a ouvir falar do meu mau feitio por isso finjo que como pouco só porque tenho pressa. Não me apetece ver a Constança com um roupão que já fez a sua época, dei-lhe um novo nos anos dela mas insiste emvestir sempre o mesmo, fica desmazelada, fica feia, fica mais magra, vem atrás de mim a pisar as manchas de sol de Inverno que as janelas desenham no encerado da casa de jantar, depois no da sala, que atravesso para apanhar as chaves que costumo largar no prato azul de porcelana antiga junto à porta da entrada. São os anos da minha tia, e sabes que ela não gosta de servir o jantar depois das nove. Se te atrasares não posso esperar por ti, estou farta de fazer tristes figuras por tua causa. Hás-de querer tomar banho, hás-de querer mudar de fato e podias mandar a tua secretária telefonar à florista, porque o presente que eu lhe comprei é um bocado simplório. Pedro, estás a ouvir. Não, não estou a ouvir. Agora não estou com cabeça para te aturar. Liga-me mais tarde, pode ser que eu perceba qual é a tua invenção do dia para me chateares. Anos da tua tia Mila, parece-me bem que não. Que não quê, Pedro, que não quê, mas eu já fechei a porta, já me meti no carro, já estou a sair o portão e a pensar que daqui até Lisboa vou demorar horas, ou saio às sete da manhã de Cascais ou apanho uma fila interminável de pára-arranca.
Tenho que pensar seriamente em arranjar um apartamento pequeno em Lisboa, perto do escritório, para evitar este calvário do trânsito, estas horas perdidas a ver crescer a manhã, agarrado ao volante e ao telemóvel, igual a todos os outros habitantes do formigueiro, atrás, à frente e aos lados. Dona Zilda, ligue à minha mulher, por favor, acho que ela precisa de qualquer coisa da florista, diga ao doutor Almeida que não marque a reunião com a agência sem eu chegar, e se o meu pai, ai o meu pai não está, então okay, eu depois falo com ele. Um dia que parecia igual a todos os outros, em que me arrependi pela milionésima vez de ter feito a vontade ao meu pai e ter ido trabalhar para a firma para compensá-lo um pouco do muito que o contrariei por ter estudado pintura em vez de economia ou direito, Belas-Artes em vez de um curso sério, desses que servem para administrar empresas e aumentar fortunas. Cheguei irritado, em vez de dizer bom dia, pedi um café sem me deter, como os magnatas dos filmes americanos. A dona Zilda e a Joana do computador ainda se ergueram das cadeiras com recados, assuntos pendentes, mas já tinha fechado a porta fazendo jus à minha reputação de intratável, bruto e mal-agradecido. A dona Zilda entrou com pezinhos de lã, senhor doutor o cafezinho, se o senhor doutor me desse licença precisava que me ouvisse um instante, um minutinho só. Já desisti de explicar à dona Zilda que não sou doutor. Ela é uma secretária à antiga, herdei-a do meu avô, toda a vida secretariou doutores e tem imensa vergonha desta despromoção que é trabalhar para um sujeito sem título académico. Portanto, se o senhor doutor permitisse, eu ausentava-me três dias para cuidar da minha mãe que tem noventa anos e apanhou uma forte gripe. Esta Joana é capaz de não dar conta de tudo mas agora entrou uma moça nova para as relações públicas que também tem formação de secretária, já lhe falei e ela não se importa, se o senhor doutor autorizasse eu já não vinha de tarde. Está autorizada, dona Zilda, mande cá a menina das relações públicas, vejo que já tratou de tudo, aliás como sempre, vá descansada que elas cá se hão-de desenrascar. Fico-lhe muito grata, senhor doutor e já liguei para a florista, está resolvido o assunto da senhora dona Constança e o doutor Almeida aguarda uma palavrinha do senhor para marcar a reunião. Ah, e o seu paizinho não vem de manhã. Com pequenas variantes um dia como todos os outros, até que bateste levemente na porta e inundaste a minha sala com a água clara dos teus olhos e salvaste a minha vida com o filtro mágico do teu sorriso e acendeste o mundo com o ouro da tua trança semidesfeita e disseste, venho saber no que posso ajudá-lo, o meu nome é Inês. Relembro este instante e logo outro com ele se confunde, outro bem mais remoto mas igualmente numa manhã de Inverno que secava ao sol a chuvada da véspera. Correria, não sei, talvez o ano de 1335, ou 37, mas quem pode confiar na memória de um louco e que importam as datas nessa dinâmica fora do tempo a que chamam paixão. Estava de visita ao meu amigo Álvaro de Castro, na Galiza, quando ele disse, (e garantirammais tarde que não o fez por acaso) gostaria de apresentar-vos a minha irmã Inês, e empurrou a porta que dava para o pátio interior da casa e me fez aceder à contemplação dessa visão imorredoira, uma adolescente alvíssima de longas tranças, bordando a matiz, no seu bastidor, uma grinalda de flores e borboletas. Quem poderia imaginar que essa imagem de serenidade e paz desencadearia para todo o sempre os ventos da tragédia, da loucura, do amor e da morte? Eras a mais cândida das donzelas. Ergueste para mim os olhos, tão de mar que neles passavam barcos ao longe, voos tranquilos de gaivotas. Mesmo depois das palavras do teu irmão, demoraste algum tempo a perceber que estavas na presença do Infante de Portugal e então, confusa e risonha, ergueste-te e, segurando o bastidor, com a agulha encostada ao dedal de ouro, fizeste a tua vénia rápida e infantil. Mas não eras criança. Já o cinto te cingia as ancas, o peito despontava no corpete de lã. O olhar, que mantiveste erguido enquanto te inclinavas e as tranças louras te roçavam os joelhos, era de mulher, determinado, altivo e tocado de azul. Quando, anos depois, entraste no reino de Portugal como aia da Princesa minha esposa, bastoume ver aflorar à comissura esquerda da tua boca a sombra imperceptível de um sorriso, para saber que, tal como eu, não esqueceras aquela manhã soalheira de Inverno, aquela corrente de desejo que nos atou e que te fez Rainha ainda antes que o próprio destino o suspeitasse. Ó D.
Pedro, abre lá a porra dos olhos que está aqui o almoço, enquanto não acalmares o facho não vais ao refeitório sou obrigado a pegar no prato de alumínio, a receber no nariz o bafo das batatas com bocados de fígado sabe-se lá de que animal, um molho aguado, rosado, a cheirar a adubo de tubérculo, às vezes pinto estes odores de comida requentada nos meus quadros de louco, numa fúria de borrões abstractos para não te retratar a ti, cuja beleza não é digna de nenhum manipulador de tintas e pincéis, às vezes a tua trança emerge da confusão alucinada das formas e eu sei que estás lá, que entraste na tela só para brincar comigo, com o meu coração esfarrapado, a minha incurável melancolia. Mastigo como um ruminante apático a comida, fazendo sopas de pão duro no molho, nada me sabe a nada, tanto faz, e vem-me à ideia um outro tempo, a certeza de ter lá estado, não, não é o século catorze, aí não havia batatas, um outro tempo, mais limpo, mais claro, mais calmo, mais natural, mas nem por isso menos cruel. Sonho às vezes contigo nesse tempo futuro, não sei se são as drogas que eles me injectam que me fazem viajar na imaginação, na memória-ao-contrário, se, simplesmente, a intemporalidade da nossa paixão nos dá o dom da ubiquidade através de todas as eras, ou se vítimas de uma maldição, nos cabe a nós representar o homem eterno, a mulher eterna, renovando perenemente a mesma história singela e consabida de sujeição, amor, e morte antecipada. Quando começámos a sair juntos, para jantar quase sempre, para passear em jardins ou emmuseus às vezes, foi crescendo no escritório um murmúrio inaudível de intriga, um clima inconfundível de reprovação. Reprovavam tudo, a tua alegria, a tua beleza, o teu desassombro, a tua simpatia, o teu humor. Tenho que pedir desculpa ao senhor doutor Pedro por lhe ter trazido aquela descarada para o ajudar quando faleceu a minha mãe qual descarada pois, a, essa Inês Castro das relações públicas que dizem que é uma doida, nem sei como o paizinho não a despede. Está no período de experiência, nem tem que lhe dar indemnização não sei de que é que está a falar dona Zilda e por favor apresse-me o dossier dos lacticínios porque tenho uma reunião no exterior. A dona Zilda está feliz porque já deu a sua opinião, aliviou a consciência, mais tarde silvará, ele que não diga que eu não o avisei. No bar da firma encontro o Afonso Madeira, economista, um dos poucos aqui dentro com quem mantenho uma relação mais próxima. Posso dizer que somos amigos, enfim, já tomámos muitos copos juntos, ele janta às vezes lá em casa e já me apresentou uma ou outra namorada. Para disfarçar, diz a Constança, pois decidiu que o Afonso, lá porque é solteiro aos quarenta anos, tem que ser homossexual. Mas não é. Tem, isso sim, muita experiência de relações com mulheres e inerentes complicações. Andas a arranjar lenha para te queimares, diz ele, mas como eu te compreendo. A mulher é deslumbrante achas bom já vi que é mais sério do que eu pensava, se te fechas ao assunto isso é um péssimo sinal. A Constança já sabe? E o que é que tu achas que a Constança deve saber? Que eu saio às vezes com uma colega de escritório? Que não existe entre nós essa coisa horrível, assustadora, demolidora de matrimónios que dá pelo nome de cama e que estás a brincar não estou a brincar mas é irrelevante, visto que já todos, incluindo tu, acreditam numa paixão tórrida, muito física, muito sensual e acham desenxabida uma relação platónica por mais poética que ela seja poética ou outra coisa qualquer que lhe queiras chamar. Deixa lá. Não te preocupes que não é desta que o mundo sai fora do eixo e cá dentro Inês, Inês, Inês, se eles soubessem que és virgem, que mo disseste com toda a altivez do teu sorriso, como quem expõe a -sua melhor arma, o seu mais belo enfeite, o seu mais valioso adereço, Pedro, eu sou virgem, mas haverá uma noite, não sei quando nem onde nem como, em que seremos um. Era na primeira luz da alvorada, lembro-me bem, saltei por cima do corpo adormecido do meu escudeiro para ir encontrar-te no claro-escuro da barbacã onde o sol nascente te punha ora na luz ora na sombra das ameias consoante, iluminada, te viravas à paisagem ou sombria rodavas para mim o teu perfil. Sabei que sou donzela e para vós guardarei a minha virgindade ou com ela morrerei. Uma jura demasiado pesada para mulher tão frágil ou talvez essa fosse a tua força. Porque eu ajoelhei e inexplicavelmente comovido te beijei, um por um, todos os dedos, esguios, branquíssimos, sem anéis. Foi nessa luz da manhã que me contaste que a princesa dona Constança te convidara para madrinha do nosso filho Luís, acabado de nascer, o que significava ficarmos, eu e tu, unidos por laços familiares que tornariam incestuosa qualquer relação física. Tal era a iminência de catástrofe que se desprendia dos nossos propósitos que julgávamos discretos, dos nossos olhares que supúnhamos imperceptíveis. A princesa sabia.
E o meu filho nasceu para morrer pouco depois e para sempre te sentiste culpada porque não pronunciaste em voz alta os votos que competiam à madrinha, apenas fingiste que os balbuciavas, num ardil ingénuo para te não vinculares ao parentesco, e depois acreditaste que o infante não ficara baptizado e morrera pagão. Mas isso foi apenas o princípio. Houve sempre um princípio, embora parecesse que tudo principiara muito antes, num mundo ainda por acontecer, quando o tempo ainda dormia, ou era tão vagaroso como o feto de um outro tempo por nascer. Desde que me mudaram a medicação, algo de estranho começou a acontecer na minha memória. Como se me lembrasse de um tempo a que por comodidade chamarei futuro, mas que não é futuro, é tão presente como aquele em que conheço Inês no escritório do meu pai ou aquele outro em que sou rei e mando matar os algozes da minha amada ou este aqui em que às vezes me fecham numcompartimento de segurança para que não destrua o hospital. É como se tudo fosse agora e se confundisse dentro de mim, e só consigo distinguir as situações paralelas porque se passam emvelocidades diferentes. É sabido que na infância o tempo não passa, na adolescência demora-se, na idade adulta corre, na velhice precipita-se. Talvez que, depois daqueles milhares de anos longos em que o tempo era o seu próprio embrião, o primeiro milénio da nossa era fosse a infância do tempo. Naquele século catorze que tantas vezes se me torna presente, encontro a demora da adolescência da história, o tempo detendo-se na penumbra dos castelos de pedra. No final do século vinte, que me trouxe a este cativeiro, descubro um ritmo diferente, mais vivo, mais rápido. Mas no princípio do século vinte e dois que agora frequentemente me aparece, tudo se passa emclarões velocíssimos numa sucessão de imagens iluminadas a azul-gelo, azul-inquietação, azulmiragem, como se o tempo tivesse envelhecido e estivesse com pressa de morrer. Estou louco, dirão. Sim, estou louco, já que chamam loucura a qualquer comportamento menos convencional ou sempre que a nossa mente tem acesso a um pouco mais do que à trivialidade estabelecida. Anda, vadio. Hoje vais comer ao refeitório. Já sabes que à mais pequena confusão… Mas eu estou calmo. Estou a pensar nisto do tempo, estou a viajar dentro da minha cabeça e, excepcionalmente, estou com fome. Sinto falta de comer sentado à mesa, o prato na mão corta-me o apetite. Há caldo, a que eles chamam verde, mas onde as couves são castanhas. Há batatas guisadas com toucinho que uma vez por outra traz um pouco de carne entremeada e é bom. Tem molho e deram-me uma boa fatia de pão. E quando estou a limpar o prato como se tivesse que devolvê-lo lavado, vem-me tudo à ideia. A primeira imagem é a do oficial de ligação entre o SPP e os serviços prisionais, a dizer, levem-no, levem-no, não me façam perder tempo com o que já está decidido. Porque eu errei. Pequei contra o Planeta.
Este é um tempo em que os Governos da Terra decidiram que todos os males do mundo advêm do excesso de população. Refiro-me aos Governos Continentais donde emanam decisões que globalizam toda a legislação relativa à protecção do Planeta Terra. As crianças aprendem na escola que é preciso escolher entre o Homem e a Natureza, e ao escolhermos a Natureza estamos a salvar o Homem. Por mais cruel que isso seja para o indivíduo, acabaram-se os tempos bárbaros em que os interesses pessoais se sobrepunham à salvação da Terra. Esta doutrina intitula-se Salvismo. Agora o Planeta é o deus a quem todos devemos sacrificar. Por isso as leis são inexoráveis. Pena de morte para quem poluir as águas, derrubar árvores, incendiar florestas, matar animais ou os mutilar. Pena de morte para quem lançar qualquer espécie de substância poluente na atmosfera. Pena de morte para quem se reproduzir fora do sistema. Há, evidentemente, regras muito estritas para a criação e abate de espécies para alimentação dos humanos. Cedências no que se refere a bens de primeira necessidade. A vida tornou-se simples, próxima da natureza: estimula-se o artesanato, encoraja-se o despojamento. Mas isso só é possível com a redução drástica da população, para que se possa acabar com o abate de árvores, a industrialização, a construção desenfreada, o exaurimento dos recursos naturais. Os Governos Nacionais orgulham-se das suas estatísticas que revelam diminuição progressiva da população que, com o tempo irá atingir a quota proposta de 20%. As medidas foram implementadas nos meados do século xxi, nem sequer passaram os cem anos das previsões, apenas cerca de setenta, pois estamos ainda no primeiro quartel do século XXII. Eu nasci em Dezembro de 2084, sou adulto na minha rememoração dos acontecimentos. Chamo-me Pedro Rey e negoceio em madeiras. É uma profissão trabalhosa, mas que me proporciona um nível de vida razoável. Dada a proibição de abater uma árvore que seja, a madeira tornou-se preciosa e atinge por vezes preços muito interessantes. Mas há que recuperá-la das demolições das cidades grandes. Isto é. As cidades periféricas, as zonas-dormitório, deixaram de existir porque a população diminui cada vez mais. E muitos dos habitantes das cidades, entusiasmados com os vantajosos apoios que lhes são propostos, optaram por ir viver em pequenas comunidades nos campos, aldeias verdejantes espalhadas por todo o país. Lisboa pouco ultrapassa o Lumiar, Benfica, Monsanto, o Porto fica-se pela Foz, Campanhã e São Mamede.
Tudo o resto tem sido sistematicamente demolido para que, uma vez os terrenos limpos e tratados, se possam plantar florestas e jardins. Respeitam-se os edifícios que pela sua arquitectura ou valor histórico mereçam ser preservados e que passam a erguer-se entre frondosas matas em vez de continuarem a ombrear com dependências de bancos e lojas de quinquilharias. Portugal tornou-se mais bonito. E a Natureza, apaziguada, fez uma trégua na sua profusão de catástrofes e epidemias. Mas não. Ainda não é o paraíso. Achei que tinha ficado horas perdido nestes pensamentos, mas afinal não estive ausente mais que trinta segundos. Os meus companheiros de mesa estão agora a pousar as colheres nos pratos de lata do guisado, um deles, de olhos tortos e mãos incertas lambe-o como um bicho, o outro, o que temferidas na cabeça rapada, bate com a colher na mesa, o terceiro puxa pelos punhos imaginários e chama o mordomo. Baptista sirva o queijo, há os que ficam de olhar perdido no nada, penso que essa é a figura que faço enquanto roo a maçã que me cabe. Na casa de jantar do andar dos meus pais no Campo Pequeno, onde penso que ainda moram se não morreram, não se mudaram, não fugiram, não os levaram presos, não foram assassinados, estamos a comer uma daquelas refeições silenciosas, servidas por criados com sapatos de nuvemBaptista sirva o queijo onde se mastigam ressentimentos, pequenos ódios e qualquer pretexto serve para a voz estridente da minha mãe.
.