A tarde mostrava-se escura e tempestuosa e, embora fosse Primavera, a temperatura da sala baixou rapidamente. Formou-se gelo nas cortinas e incrustou-se uma densa camada em volta dos lustres no teto. Os filamentos brilhantes em cada lâmpada ficaram mais finos e escureceram-se, enquanto as velas que brotavam de cada superfície disponível como uma colônia de cogumelos venenosos ficaram com os pavios apagados. A sala obscurecida encheu-se de uma nuvem amarela e sufocante de enxofre, onde sombras indistintas se contorciam e agitavam. Ao longe, ouvia-se o som de muitas vozes a gritar. Subitamente, a porta que dava para o patamar sofreu uma pressão. Avolumou-se para dentro, as pranchas a gemer. Ouviram-se passos de pés invisíveis no assoalho e por trás da cama e debaixo da escrivaninha bocas invisíveis murmuraram palavras maldosas. A nuvem sulfurosa contraiu-se numa espessa coluna de fumaça de onde se projetaram braços finos; estes lamberam o ar, quais línguas, antes de se recolherem. A coluna pairou por cima do centro do pentagrama, borbulhando constantemente até chegar ao teto como a nuvem de um vulcão em erupção. Houve uma pausa quase imperceptível. Depois, surgiram dois olhos amarelos que fitavam do meio da fumaça. Pronto, era a primeira vez dele. Eu queria assustá-lo. E consegui. O garoto de cabelo escuro encontrava-se dentro de um pentagrama próprio, menor, cheio de runas diferentes, a um metro de distância do principal. Estava pálido como um cadáver, tremia como uma folha morta fustigada por um vento forte. Os seus dentes bateram com força no maxilar trêmulo. Gotas de suor escorreram-lhe da testa, transformando-se em gelo quando deslizarampelo ar. Bateram no chão com o som de pedras de granizo. Muito bem, e daí? Quero dizer, ele parecia ter cerca de doze anos. Olhos arregalados, faces encovadas. Não dá tanto prazer pregar um susto daqueles num aprendiz magricela. {1} Portanto, fiquei a pairar, aguardando, na esperança de que ele não fosse demorar demais a passar à fórmula de expulsão. Para me manter ocupado, fiz com que chamas azuis lambessem as extremidades interiores do pentagrama, como se procurassem uma maneira de sair e apoderar-se dele.
Um perfeito absurdo, como é lógico. Já me certificara e a proteção fora muito bem traçada. Infelizmente, não existia qualquer erro na fórmula, onde quer que procurasse. O moleque pareceu encher-se finalmente de coragem para falar. Adivinhei através de uma agitação nos lábios que não me pareceu induzida exclusivamente pelo puro medo. Deixei que o fogo azul se apagasse, substituindo-o por um fedor. O garoto falou. Com uma voz muito esganiçada. — Ordeno… que… que… — Anda logo com isso! — …d-d-diga-me o teu n-nome. Normalmente, é assim que os jovens começam. Lengalengas sem sentido. Ele sabia e eu sabia também que ele já conhecia o meu nome; caso contrário, como foi que me chamou? São necessárias as palavras certas, os atos certos e, sobretudo, o nome certo. Quero dizer, não é o mesmo que chamar um táxi: não vem um qualquer, quando se chama. Escolhi uma voz forte, grossa, assim como o chocolate preto, do tipo que ressoa por todo o lado e em lado nenhum e faz eriçar os cabelos nas nucas dos inexperientes. — BARTIMAEUS. Vi o garoto engolir em seco com esforço ao ouvir a palavra. Ótimo — dava para perceber que não era de todo estúpido: sabia quem e o que eu era. Conhecia a minha reputação. Depois de um momento para engolir alguma mucosidade acumulada, falou outra vez. — Eu-eu ordeno de novo que responda. É o B-Bartimaeus que foi em tempos chamado pelos magos para reparar as muralhas de Praga? Este aprendiz era um atraso de vida! Quem mais poderia ser? Aumentei um pouco o volume. O gelo nas lâmpadas estalou como açúcar caramelizado. Por trás das cortinas, o vidro da janela agitouse e zuniu. O garoto balançou-se nos calcanhares. — Sou Bartimaeus! Sou Sakhr al-Jinni, N’gorso, o Poderoso e a Serpente das Plumas de Prata! Reconstruí as muralhas de Uruk, Karnak e Praga.
Falei com Salomão. Corri juntamente com os búfalos ancestrais das planícies. Estive de guarda ao Velho Zimbábue até as pedras caírem e os chacais se alimentarem da sua gente. Sou Bartimaeus! Não reconheço qualquer amo. Por isso, sou eu quem te dá ordens, garoto. Quem é você para me chamar? Impressionante, hein? E, ainda por cima, é tudo verdade, o que significa mais poder. E não estava fazendo só para me armar. Esperava sinceramente que o garoto fosse levado a dizer-me, por sua vez, o seu nome, o que me daria uma oportunidade quando ele estivesse de costas para mim{2} . Mas não tive sorte nenhuma. — Pelos limites do círculo, as pontas do pentagrama e a cadeia de runas, sou teu amo! Obedecerá à minha vontade! Aquela fórmula soava particularmente desagradável, vinda da boca de um adolescente magricela, e também numa voz absurdamente esganiçada. Reprimi a tentação de lhe dizer o que pensava e entoei a resposta habitual. Qualquer coisa para pôr fim naquilo rapidamente. — Qual é o teu desejo? Confesso que já estava admirado. A maioria dos aprendizes de magos olha primeiro e faz perguntas depois. Dão uma passada de olhos, avaliando o seu poder potencial, mas estão nervosos demais para experimentarem. Além do mais, também não é todo dia que aparece alguém como este insignificante presunçoso a chamar entidades como eu. O garoto pigarreou. Chegara o momento. Fora por aquilo que tanto ansiara. Sonhara com isto durante anos, quando devia estar deitado na cama pensando em carros de corrida e garotas. Aguardei, carrancudo, o pedido patético. O que seria? Levitar algum objeto era o habitual, ou deslocá-lo de um lado para o outro do quarto. Talvez quisesse que eu criasse uma ilusão. Podia ser divertido: seria uma maneira de desvirtuar o pedido dele e deixá-lo transtornado. {3} — Ordeno que vá buscar o Amuleto de Samarcanda na casa de Simon Lovelace e o traga à minha presença amanhã ao raiar do dia.
— Você o quê?! — Ordeno que vá buscar… — Sim, eu ouvi o que disse. — Não queria parecer petulante. Escapou-me, e os meus tons sepulcrais escaparam um pouco também. — Então vai! — Espera aí! — Senti no estômago aquela sensação de repulsa que se tem quando nos expulsam. Como alguém a sugar-nos as entranhas pelas costas. Têm que dizer três vezes para se livrarem de nós, se insistimos em ficar ali. Normalmente não ficamos. Mas desta vez permaneci onde estava, dois olhos brilhantes numa atmosfera pesada de fumaça turva. — Tem noção do que está me pedindo, garoto? — Não pretendo conversar, nem discutir, nem negociar contigo, nem enveredar por quaisquer enigmas, apostas ou jogos de azar, nem… — Não tenho a menor vontade de conversar com um adolescente magricela, pode acreditar nisso, por isso poupe-me das tolices que decorou. Alguém está se aproveitando de você. Quem é ele — o teu amo, presumo? Um covarde mirrado que se esconde por trás de um garoto. — Deixei que a fumaça recuasse um pouco, revelei os meus contornos pela primeira vez, pairando difusamente nas sombras. — Está brincando duplamente com o fogo, se pretende roubar um mago verdadeiro, invocando-me. Onde estamos? Londres? Anuiu. Sim, era mesmo Londres. Alguma casa urbana desagradável. Inspecionei o quarto através das fumaças químicas. Teto baixo, papel de parede descascando; uma única estampa sumida na parede. Era uma sombria paisagem holandesa — uma escolha no mínimo curiosa, para um garoto. Estava à espera de garotas populares, jogadores de futebol… A maior parte dos magos é conformista, mesmo quando jovem. — Ai de mim… — A minha voz saiu frouxa e melancólica. — É um mundo malvado e eles ensinaram-te muito pouco. — Não tenho medo de ti! Dei-te a ordem e exijo que vá! A segunda expulsão. Os meus intestinos pareciam estar sendo passados por um cilindro a vapor. Senti a minha forma vacilar, tremer.
Esta criança tinha poder, apesar de ser muito jovem. — Não é de mim que deve ter medo, pelo menos no momento. Simon Lovelace virá atrás de você assim que descobrir que roubaram o amuleto. Não te poupará por ser jovem. — Está sujeito à minha vontade. — Estou. — Tinha que lhe entregar, ele estava determinado. E era muito estúpido. A mão dele moveu-se. Ouvi a primeira sílaba do Aperto Sistemático. Preparava-se para infligir dor. Fui. Não me preocupei com mais efeitos especiais. 2 Quando, no lusco-fusco, pousei no alto de um poste de iluminação pública de Londres, a chuva escorria por ele abaixo. Foi a minha sorte. Assumira a forma de um melro, um bichão alegre de bico amarelo e plumagem negra como o azeviche. Passados segundos, eu era a ave mais suja que já pousou em Hampstead. Virando a cabeça para cá e para lá, avistei uma faia grande do outro lado da rua. As folhas apodreciam junto à base — já fora despida pelos ventos de Novembro —, mas os brotos grossos dos seus ramos proporcionavam alguma proteção da chuva. Voei até lá, passando por cima de um carro solitário que avançava pela ampla rua suburbana. Por trás dos muros altos e da folhagem perene dos seus jardins, as feias fachadas brancas de várias moradias bastante grandes destacavam-se no escuro como os rostos dos mortos. Bem, talvez fosse o meu estado de espírito que as fazia parecer assim. Cinco coisas me preocupavam. Para começar, a dor constante que acompanha qualquer manifestação física já estava dando sinal. Mudar de forma afastaria a dor por algum tempo, mas podia igualmente fazer recair as atenções sobre a minha pessoa numa fase crítica da operação.
Até ter a certeza do que me envolvia, teria de permanecer uma ave. A segunda coisa era o tempo. Tenho dito. Em terceiro lugar, esquecera as limitações dos corpos materiais. Sentia um comichão bem por cima do meu bico, e em vão tentava coçá-lo com uma asa. Quarta, aquele moleque. Tinha muitas perguntas sobre ele. Quem era? Porque acalentava um desejo de morte? Como poderia vingar-me antes dele morrer por me sujeitar a esta missão? As notícias correm depressa e eu ainda ia arranjar problemas por andar numa roda viva por causa de um insignificante como ele. Quinta… o Amuleto. Para todos os efeitos, era um feitiço poderoso. Não conseguia deixar de pensar no que o moleque tencionava fazer com ele. Não deveria ter a mínima ideia. Talvez se limitasse a usá-lo como um trágico acessório de moda. Talvez furtar amuletos fosse a última mania, a versão de mago para o roubo de brasões de automóvel. Mesmo assim, primeiro tinha de consegui-lo e isso não seria propriamente fácil, mesmo para mim. Fechei os meus olhos de melro e abri os interiores, um após o outro, cada qual num plano diferente {4} . Olhei para trás e para frente ao meu redor, saltitando no ramo para conseguir a melhor visão. Nada menos de três casas ao longo da rua tinham proteção mágica, o que mostrava como era elegante a zona em que estávamos. Não inspecionei as outras duas lá no alto da rua; era a casa do outro lado da rua, para lá da iluminação pública, que despertava o meu interesse. A residência de Simon Lovelace, mago. O primeiro plano não tinha nada, mas ele preparara um elo de defesa no segundo — brilhava como um filamento azul ao longo do muro alto. Também não terminava ali; estendia-se pelo ar, por cima da casa branca baixa e voltava a descer do outro lado, formando uma enorme cúpula brilhante. Nada mal, mas eu conseguia dar conta do recado. Não havia nada no terceiro nem no quarto planos, mas no quinto detectei três sentinelas que perambulavam no meio do ar, bem do outro lado da borda do muro do jardim. Eram todas de um amarelo monótono, cada uma formada por três pernas musculares que rodavam num eixo de cartilagem.
Por cima do eixo havia uma massa borrada, que exibia duas bocas e vários olhos vigilantes. As criaturas andavam arbitrariamente para cá e para lá, percorrendo o perímetro do jardim. Instintivamente, comprimi-me contra o tronco da faia, mas sabia que era pouco provável que elas me localizassem dali. A esta distância, eu devia parecer um melro em todos os sete planos. Só quando me aproximasse mais é que elas conseguiriam penetrar a minha ilusão. O sexto plano estava vazio. Mas o sétimo… esse era esquisito. Não conseguia ver nada de óbvio — a casa, a rua, a noite, pareciam todas inalteradas — mas, chamem de intuição se quiserem, tinha certeza de que existia algo ali, à espreita. Esfreguei o bico hesitantemente num nó da madeira. Tal como esperava, havia uma grande quantidade de magia poderosa e ativa ali. Ouvira falar de Lovelace. Era considerado um mago formidável e muitíssimo exigente. Felizmente, nunca fora chamado para servi-lo e não desejava por nada a sua inimizade ou a dos seus servidores. Mas tinha de obedecer àquele moleque. O melro encharcado levantou voo do ramo e atravessou a estrada, evitando convenientemente o arco de luz do poste mais próximo. Pousou numa porção de erva raquítica ao canto do muro. Quatro sacos do lixo pretos tinham sido deixados aqui fora, para serem recolhidos na manhã seguinte. O melro saltou para trás dos sacos. Um gato que estivera observando a ave {5} a alguma distância, esperou alguns momentos para ver se ela aparecia, perdeu a paciência e foi atrás dela, cheio de curiosidade. Não encontrou nenhuma ave por trás dos sacos, preta ou de outra cor. Não havia nada ali a não ser um montinho de terra acabado de levantar por uma toupeira. 3 Detesto o gosto da lama. Não é nada digno de um ser do ar e do fogo. O peso cansativo da terra me oprime demais sempre que entro em contato com ela. É por isso que sou minucioso em relação às minhas encarnações.
Aves, bom. Insetos, bom. Morcegos, razoável. As coisas que correm depressa são muito boas. Os habitantes das árvores são melhores ainda. Coisas subterrâneas, nada bom. Toupeiras, mau. Mas não vale a pena ficar com esquisitices, quando se tem de ultrapassar um escudo protetor. Acertara ao raciocinar que ele não chegava ao subsolo. A toupeira escavava o túnel bem, bem lá no fundo, debaixo dos alicerces do muro. Não soou qualquer alarme mágico, apesar de ter batido cinco vezes com a cabeça numa pedra {6} . Cavei de novo no sentido ascendente, alcançando a superfície depois de vinte minutos de fungadas, escavadas e torcidas do meu focinho redondo às suculentas minhocas que descobria a cada duas raspadas. A cabeça da toupeira assomou cautelosamente junto à pequena pilha de terra que empurrara para a superfície imaculada do gramado de Simon Lovelace. Olhou à sua volta, inspecionando o local. Havia luzes acesas na casa, no térreo. As cortinadas estavam corridas. Os andares de cima, tanto quanto a toupeira podia ver, estavam às escuras. O arco azul translúcido do sistema de defesa mágica passava ali por cima. Uma sentinela amarela seguia o seu estúpido caminho três metros acima da vegetação. As outras duas estariam nos fundos da casa. Experimentei de novo o sétimo plano. Nada ainda, mas continuava a mesma sensação inquietante de perigo. Enfim. A toupeira retirou-se para baixo do solo e escavou túneis sob as raízes da relva, em direção à casa. Reapareceu no canteiro de flores bem embaixo das janelas mais próximas.
Pensava ativamente. Era inútil continuar avançando desta forma, por mais tentador que fosse entrar nos buracos. Teria que encontrar um método diferente. Chegou às orelhas peludas da toupeira o som de gargalhadas e o tilintar de copos. Era extraordinariamente alto, ecoando de muito próximo. Fora colocado na parede um respiradouro, que o tempo se encarregara de rachar, a menos de meio metro de distância. Conduzia ao interior. Com algum alívio, transformei-me numa mosca. 4 Da segurança do ventilador, entrevi, com os meus olhos multifacetados, uma sala de estar bastante tradicional. Havia um carpete de pelo espesso, papel de parede listrado sujo, uma coisa de cristal hedionda que fingia ser um lustre, dois quadros a óleo que o tempo escurecera, um sofá, duas poltronas (também listrados), uma mesinha de café baixa sobre a qual se encontrava uma bandeja de prata e, na bandeja, uma garrafa de vinho tinto e nenhum copo. Estes estavam nas mãos de duas pessoas. Uma delas era uma mulher. Era um tanto jovem (para um ser humano, o que significa infinitesimalmente jovem) e provavelmente bastante atraente, assim para o carnudo. Olhos grandes, cabelo escuro, cortado curto. Memorizei-a automaticamente. Amanhã tomaria o aspecto dela quando fosse visitar de novo aquele moleque. Só que nua. Veríamos como é que aquela mente inflexível, mas muitíssimo adolescente reagia àquilo! {7} Todavia, no momento eu estava mais interessado no homem a quem esta mulher sorria e acenava com a cabeça. Era alto, magro, atraente como os galãs dos romances, com o cabelo penteado para trás e fixo com uma brilhantina fedorenta. Usava óculos redondos pequenos e tinha uma boca grande com bons dentes. O maxilar era proeminente. Algo me dizia que este era o mago, Simon Lovelace. Seria a sua aura indefinida de poder e autoridade? Seria o ar importante com que passeava pela sala, gesticulando? Ou seria o pequeno diabrete que flutuava junto do seu ombro (no segundo plano), muito atento a qualquer perigo que pudesse espreitar? Esfreguei as minhas duas patas dianteiras uma na outra com irritação. Teria de ser muito cuidadoso. O diabrete só vinha atrapalhar.
{8} Que pena eu não ser uma aranha. Conseguem ficar quietas durante horas e não pensar em nada. As moscas são bem mais nervosas. Mas se eu mudasse aqui, o escravo do mago iria perceber comcerteza. Tinha de obrigar o meu corpo teimoso a ficar parado, e ignorar a dor que voltava a acumular, desta vez dentro da minha retina. O mago estava conversando. Não fez muito mais que isso. A mulher olhava para ele com olhos servis tão arregalados e perdidos em adoração que a minha vontade foi de mordê-la. — …será uma ocasião magnífica, Amanda. Estará na mira da sociedade londrina! Sabia que o próprio Primeiro-Ministro está ansioso por ver a tua propriedade? Sim, soube de fonte segura. Os meus inimigos andam em volta dele há semanas com as suas insinuações vis, mas ele mostrou sempre empenho em realizar a conferência na mansão. Por isso, está vendo meu amor, ainda consigo influenciá-lo quando é preciso. O importante é saber manobrá-lo, elogiar a sua vaidade… Aqui para nós, ele é mesmo muito fraco. A sua especialidade é o fascínio, e até com isso ele raramente se preocupa agora. Para quê? Ele tem homens especializados para fazerem por ele… O mago continuou a falar naquele tom durante vários minutos, indicando nomes com uma energia inesgotável. A mulher bebeu o seu vinho, anuiu, ficou boquiaberta, e exclamou nos momentos certos e encostou-se a ele no sofá. Quase dei voltas com o tédio. {9} De repente, o diabrete ficou alerta. A sua cabeça rodou cento e oitenta graus e olhou para uma porta no outro extremo da sala. Beliscou a orelha do mago, para avisá-lo. Segundos depois, abriu-se uma porta e um criado de libré, com a cabeça careca, entrou respeitosamente. — Queira desculpar, senhor, mas o seu carro está pronto. — Obrigado, Carter. Eu já vou. O criado de libré retirou-se.
O mago colocou o seu copo de vinho (ainda cheio) na mesinha de café e pegou na mão da mulher. Beijou-a galanteadoramente. Nas costas dele, o diabrete esboçou caretas de extrema repugnância. — Custa-me ter de ir, Amanda, mas o dever me chama. Não estarei em casa esta noite. Posso telefonar? Uma ida ao teatro amanhã, talvez? — Isso seria magnífico, Simon. — Então está combinado. O meu bom amigo Makepeace estreou uma peça nova. Vou já tratar dos bilhetes. Por agora, Carter irá conduzi-la para casa. Homem, mulher e diabrete abandonaram a sala, deixando a porta escancarada. Por trás deles, uma mosca cautelosa saiu do seu esconderijo e atravessou silenciosamente a sala até um ponto elevado que lhe dava uma visão da entrada. Durante alguns minutos houve atividade, trouxeram-se casacos, deram-se ordens, bateram-se portas. Depois o mago saiu de casa. Voei até à entrada. Era ampla, fria e revestida com um chão de ladrilhos pretos e brancos. Fetos verde-vivo saíam de vasos de cerâmica gigantescos. Contornei o lustre, pondo-me à escuta. Reinava o silêncio. Os únicos sons vinham de uma cozinha distante e eram perfeitamente inocentes — apenas o bater de panelas e travessas e vários arrotos, possivelmente emanando do cozinheiro. Ponderei a hipótese de emitir uma discreta pulsação mágica para ver se conseguia detectar o paradeiro dos artefatos do mago, mas decidi que era arriscado demais. Para começar, as criaturas de sentinela no exterior poderiam detectá-la, mesmo que não existissem mais defesas. Eu, a mosca, teria de ir à caça pessoalmente. Todos os planos estavam livres. Atravessei a entrada, depois — seguindo uma intuição — subi as escadas.
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