Os assassinos invadiram os jardins do palácio à meia-noite, quatro sombras escuras fugazes coladas ao muro. A queda foi alta, o solo duro; o impacto deles não fez mais ruído do que os pingos da chuva. Permaneceram ali acocorados três segundos, abaixados e imóveis, cheirando o ar. Depois avançaram furtivamente pelos jardins escuros, por entre as tamargueiras e tamareiras, em direção aos aposentos onde o rapaz repousava. Uma chita acorrentada agitou-se no sono; ao longe no deserto, os chacais uivaram. Caminhavam nas pontas dos pés bicudos, sem deixar rastro na erva comprida molhada. As suas túnicas esvoaçavam atrás deles, fragmentando de leve as sombras. O que era possível ver? Nada senão folhas agitando-se na brisa. O que era possível ouvir? Nada senão o vento a suspirar nas frondes das palmeiras. Um djinni crocodilo, de sentinela junto ao lago sagrado, não se mexeu apesar de terem passado bem rente à sua cauda. Para humanos, até que não estava nada mal feito. O calor do dia era uma lembrança; o ar estava gélido. Por cima do palácio uma lua fria redonda iluminava, banhando de prata os telhados e os pátios {1} . Ao longe, para lá dos muros, a grande cidade murmurava na noite: rodas nas estradas de terra batida, gargalhadas distantes do bairro do prazer ao longo do cais, a maré a bater nas suas pedras. A luz de luminárias brilhava nas janelas, cinzas incandesciam nas lareiras dos telhados e, do alto da torre ao lado da entrada do porto, a grande fogueira de vigia fazia chegar a sua mensagem até o mar. A sua imagem dançava como um diabrete-luz nas ondas. Nos seus postos, os guardas jogavam jogos de azar. Nas salas comunitárias, os criados dormiam em camas de junco. Os portões do palácio estavam trancados com fechaduras triplas, cada uma comespessura superior à de um homem. Não havia olhos virados para os jardins ocidentais, onde a morte viera fazer uma visita, secreta como um escorpião, em quatro pares de pés silenciosos. A janela do rapaz ficava no primeiro piso do palácio. Quatro sombras pretas acocoraram-se por debaixo da parede. O líder fez um sinal. Um a um, colaram-se à alvenaria; um a um, começaram a subir, suspensos pelas pontas dos dedos e as unhas dos dedos grandes dos pés {2} . Só assim poderiamter escalado colunas de mármore e cascatas de gelo desde Massilia {*} a Hadhramaut {**} ; os blocos de pedra rugosa eram agora, fáceis para eles.
Foram subindo, como morcegos pela parede de uma caverna. O luar incidiu em algo brilhante suspenso das suas bocas. O primeiro dos assassinos chegou ao parapeito da janela. Saltou para lá feito um tigre e espreitou o aposento. O luar banhava o quarto; o enxergão estava iluminado como se fosse de dia. O rapaz dormia, imóvel como se já estivesse morto. O cabelo escuro caía solto sobre as almofadas, a garganta pálida e inocente a brilhar nas sedas. O assassino tirou o punhal de entre os dentes. Com silenciosa deliberação, observou o quarto, avaliando a sua extensão e a possibilidade de armadilhas. Era grande, sombrio, despojado de ostentação. Três colunas sustentavam o teto. Ao fundo, havia uma porta de teca, trancada do lado de dentro. Uma arca, meio cheia de roupas, encontrava-se aberta, junto à parede. Viu uma cadeira real coberta com um manto descartado, sandálias no chão, uma bacia de ônix cheia de água. Pairava no ar um leve vestígio de perfume. O assassino, para quem semelhantes odores eram sinal de decadência e corrupção, franziu o nariz {3} . Semicerrou os olhos; virou o punhal ao contrário, segurando-o entre o indicador e o polegar pela ponta brilhante e reluzente. Agitou-se uma vez, duas. Estava a avaliar a distância — nunca falhara um alvo, de Cartago à antiga Cólquida {***} . Cada faca que atirara fora encontrar à respectiva garganta. O pulso dele tremeu; o arco de prata da trajetória da faca cortou o ar em dois. Aterrou com um ruído suave, cravando-se até o cabo na almofada, a escassos centímetros do pescoço do rapaz. O assassino estacou, na dúvida, ainda acocorado no parapeito. As costas das suas mãos apresentavam as cicatrizes em linhas cruzadas que o distinguiam como membro da academia tenebrosa. Um membro nunca falhava o seu alvo.
O lançamento fora exato, calibrado com precisão…E, no entanto, falhara. A vítima teria se movido uma fração crucial? Impossível — o rapaz dormia profundamente. Retirou da sua pessoa um segundo punhal {4} . Outra pontaria cuidadosa (o assassino estava consciente dos seus irmãos atrás e por baixo de si na parede: sentia o peso sinistro da impaciência deles). Um movimento do pulso, um arco momentâneo… Com um ruído surdo, o segundo punhal cravou-se na almofada, a centímetros do outro lado do pescoço do príncipe. Enquanto dormia, talvez sonhasse — surgiu um sorriso espectral aos cantos da sua boca. Por trás da gaze preta do lenço que lhe cobria o rosto, o assassino carregou o cenho. Retirou de dentro da túnica uma faixa de tecido, firmemente enrolada numa corda. Em sete anos, desde que o Eremita lhe ordenara a primeira morte, seu garrote nunca havia se partido, as mãos nunca lhe haviamfalhado {5} . Com a ligeireza de um leopardo, deslizou do parapeito e avançou furtivamente pelo chão enluarado. Na sua cama, o rapaz murmurou algo. Agitou-se por baixo do lençol. O assassino ficou rígido, uma estátua preta no centro do quarto. Por trás, na janela, dois dos seus companheiros assomaram no parapeito. Ficaram à espera, observando. O rapaz soltou um leve suspiro e ficou sossegado mais uma vez. Ajeitou o rosto nas almofadas, um cabo de punhal a sair de cada lado. Passaram sete segundos. O assassino voltou a mexer-se. Contornou furtivamente as almofadas, enrolando as pontas do cordão em volta das mãos. Estava agora bem por cima da criança; curvou-se rapidamente, colocando o cordão sobre a garganta adormecida… Os olhos do rapaz abriram-se. Estendeu uma mão, agarrou o pulso esquerdo do assassino e, semqualquer esforço, atirou-o de cabeça contra a parede mais próxima, partindo-lhe o pescoço como umcaule de junco. Atirou para trás o lençol de seda e, de um salto, ficou livre, virado para a janela. No parapeito, silhuetado na Lua, dois dos assassinos silvaram como cascavéis. A morte do seu companheiro era uma afronta ao orgulho coletivo.
Um tirou da túnica um tubo de osso; de uma cavidade entre os dentes, aspirou uma pequena bola, fina como a casca de um ovo, cheia de veneno. Levou o tubo aos lábios, soprou uma vez: a bola atravessou o quarto, dirigida ao coração da criança. O rapaz deu um pulo; a bola desfez-se contra uma coluna, salpicando-a de líquido. Uma pluma de vapor verde aspergiu o ar. Os dois assassinos saltaram para dentro do quarto; um deste lado, o outro daquele. Cada umsegurava agora uma cimitarra na mão; rodaram-nas em complexos floreados, por cima das cabeças, os olhos escuros inspecionando o quarto. O rapaz desaparecera. O quarto estava em silêncio. O veneno verde corroía a coluna; as pedras crepitavam com ele. Nem uma só vez em sete anos, de Antioquia a Pérgamo, estes assassinos haviam perdido uma vítima {6} . Os braços deles cessaram o movimento; abrandaram o passo, escutando com atenção, procurando sentir no ar o cheiro do medo. De trás de uma coluna no centro do quarto chegou o ruído ínfimo de um raspar, como um rato a agitar-se na sua cama de palha. Os assassinos entreolharam-se; avançaram lentamente, ponta de pé em ponta de pé, as cimitarras erguidas. Um foi para a direita, passando pelo corpo flácido do seu companheiro. Um foi para a esquerda, passando junto à cadeira dourada, coberta com o manto real. Moviam-se como fantasmas em volta das margens do quarto, contornando a coluna de ambos os lados. Por trás da coluna, um movimento furtivo: uma forma de rapaz escondida nas sombras. Ambos os assassinos a viram; ambos ergueram as cimitarras e precipitaram-se, da esquerda, da direita. Ambos atacaram com a rapidez do louva-a-deus. Um grito duplo, gorgolejante e entrecortado. Surgiu do outro lado da coluna uma confusão de braços e pernas a rolar aos tropeções: os dois assassinos, entrelaçados num abraço apertado, cada um trespassado pela espada do outro. Tombaram no jorro de luar no centro do aposento, contorceram-se levemente e ficaram quietos. Silêncio. O parapeito da janela estava vazio, nada nele além do luar. Uma nuvem passou sobre o disco redondo brilhante, escurecendo os corpos no chão.
A fogueira de sinalização na torre do porto lançava uma tênue vermelhidão no céu. Reinava a quietude. A nuvem avançou para o mar, a claridade voltou. O rapaz saiu de trás da coluna, os pés descalços silenciosos no chão, o corpo rígido e cauteloso, como se sentisse uma pressão no quarto. Com passos cuidadosos, aproximou-se da janela. Lenta, lentamente, cada vez mais próximo… Viu a massa amortalhada dos jardins, as árvores e as torres das sentinelas. Reparou na textura do parapeito, na forma como o luar incidia nos seus contornos. Mais próximo ainda… As suas mãos assentavam agora na própria pedra. Debruçouse para olhar para o pátio ao fundo do muro. A sua garganta branca e delicada esticou-se… Nada. O pátio estava vazio. A parede por baixo era a pique e lisa, as suas pedras realçadas pelo luar. O rapaz escutou o sossego. Bateu com os dedos no parapeito, encolheu os ombros e voltou para dentro. Então, o quarto assassino, agarrado como uma aranha preta e fina às pedras por cima da janela, desceu por trás dele. Os seus pés emitiram o ruído de penas a cair na neve. O rapaz ouviu; torceu-se, virou-se. Uma faca brilhou, rodou, foi desviada por uma mão desesperada — o seu gume tiniu na pedra. Dedos férreos agarraram o pescoço do rapaz; foi levantado do chão. Caiu, aterrando comforça no assoalho. O peso do assassino estava sobre ele. Manietara-o. Não conseguia se mexer. A faca desceu. Desta vez atingiu o alvo.
Afinal terminara como devia. Acocorado por cima do corpo do rapaz, o assassino permitiu-se respirar — pela primeira vez desde que os seus colegas tinham ido ao encontro dos seus fins. Acocorou-se rigidamente, soltou a faca e deixou cair o pulso do rapaz. Inclinou a cabeça no sinal tradicional de respeito pela vítima tombada. E foi então que o rapaz estendeu a mão e arrancou a faca do centro do peito. O assassino pestanejou de consternação. — Sabe, não é prata — disse o rapaz. — Engano. — Ergueu a mão. Uma explosão no quarto. Caíram faíscas verdes em cascata pela janela. O rapaz pôs-se de pé e tirou a faca do enxergão. Compôs a tanga e soprou alguns flocos de cinza dos braços. Depois tossiu ruidosamente. Uma ínfima raspada. Do outro lado do quarto, a cadeira dourada mexeu-se. O manto colocado sobre ela foi afastado para o lado. De entre as suas pernas saiu outro rapaz, idêntico ao primeiro, mas corado e despenteado de tantas horas escondido. Debruçou-se sobre os corpos dos assassinos, respirando a custo. Depois olhou para o teto. Nele estava o contorno enegrecido de um homem. Tinha uma expressão um pouco sobressaltada. O rapaz baixou o olhar para o sósia impassível que o fitava do outro lado do quarto enluarado. Simulei uma saudação. Ptolomeu afastou o cabelo escuro dos olhos e fez uma vênia.
— Obrigado, Rekhyt — disse. 1 Bartimaeus Os tempos mudam. Uma vez, há muitos, muitos anos, ninguém era melhor do que eu. Conseguia deslocar-me pelo ar num farrapo de nuvem e fazer levantar tempestades de poeira à minha passagem. Conseguia atravessar montanhas, erguer castelos em colunas de vidro, derrubar florestas com um único sopro. Esculpi templos nos nervos da terra e chefiei exércitos contra legiões de mortos, fazendo com que os harpistas de uma dúzia de países tocassem música em minha memória e os cronistas de uma dúzia de séculos narrassem os meus feitos. Sim! Eu era Bartimaeus — veloz como uma chita, forte como umelefante macho, mortífero como o ataque de uma cobra-coral! Mas isso foi então. E agora… Bem, neste preciso momento, encontrava-me estendido no meio de uma rua à meianoite, bem espalmado e a ficando cada vez mais. Porquê? Porque tinha em cima de mim um edifício de pernas para o ar. O seu peso esmagava-me. Os músculos ficaram tensos, os tendões saltaram; por mais que me esforçasse, não conseguia libertar-me. A princípio, não existe nada de vergonhoso em debatermo-nos quando um edifício nos cai em cima. Já anteriormente passara por situações semelhantes; fazia parte do conteúdo funcional {7} . Mas sempre ajuda se o edifício em questão for luxuoso e grande. Porém, neste caso, a terrível construção que fora arrancada dos alicerces e arremessada em mim de grande altura não era grande nemsuntuosa. Não era nem a parede de um templo nem um obelisco de granito. Não era sequer o teto de mármore do palácio de um imperador. Não. O objeto que me prendia desgraçadamente ao solo, como uma borboleta no expositor de um colecionador, era oriundo do século XX e tinha uma função muito específica. Pronto, eu digo, era um sanitário público. De dimensões consideráveis, por sinal, mas não deixava de ser o que era. Felizmente para mim, não havia harpistas nem cronistas de passagem por ali. Como atenuante, devo referir que o sanitário em questão tinha paredes de concreto e um telhado de ferro muito grosso, cuja aura cruel ajudava a enfraquecer os meus membros já debilitados. E havia sem dúvida lá dentro diversos canos, reservatórios de água e torneiras desesperadamente pesados, contribuindo tudo para a massa total. Mas não deixava de ser um espetáculo muito degradante um djinni da minha estatura ser esmagado por ele.
Na verdade, incomodava-me mais a abjeta humilhação do que o peso a esmagar-me. A toda a minha volta a água das canalizações partidas e destruídas escorria pesarosamente para as sarjetas. Apenas a minha cabeça se projetava, liberta, de uma das paredes de concreto; o meu corpo estava completamente aprisionado {8} . Estes eram os aspectos negativos. O lado bom era que não poderia voltar para a batalha que decorria de uma ponta à outra da rua suburbana. Era uma batalha algo comedida, especialmente no primeiro plano. Não se via nada de especial. As luzes das casas estavam todas apagadas, os postes públicos elétricos tinham sido amarrados emnós; a rua estava escura como um lingote de tinta, uma sólida pedra preta. Brilhavam friamente algumas estrelas lá em cima. Uma ou duas vezes apareceram e desapareceram luzes indistintas verde-azuladas, como explosões distantes debaixo de água. As coisas aqueciam no segundo plano, onde era possível ver dois bandos rivais de aves descrevendo círculos e atacando-se, lutando selvaticamente com asas e bicos, garras e caudas. Semelhante comportamento grosseiro teria sido repreensível entre as gaivotas e outras aves de baixa categoria; o fato de serem águias tornava tudo ainda mais chocante. Nos planos superiores, as formas das aves eram completamente abandonadas, e surgiam os verdadeiros aspectos dos djinn em luta {9} . Visto desta perspectiva, o céu noturno fora verdadeiramente invadido por formas impetuosas, vultos contorcidos e atividade sinistra. A lealdade era completamente ignorada. Vi um joelho com espinhos ir enfiar-se no ventre de um adversário, atirando-o à girar para trás de uma chaminé, onde ficou a se recuperar. Uma vergonha! Se estivesse ali, não haveria tolerado semelhante coisa {10} . Mas eu não estava ali em cima. Tinha sido posto fora de ação. Agora, se tivesse sido um afrit ou um marid a causar os estragos, eu ainda teria aguentado. Mas não. Na verdade, o meu conquistador não passava de um djinni de terceira categoria, daqueles que por norma eu enrolava no bolso e fumava depois do jantar. Ainda conseguia vê-la do lugar onde estava, a graciosidade e agilidade femininas estragadas pela cabeça de porca e o comprido ancinho que segurava nas patas. Lá estava ela, empoleirada numa caixa de correio, desferindo golpes à esquerda e à direita com tanto brio que as forças governamentais, da qual eu fazia nominalmente parte, recuaram e a deixaram sozinha. Era um exemplar formidável, com experiência adquirida no Japão, a julgar pelo quimono.
Na verdade, eu fora iludido pelo seu aspecto rústico e aproximara-me sem erguer os meus Escudos. Antes que me apercebesse, houvera um guincho penetrante, uma mancha de movimento e — whump! — ela deixara-me estatelado na rua, muito cansado para me libertar. Pouco a pouco, porém, o meu lado levava vantagem. Vejam! De uma banda, avançava Cormocodran em grandes passadas, brandindo um poste público que arrancara como se fosse umraminho; da outra corria Hodge, soltando uma série de dardos venenosos. O inimigo enfraquecia e começava a adotar aspectos ainda mais fatalistas. Vi diversos insetos grandes zumbir e esquivar-se, um ou dois frangotes a torcer-se freneticamente, duas ratazanas fugirem para as colinas. Só a porca mantinha obstinadamente o seu aspecto original. Os meus companheiros avançaram. Um escaravelho foi abatido, descendo em espiral numa nuvem de fumaça; um frangote foi desfeito por uma dupla Detonação. O inimigo debandou; até a porca percebeu que a brincadeira terminara. Saltou graciosamente para um pórtico, deu uma cambalhota para um telhado e sumiu. Os djinn vitoriosos partiram em acesa perseguição. A rua ficou silenciosa. A água escorria-me pelos ouvidos. Do penacho aos dedos dos pés, a minha essência estava toda dolorida. Soltei um suspiro do fundo do coração. — Ora, ora — riu-se uma voz. — Uma donzela em apuros. Deveria ter referido que, em contraste com todos os centauros e ogres a meu lado, naquela noite eu tinha um aspecto humano. Por sinal, era o de uma garota: esbelta, cabelo escuro comprido, expressão agastada. Não se baseava em ninguém em particular. O interlocutor apareceu à esquina do sanitário público e parou para afiar uma unha num pedaço de cano irregular. Não tinha um ar nada delicado; como sempre, apresentava-se como um gigante com um só olho, de músculos salientes e cabelo louro comprido cheio de trancinhas, num penteado complexo e levemente efeminado. Vestia um guarda-pó informe azul-cinzento que teria sido considerado hediondo numa aldeia piscatória medieval. — Uma pobre e doce donzela, muito frágil para se libertar.
— O ciclope observava com atenção uma das unhas; achando-a um pouco comprida, deu-lhe uma dentada selvagem com os dentes pequenos e afiados e limou-a na parede rugosa do sanitário. — Importa-se de me ajudar? — inquiri. O ciclope olhou para um lado e para o outro da rua vazia. — É melhor ter cuidado, amor — disse, apoiando-se descontraidamente no edifício de modo a fazer aumentar a sua pressão. — Sujeitos perigosos andam por aí esta noite. Djinn e foliots… e diabretes travessos que te podem fazer uma patifaria. — Deixe disso, Ascobol — resmunguei. — Sabe perfeitamente que sou eu. O único olho do ciclope pestanejou como convinha por baixo da sua camada de rímel. — Bartimaeus? — perguntou, com espanto. — Será possível…? Com certeza o grande Bartimaeus não se deixaria apanhar tão facilmente! Deve ser algum diabrete ou mouler imitando descaradamente a voz dele e… Mas não… estou enganado! É você mesmo. — Arqueou a sobrancelha, numa simulação de choque. — Inacreditável! Pensar que o nobre Bartimaeus desceu tão baixo! O amo vai ficar profundamente desapontado. Recorri às minhas últimas reservas de dignidade. — Todos os amos são temporários — repliquei. — As humilhações idem. Eu sei esperar. — Claro, claro. — Ascobol rodou os seus braços de macaco peludo e executou uma pequena pirueta. — Muito bem, Bartimaeus! Não se deixe abater pela tua decadência. Ainda que os teus dias de glória tenham terminado, ainda que seja tão supérfluo quanto um fogo-fátuo {11} . Tanto faz que amanhã a tua tarefa seja limpar o pó do quarto do nosso amo como andar livre pelo ar. Você é um exemplo para todos nós. Sorri, mostrando os meus dentes alvos. — Ascobol — disse-lhe —, não fui eu que entrei em decadência, mas os meus adversários.
Lutei com Faquarl de Esparta, com Tlaloc de Tula {*} , com o inteligente Tchue {**} do Calaári {***} ; os nossos conflitos dividiram a terra, talharam rios. Eu sobrevivi. Quem é o meu inimigo neste momento? Um ciclope de pernas tortas e saia? Quando me libertar daqui, não vejo que este novo conflito vá durar muito. O ciclope sobressaltou-se, como se picado. — Que ameaças cruéis! Devia ter vergonha. Estamos do mesmo lado, não estamos? Sem dúvida tem bons motivos para evitar a luta debaixo deste sanitário. Sendo educado, não me darei ao incômodo de perguntar, muito embora deva dizer que te falta a habitual cortesia. — Dois anos de serviço contínuo destruíram-na — referi. — Deixaram-me irritadiço e esfalfado, com um comichão constante na minha essência que não consigo coçar. E isso torna-me perigoso, como você muito em breve irá constatar. Agora, pela última vez, tire-me isto de cima. Bem, houve mais alguns toques de mau humor e beicinhos, mas a minha postura surtiu efeito. Com um único impulso dos seus ombros peludos, o ciclope içou o sanitário de cima de mim, atirando-o ruidosamente para a calçada do outro lado. Uma garota ligeiramente com ar de chapa ondulada levantou-se a cambalear. — Até que enfim — comentei. — Estava achando que nunca mais se decidiria. O ciclope sacudiu um detrito do guarda-pó. — Desculpe — disse ele —, mas estava muito ocupado vencendo a batalha para vir te dar uma ajudazinha. Mesmo assim, acabou tudo bem. O nosso amo vai ficar satisfeito… pelos meus esforços, pelo menos. — Sorriu-me de soslaio. Agora que já estava na vertical, não tinha intenção de continuar discutindo. Avaliei os estragos nas casas por toda a volta. Nada mau. Alguns telhados destruídos, vidros partidos… A escaramuça fora dominada com êxito.
— Um grupo francês? — indaguei. O ciclope encolheu os ombros, o que era um feito, dado faltar-lhe o pescoço. — Talvez. Possivelmente os Checos ou os Espanhóis. Sabe-se lá. Hoje em dia todos nos atacam. Bem, o tempo urge e tenho de continuar a perseguição. Deixo-te a cuidar das dores e mazelas, Bartimaeus. Por que não experimenta um chá de menta ou um escalda-pés de camomila, ou outras mezinhas geriátricas? Adeusinho! O ciclope levantou as saias e, com um salto deselegante, içou-se no ar. Apareceram-lhe asas nas costas; afastou-se com movimentos amplos. Tinha tanta graciosidade quanto um ficheiro de arquivo, mas pelo menos não lhe faltava energia para voar. Isto é, até eu me recompor. A garota de cabelo escuro subiu para um bocado quadrado de uma chaminé partida num jardim próximo. Lentamente, entre as arfadas e os movimentos cautelosos de um inválido, escorregou até ficar sentada e apoiou a cabeça nas mãos. Fechou os olhos. Só um breve repouso. Bastariam cinco minutos. O tempo passou, a aurora chegou. As estrelas frias desapareceram no céu. 2 Nathaniel Como se tornara seu hábito nos últimos meses, o grande mago John Mandrake estava a tomar o café da manhã na saleta, sentado numa cadeira de vime junto à janela. As pesadas cortinas tinham sido afastadas sem o menor cuidado; via-se por trás um céu cinzento e pesado e uma bruma cerrada ia envolvendo as árvores da praça. A pequena mesa redonda diante dele fora talhada em cedro-do-líbano. Quando o sol a aquecia, exalava uma fragrância agradável mas, nesta manhã em particular, a madeira estava escura e fria. Mandrake serviu café no copo, retirou a cobertura de prata do seu prato e atacou os ovos com caril e o toucinho defumado. Num suporte por trás das torradas e da compota de groselhas estava um jornal dobrado e um envelope com um selo vermelho-sangue.
Mandrake bebeu um gole de café com a mão esquerda; com a direita, abriu o jornal em cima da mesa. Olhou para a primeira página, resmungou depreciativamente e pegou no envelope. Havia um corta-papel pendurado num gancho por cima do suporte; pousando o garfo, Mandrake rasgou o envelope com um movimento ágil e retirou umpergaminho dobrado. Leu-o com atenção, e as sobrancelhas começaram a franzir-se. Depois voltou a dobrá-lo, enfiou-o dentro do envelope e, com um suspiro, retomou a sua refeição. Uma pancada na porta; com a boca meio cheia de toucinho defumado, Mandrake emitiu uma ordem abafada. A porta abriu-se silenciosamente e uma jovem magra avançou timidamente, trazendo uma pasta na mão. Estacou. — Peço desculpas, senhor — começou. — Cheguei cedo demais? — De modo algum, Piper, de modo algum. — Fez-lhe sinal para que se aproximasse, indicoulhe uma cadeira do outro lado da mesa do café da manhã. — Já comeu? — Sim, senhor. — Sentou-se. Vestia um costume de saia e casaco azul-escuro com uma camisa branca engomada. O seu cabelo castanho liso estava afastado da testa e apanhado na nuca. Colocou a pasta no colo. Mandrake espetou uma garfada de ovos com caril. — Desculpe continuar a comer — disse-lhe. — Estive de pé até às três, tratando do último distúrbio. Desta vez no Kent. Ms. Piper anuiu. — Tive conhecimento, senhor. Havia um memorando no ministério. Foi dominado? — Sim, pelo menos tanto quanto a minha bola pôde dizer.
Enviei alguns demônios até lá. Bem, já vamos saber. O que tem para mim hoje? Ela abriu a pasta e retirou alguns papéis. — Uma série de propostas dos ministros secundários, senhor, relativas às campanhas de propaganda nas regiões remotas. Para sua aprovação. Algumas ideias novas para cartazes… — Vejamos. — Bebeu um gole de café e estendeu a mão. — Mais alguma coisa? — As atas da última reunião do Conselho… — Lerei mais tarde. Primeiro os cartazes. — Inspecionou a página por cima. — Inscreva-se para servir o seu país e conhecer o mundo… O que significa isto? Mais parece uma brochura de férias do que de recrutamento. Muito brando… Vá falando, Piper… continuo a ouvi-la. — Recebemos os últimos relatos da linha de frente da América, senhor. Estive a organizá-los um pouco. Deveremos conseguir preparar outra história do cerco de Boston. — A salientar a tentativa heroica, não o fracasso abjeto, espero… — Equilibrando os papéis em cima do joelho, cobriu uma torrada com compota de groselha. — Bem, vou tentar escrever algo mais tarde… Ora bem, este passa… Defenda a sua pátria e fique célebre… Muito bem. Sugerem umlavrador jovem com ar viril, o que é excelente, mas, e se incluíssem o núcleo familiar… digamos, os pais e uma irmãzinha… ao fundo, com ar vulnerável e de admiração? Apelando ao lado doméstico. Ms. Piper anuiu ansiosamente. — Podia mostrar também a mulher dele, senhor. — Não. Pretendemos os solteiros. As mulheres é que levantam mais problemas quando eles não regressam. — Trincou a torrada.
— Mais algumas mensagens? — Uma de Mr. Makepeace, senhor. Chegou por diabrete. Pergunta se pode passar pela casa dele esta manhã.
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