AS CARACTERÍSTICAS INTELECTUAIS TIDAS como analíticas são, em si mesmas, pouco suscetíveis de análise. Nós as apreciamos apenas em seus efeitos. Sabemos a seu respeito, entre outras coisas, que constituem sempre para seu possuidor, quando possuídas em grau imoderado, fonte do mais intenso prazer. Assim como o homem forte exulta em sua capacidade física, deleitandose em exercícios que exigem a ação de seus músculos, igualmente se rejubila a mente analítica na atividade moral de deslindar algo. Seu dono extrai prazer até mesmo das ocupações mais triviais exigindo a intervenção de seus talentos. É um apreciador de enigmas, charadas, hieróglifos; exibe na solução de cada um deles um grau de acumen que para a percepção comum assume ares sobrenaturais. Seus resultados, obtidos pelo próprio espírito e essência do método, têm, na verdade, todo um aspecto de intuição. A faculdade de resolução é possivelmente bastante fortalecida pelo estudo da matemática e, sobretudo, por esse ramo mais elevado dela, que, injustamente, e meramente por conta de suas operações retrógradas, tem sido chamado, como que par excellence, de análise. Contudo, calcular, em si, não é analisar. O jogador de xadrez, por exemplo, faz uma coisa sem recorrer à outra. Seguese que o jogo do xadrez, em seus efeitos sobre o caráter intelectual, é amplamente incompreendido. Não escrevo aqui um tratado, mas estou simplesmente prefaciando uma narrativa até certo ponto peculiar com observações razoavelmente aleatórias; vou, desse modo, aproveitar o ensejo para afirmar que as faculdades mais elevadas do intelecto reflexivo são mais decididamente e mais proveitosamente postas à prova pelo despretensioso jogo de damas do que por toda a elaborada frivolidade do xadrez. Neste último, em que as peças têm movimentos diferentes e bizarros, comvalores diversos e variáveis, o que é apenas complexo é tomado (um erro nada incomum) por profundo. A atenção nele desempenha poderoso papel. Se ela relaxa por um instante, um descuido é cometido, resultando em prejuízo ou derrota. Os movimentos possíveis sendo não apenas variados como também intrincados, as chances de tais descuidos se multiplicam; em nove de cada dez casos é antes o jogador mais concentrado do que o mais arguto que vence. No jogo de damas, pelo contrário, em que os movimentos são únicos e apresentam pouca variação, em que a probabilidade de alguma inadvertência é menor e a mera atenção é comparativamente menos exigida, as vantagens conquistadas de parte a parte devem-se à superioridade de acumen. Para ser menos abstrato. Vamos supor um jogo de damas em que as peças ficaram reduzidas a quatro damas, e em que, decerto, nenhum descuido é de esperar. Fica óbvio aqui que a vitória só pode ser decidida (os jogadores estando absolutamente iguais) por algum movimento recherché, resultante de uma forte aplicação do intelecto. Privada dos recursos ordinários, a mente analítica penetra no espírito de seu oponente, identifica-se com ele e não raro desse modo enxerga, de um golpe de vista, os únicos métodos (às vezes de fato absurdamente simples) mediante os quais pode induzi-lo ao erro ou precipitá-lo a dar um passo em falso. Há muito já se observou a influência do whist para o que denominamos capacidade do cálculo; e sabe-se que homens da mais elevada ordem de intelecto dele extraem um deleite aparentemente extraordinário, ao passo que evitam o xadrez por tê-lo como frívolo. Sem a menor sombra de dúvida não há nada de natureza similar tão enormemente desafiador para a faculdade de análise. O melhor enxadrista de toda a cristandade talvez seja pouco mais do que o melhor jogador de xadrez; mas proficiência no whist implica capacidade para o sucesso em todas essas empreitadas importantes em que a mente duela contra a mente. Quando digo proficiência, refiro-me àquela perfeição no jogo que inclui uma compreensão de todas as fontes de onde pode ser derivada uma legítima vantagem.
Essas são não apenas múltiplas, mas também multiformes, e jazem com frequência entre recessos do pensamento completamente inacessíveis ao entendimento ordinário. Observar atentamente é lembrar distintamente; e, até aí, o enxadrista concentrado se sairá perfeitamente bem no whist; pois que as regras de Hoyle (elas próprias baseadas no mero mecanismo do jogo) são suficientemente e em geral compreensíveis. De modo que possuir uma boa memória e proceder “como reza a cartilha” são coisas comumente consideradas como o supra-sumo do bem jogar. Mas é em questões que vão além dos limites da mera regra que a habilidade da mente analítica se evidencia. Seu possuidor faz, em silêncio, um sem-número de observações e inferências. Igualmente o fazem, talvez, seus colegas; e a diferença na extensão da informação obtida reside não tanto na validade da inferência quanto na qualidade da observação. O conhecimento necessário é o do que observar. Nosso jogador não se restringe em absoluto ao jogo; tampouco, por ser este o objeto, rejeita deduções originárias de fatores externos ao jogo. Ele examina o semblante de seu parceiro, comparando-o cuidadosamente com o de cada um dos oponentes. Considera o modo como estão dispostas as cartas em cada mão; muitas vezes calculando os trunfos e as honras de cada um pelos olhares lançados a suas próprias mãos. Observa cada variação nos rostos à medida que o jogo progride, amealhando uma reserva de pensamento pelas diferentes expressões de certeza, surpresa, triunfo ou decepção. Pelo modo como recolhe uma vaza avalia se a pessoa que o faz pode conseguir outra daquele naipe. Reconhece um blefe pela atitude com que a carta é jogada na mesa. Uma palavra casual ou inadvertida; uma carta que cai ou vira acidentalmente, com a subsequente ansiedade ou descaso no modo como é ocultada; a contagem das vazas, com a ordem de sua arrumação; constrangimento, hesitação, impaciência ou agitação — tudo proporciona, para sua percepção aparentemente intuitiva, indícios do verdadeiro estado de coisas. As duas ou três primeiras rodadas tendo sido jogadas, ele está de plena posse dos conteúdos de cada mão e, daí por diante, baixa suas cartas com uma precisão de propósito tal que é como se o restante do grupo houvesse virado seus leques para o lado contrário. A capacidade analítica não deve ser confundida com a simples engenhosidade; pois embora o dono de uma mente analítica seja necessariamente engenhoso, o homem engenhoso é muitas vezes notavelmente incapaz de análise. A capacidade construtiva ou combinatória, mediante a qual a engenhosidade normalmente se manifesta, e à qual os frenólogos (acredito que erroneamente) atribuíram um órgão separado, supondo-a uma faculdade primitiva, tem sido tão frequentemente notada nesses cujo intelecto em tudo mais beira a idiotia que isso atraiu a atenção geral dos moralistas. Entre a engenhosidade e a competência analítica existe uma diferença ainda maior, na verdade, do que entre a fantasia e a imaginação, mas de um caráter muito estritamente análogo. Verificar-se-á, com efeito, que os dotados de engenho são sempre fantasiosos e que os verdadeiramente imaginativos nunca são outra coisa que não dados à análise. A narrativa que segue irá se afigurar ao leitor mais ou menos como um comentário sobre as proposições até aqui aventadas. Residindo em Paris durante a primavera e parte do verão de 18…, travei conhecimento comum certo Monsieur C. Auguste Dupin. Esse jovem cavalheiro era de excelente, na verdade, de ilustre família, porém, devido a uma série de adversidades, ficara reduzido a tal pobreza que a energia de seu caráter sucumbira sob o peso disso e ele desistira de se devotar ao mundo ou de procurar recuperar a fortuna perdida. Por obséquio de seus credores, continuava possuidor de um pequeno resquício de seu patrimônio; e, com a renda daí advinda, conseguia, graças a uma rigorosa economia, prover-se do necessário para viver, sem se molestar por coisas supérfluas. Os livros, na verdade, eram seu único luxo, e estes em Paris são facilmente obtidos.
Conhecemo-nos numa obscura biblioteca na Rue Montmartre, onde o acaso de estarmos ambos à procura do mesmo livro mui raro e mui notável nos uniu em mais estreita relação. Víamonos com frequência. Interessei-me profundamente pela breve história familiar que pormenorizou para mim com toda essa sinceridade que se permitem os franceses sempre que seu tema se resume meramente a sua pessoa. Também fiquei pasmo com a vasta amplitude de suas leituras; e, acima de tudo, entusiasmei-me vivamente com o exuberante fervor e o vívido frescor de sua imaginação. Almejando em Paris certos objetivos tais como eu então almejava, percebi que a companhia daquele homem constituiria para mim um tesouro de valor inestimável; e confidencie-lhe esse sentimento comtoda a franqueza. Após algum tempo ficou acertado que moraríamos juntos durante minha estada na cidade; e, como minhas circunstâncias mundanas eram razoavelmente menos complicadas que as dele, foi com seu consentimento que me encarreguei de alugar e decorar, em um estilo que se adequava à melancolia um tanto fantástica de nosso temperamento em comum, uma mansão dilapidada e grotesca, havia muito abandonada devido a superstições cujo teor jamais indagamos, e equilibrando-se precariamente rumo ao colapso em uma área afastada e desolada do Faubourg St. Germain. Houvesse a rotina de nossa vida nesse lugar chegado ao conhecimento do mundo, teríamos sido reputados loucos — embora, talvez, loucos de natureza inofensiva. Nossa reclusão era absoluta. Não recebíamos visita alguma. Na verdade, a localização de nosso refúgio fora cuidadosamente mantida em segredo de meus próprios antigos companheiros; e já havia muitos anos que Dupin deixara de ver e ser visto em Paris. Vivíamos exclusivamente para nós mesmos. Era uma excentricidade de gosto em meu amigo (pois que outro nome dar àquilo?) ser umenamorado da Noite em si mesma; e a essa bizarrerie, assim como a todas as demais, eu calmamente acedi; entregando-me a seus desvairados caprichos com perfeito abandon. Mas a negra divindade não poderia nos fazer companhia permanente; então, simulávamos sua presença. Aos primeiros raios da aurora fechávamos todas as maciças venezianas de nossa casa, acendendo um par de círios que, fortemente perfumados, lançavam apenas a luz mais débil e espectral. Com a ajuda deles enchíamos nossas almas de sonhos — lendo, escrevendo ou conversando, até sermos advertidos pelo relógio da chegada das genuínas Trevas. Então passeávamos pelas ruas, de braços dados, continuando os assuntos do dia, ou perambulando para muito longe até avançada hora, buscando, em meio às fantásticas luzes e sombras da cidade populosa, essa infinidade de excitação mental que a tranquila observação pode proporcionar. Em momentos como esse, eu não podia deixar de notar e admirar (embora, dada sua fecunda idealidade, estivesse preparado para esperar tal coisa) uma peculiar capacidade analítica em Dupin. Ele parecia também extrair um vivo deleite em exercê-la — quando não propriamente em exibi-la —, e não hesitava em confessar o prazer que disso obtinha. Vangloriava-se para mim, com uma pequena risada, que a maioria dos homens, no que lhe dizia respeito, portava janelas em seus peitos, e costumava fazer acompanhar tais asserções de provas diretas e assaz surpreendentes de seu conhecimento sobre minha própria pessoa. Seus modos em momentos como esse eram frios e abstratos; seus olhos ficavam com uma expressão vazia; ao passo que sua voz, em geral de ummelodioso tenor, erguia-se num agudo de soprano que teria soado insolente não fosse o caráter deliberado e inteiramente lúcido da enunciação. Observando-o nesses estados de espírito, eu muitas vezes me punha a meditar na antiga filosofia da Alma Biparte, e me divertia fantasiando um duplo Dupin — o criativo e o resolutivo. Que não se julgue aqui, com base no que acabei de dizer, que estou particularizando algum mistério ou redigindo algum romance. O que recentemente descrevi no francês era apenas o resultado de uma inteligência exaltada ou, talvez, enferma. Mas do caráter de suas observações nos períodos em questão um exemplo transmitirá melhor a ideia.
Caminhávamos certa noite por uma rua suja e comprida, nos arredores do Palais Royal. Estando ambos, aparentemente, perdidos em pensamentos, nenhum de nós dissera uma palavra durante pelo menos quinze minutos. De repente Dupin quebrou o silêncio com a seguinte frase: “Ele é de fato um sujeito bem pequeno, é verdade, e estaria melhor no Théâtre des Variétés.” “Não pode haver dúvida disso”, repliquei, inadvertidamente, e sem observar de início (de tal maneira estivera absorto em reflexão) o modo extraordinário com que suas palavras fizeram coro às minhas meditações. Um instante depois caí em mim e fiquei profundamente estupefato. “Dupin”, disse eu, gravemente, “isso está além de minha compreensão. Não hesito em dizer que estou perplexo, e mal posso crer em meus sentidos. Como era possível que soubesse que eu pensava em …?” Aqui fiz uma pausa, para verificar se realmente sabia sem sombra de dúvida quem ocupava meus pensamentos. — “…em Chantilly”, disse ele, “por que hesitou? Você refletia consigo mesmo que sua figura diminuta não era apropriada para a tragédia.” Era isso precisamente que compunha o teor de minhas reflexões. Chantilly era um quondam[ex em latim] sapateiro da Rue St. Denis que, tendo sido mordido pelo bicho do teatro, candidatarase ao rôle de Xerxes na tragédia de Crébillon de mesmo nome, e que fora alvo de notórias pasquinadas por seus esforços dramáticos. “Diga-me, pelo amor dos Céus”, exclamei, “o método — se algum método há — que lhe possibilitou sondar minha alma nessa questão.” Na verdade, eu estava ainda mais atônito do que me dispunha a demonstrar. “Foi o fruteiro”, respondeu meu amigo, “que o levou à conclusão de que o remendão de solas não tinha altura para Xerxes et id genus omne.” [e coisas do gênero] “Fruteiro! — você me deixa pasmo — não sei de fruteiro algum.” “O sujeito com quem deu um encontrão quando dobramos a rua — cerca de quinze minutos atrás, talvez.” Eu agora me recordava que, de fato, um fruteiro, carregando na cabeça um grande cesto de maçãs, quase me atirara ao chão, por acidente, quando deixávamos a Rue C… para entrar na rua onde ora estávamos; mas o que isso tinha a ver com Chantilly era algo que eu não podia absolutamente compreender. Não havia um isto de charlatanerie em Dupin. “Explicarei”, disse ele, “e para que possa compreender tudo claramente, retrocederei primeiro ao longo de suas meditações, desde o momento em que lhe falei até o rencontre com o referido fruteiro. Os elos principais dessa cadeia são os seguintes — Chantilly, Órion, dr. Nichol, Epicuro, estereotomia, pedras do calçamento, fruteiro.” Existem poucas pessoas que não tenham, em algum momento de suas vidas, buscado se distrair relembrando os passos ao longo dos quais particulares conclusões de suas próprias mentes foram alcançadas. O passatempo é muitas vezes bastante interessante; e aquele que o tenta pela primeira vez fica atônito com as aparentemente ilimitáveis distância e incoerência entre o ponto de partida e o objetivo final. Qual não foi então minha perplexidade quando escutei o francês dizendo o que acabara de dizer, e quando não pude deixar de admitir que dissera a verdade.
Ele continuou: “Estávamos falando de cavalos, se me lembro corretamente, pouco antes de deixar a Rue C… Esse foi o último tema sobre o qual conversamos. Quando dobrávamos a esquina, um fruteiro, comum grande cesto na cabeça, passando apressadamente por nós, jogou-o contra uma pilha de pedras de pavimentação retiradas de um trecho da rua que está em obras. Você pisou numa pedra solta, escorregou, torceu ligeiramente o tornozelo, pareceu irritado ou amuado, murmurou algumas palavras, virou para olhar para a pilha e prosseguiu em silêncio. Não prestei particular atenção ao que fez; mas a observação se tornou para mim, ultimamente, uma espécie de necessidade. “Você manteve os olhos no chão — relanceando, com expressão mal-humorada, os buracos e sulcos no calçamento (de modo que percebi que continuava pensando nas pedras), até chegarmos à pequena viela chamada Lamartine, que fora pavimentada, a título de experimento, com esses blocos justapostos e rebitados. Aqui seu semblante se desanuviou e, notando que seus lábios se moviam, não tive dúvida de que murmurava a palavra ‘estereotomia’, termo que muito afetadamente é aplicado a essa espécie de pavimento. Eu sabia que não era capaz de dizer a si mesmo a palavra ‘estereotomia’ sem ser levado a pensar em átomos, e, consequentemente, nas teorias de Epicuro; e uma vez que, ao discutirmos o assunto há não muito tempo, mencionei-lhe quão singularmente, embora quão pouco se tenha notado, as vagas hipóteses desse nobre grego encontraram confirmação na cosmogonia nebular recente,44imaginei que não poderia deixar de erguer os olhos para a grande nebula em Órion, e decerto esperava que o fizesse. Com efeito, você olhou para o alto; e nesse momento tive a convicção de que acompanhara corretamente seus passos. Mas na acerba tirade acerca de Chantilly, que apareceu no Musée de ontem, o satirista, fazendo ignominiosas alusões à mudança de nome do sapateiro ao calçar o coturno, citou um verso latino sobre o qual muitas vezes conversamos. Refirome ao verso: ‘Perdidit antiquum litera prima sonum’.”* *“A primeira letra perdeu o som antigo.” Do Fasti, de Ovídio, em que se menciona o nascimento de Órion pela urina (em grego, ouron) dos deuses. “Eu havia afirmado que isso era uma menção a Órion, outrora grafada Urion; e, devido a certas pungências ligadas a essa explicação, estava ciente de que não poderia tê-la esquecido. Ficou claro, desse modo, que você não deixaria de combinar as duas ideias de Órion e Chantilly. Que de fato as combinou percebi pela natureza do sorriso que perpassou seus lábios. Você pensou na imolação do pobre sapateiro. Até então, seu andar era curvado; mas em seguida notei que aprumava o corpo a plena altura. Nesse instante tive certeza de que refletia sobre a figura diminuta de Chantilly. Foi aí que interrompi suas meditações para comentar que, de fato, era mesmo um sujeitinho pequeno — o tal Chantilly —, que estaria melhor no Théâtre des Variétés.” Não muito depois, líamos uma edição vespertina da Gazette des Tribunaux quando os seguintes parágrafos chamaram nossa atenção. “ASSASSINATOS EXTRAORDINÁRIOS. — Nessa madrugada, por volta das três da manhã, os moradores do Quartier St. Roch foram tirados de seu sono por uma sucessão de gritos aterrorizantes, provenientes, aparentemente, do quarto andar de uma casa na Rue Morgue, sabidamente ocupada apenas por Madame L’Espanaye e sua filha, Mademoiselle Camille L’Espanaye. Após alguma demora, ocasionada por uma tentativa infrutífera de conseguir passar da maneira usual, a porta do saguão foi arrombada com um pé de cabra e oito ou dez vizinhos entraram, acompanhados de dois gendarmes. A essa altura, os gritos haviam cessado; mas, quando o grupo subiu correndo o primeiro lance de escadas, duas ou mais vozes ríspidas, em inflamada altercação, se fizeram ouvir, e pareciam proceder da parte superior da casa.
Quando o segundo patamar foi alcançado, também esses sons haviam cessado, e tudo permanecia na mais perfeita quietude. O grupo se dispersou, e correram de quarto em quarto. Ao chegarem em um grande aposento de fundos no quarto andar (cuja porta, achando-se trancada com a chave do lado de dentro, teve de ser aberta à força), presenciaram um espetáculo que encheu cada um dos ali presentes não apenas de horror como também de assombro. “O apartamento encontrava-se na mais furiosa desordem — a mobília destruída e jogada em todas as direções. Restara uma única armação de cama; e o colchão fora removido e atirado no meio do soalho. Em uma poltrona havia uma navalha manchada de sangue. No chão da lareira jaziam duas ou três mechas de cabelos humanos grisalhos, também salpicadas de sangue, e ao que parecia arrancadas pela raiz. No chão encontraramse quatro napoleões, um brinco de topázio, três colheres grandes de prata, três menores, de métal d’Alger, e duas bolsas, contendo cerca de quatro mil francos em ouro. As gavetas de um bureau que ficava em um canto estavam abertas e haviam, aparentemente, sido vasculhadas, embora muitos artigos ainda permanecessem dentro. Um pequeno cofre de ferro foi encontrado sob o colchão (não sob a cama). Estava aberto, com a chave ainda na tampa. Não continha coisa alguma exceto algumas cartas velhas e outros documentos de pouca importância. “De Madame L’Espanaye nenhum vestígio se via; mas uma incomum quantidade de fuligem tendo sido observada na lareira levou a que se desse uma busca na chaminé, e (coisa horrível de relatar!) dali se retirou o cadáver da filha, de cabeça para baixo; havia sido forçado pela estreita abertura até profundidade considerável. O corpo estava razoavelmente quente. Quando examinado, muitas escoriações foram notadas, sem dúvida ocasionadas pela violência empregada ao ser enfiado e depois retirado. No rosto viam-se inúmeros arranhões e, pela garganta, negros hematomas, além de marcas profundas de unhas, como se a vítima houvesse sido morta por estrangulamento. “Após uma cuidadosa investigação em cada canto da casa, sem que mais nada se descobrisse, o grupo se dirigiu a um pequeno pátio nos fundos do edifício, onde estava o corpo da velha senhora, com a garganta tão completamente dilacerada que, ao se tentar erguê-la, a cabeça caiu. O corpo, assim como a cabeça, fora terrivelmente mutilado — o primeiro a tal ponto que mal conservava qualquer semelhança com algo humano. “Desse horrível mistério até o momento não há, acreditamos, a mais leve pista.” O jornal do dia seguinte trazia esses pormenores adicionais. “A Tragédia na Rue Morgue. Muitos indivíduos têm sido interrogados em relação a esse tão extraordinário e assombroso caso [a palavra af aire ainda não carrega, na França, essa leveza de significado que o inglês af air, caso, transmite entre nós], mas nada ainda surgiu capaz de lançar alguma luz sobre ele. Fornecemos abaixo todos os depoimentos relevantes extraídos. “Pauline Dubourg, lavadeira, declara que conhecia ambas as vítimas havia três anos, tendo se encarregado de suas roupas durante esse período. A velha senhora e a filha pareciam em bons termos — muito afetuosas uma com a outra.
Eram excelentes pagadoras. Nada pôde informar com respeito ao modo ou aos meios de vida das duas. Acreditava que Madame L. lesse a sorte como sustento. Dizia-se que tinha dinheiro guardado em casa. Nunca encontrou ninguém na casa quando precisou buscar ou entregar as roupas. Estava certa de que não contavam com quaisquer empregados aos seus serviços. Não parecia haver mobília em parte alguma do prédio, exceto no quarto andar. “Pierre Moreau, dono de tabacaria, declara que costumava vender pequenas quantidades de fumo e rapé a Madame L’Espanaye havia quase quatro anos. É nascido na vizinhança e sempre residiu ali. A falecida e sua filha ocuparam a casa onde seus corpos foram encontrados por mais de seis anos. O inquilino anterior do lugar fora um joalheiro que sublocara os quartos superiores para várias pessoas. A casa era de propriedade de Madame L. Descontente com o uso indevido do imóvel por parte de seu locatário, mudou-se para lá ela própria, recusando-se a alugar qualquer parte do prédio. A madame estava senil. A testemunha viu a filha umas cinco ou seis vezes durante os seis anos. As duas levavam uma vida excepcionalmente reclusa — supunha-se que tinham dinheiro. Ouvira dizer por alguns vizinhos que Madame L. fazia a leitura da sorte — não acreditava. Nunca vira pessoa alguma entrar por aquela porta, a não ser a própria velha senhora e sua filha, um encarregado de manutenção uma ou duas vezes e um médico, umas oito ou dez. “Muitas outras pessoas, também vizinhos, forneceram depoimentos nesse mesmo sentido. Nenhum frequentador da casa foi mencionado. Ninguém soube dizer se havia algum parente vivo de Madame L. e sua filha. As venezianas das janelas da frente raramente eram abertas.
As de trás viviam fechadas, com exceção do aposento dos fundos, no quarto andar. A casa era de boa construção — não muito velha. “Isidore Muset, gendarme, declara que foi chamado à casa por volta das três da manhã, e que encontrou cerca de vinte ou trinta pessoas diante da entrada, tentando passar. Arrombou finalmente a porta do saguão com a baioneta — não com um pé de cabra. Encontrou pouca dificuldade em fazer com que abrisse, pelo fato de ser uma porta dupla, ou retrátil, e sem ferrolhos em cima ou embaixo. Os gritos continuaram até a porta ser forçada — e depois subitamente cessaram. Pareciam os gritos de uma pessoa (ou pessoas) em grande agonia — altos e prolongados, não curtos e rápidos. A testemunha liderou o caminho pelas escadas. Ao chegar no primeiro patamar, escutou duas vozes numa altercação alta e inflamada — uma era rouca, a outra, mais esganiçada — uma voz muito estranha. Pôde discernir algumas palavras da primeira, que eram de um francês. Tinha certeza absoluta de que não era voz de mulher. Pôde discernir as palavras ‘sacré’ e ‘diable’. A voz aguda pertencia a alguém estrangeiro. Não sabia dizer se era voz de homem ou de mulher. Não pôde distinguir o que dizia, mas acreditou que a língua fosse o espanhol. O estado do aposento e dos corpos foi descrito por essa testemunha do modo como descritos ontem. “Henri Duval, vizinho, e, por ocupação, artesão de prataria, declara que tomou parte no grupo que entrou na casa. Corrobora o depoimento de Muset, de modo geral. Assim que forçaram a entrada, voltaram a fechar a porta, de modo a impedir a passagem da multidão, que se juntou muito rápido, não obstante o adiantado da hora. A voz aguda, acredita a testemunha, era de um italiano. Certamente não era francês. Não sabe dizer ao certo se era voz de homem. Podia ser de mulher. Não está familiarizado com a língua italiana. Não pôde discernir quaisquer palavras, mas ficou convencido pela entonação que foram ditas em italiano.
Conhecia Madame L. e sua filha. Conversara com ambas em diversas ocasiões. Tinha certeza de que a voz aguda não era de nenhuma das falecidas. “— Odenheimer, restaurateur. Essa testemunha apresentou-se voluntariamente para depor. Por não falar francês, foi inquirida mediante um intérprete. É natural de Amsterdã. Passava pela casa no momento dos gritos. Eles duraram por vários minutos — provavelmente dez. Foram longos e altos — muito apavorantes e perturbadores. Estava entre o grupo que entrou no prédio. Corroborou os depoimentos prévios em todos os aspectos menos um. Tinha certeza de que a voz aguda pertencia a um homem — a um francês. Não conseguiu discernir as palavras enunciadas. Foram altas e rápidas — desiguais — ditas aparentemente com medo, embora também com raiva. A voz era dissonante — não tão aguda, mais para dissonante. Não chamaria de uma voz aguda. A voz rouca disse repetidamente ‘sacré’, ‘diable’ e, uma vez, ‘mon Dieu’. “Jules Mignaud, banqueiro, da firma de Mignaud et Fils, Rue Deloraine. É o Mignaud pai. Madame L’Espanaye possuía algumas propriedades. Abrira uma conta em sua casa bancária na primavera do ano — (oito anos antes). Fazia depósitos frequentes de pequenas quantias. Jamais havia sacado, até três dias antes de sua morte, quando retirou pessoalmente quatro mil francos.
O valor foi pago em ouro, e um funcionário enviado a sua casa com o saque. “Adolphe Le Bon, funcionário de Mignaud et Fils, declara que no dia em questão, por volta do meio-dia, acompanhou Madame L’Espanaye a sua residência com os quatro mil francos, divididos em duas bolsas. Quando a porta era aberta, Mademoiselle L. apareceu e pegou de suas mãos uma das bolsas, enquanto a velha senhora apanhava a outra. Ele então as cumprimentou e partiu. Não viu ninguém na rua nesse momento. É uma pequena travessa — muito isolada. “William Bird, alfaiate, declara que estava entre o grupo que entrou na casa. É inglês. Mora em Paris há dois anos. Foi um dos primeiros a subir as escadas. Escutou as vozes se altercando. A voz rouca era de um francês. Pôde distinguir diversas palavras, mas não se recorda de todas. Ouviu distintamente ‘sacré’ e ‘mon Dieu’. Houve um som no momento como que de várias pessoas lutando — um som de coisas raspando e gente se engalfinhando. A voz aguda falava muito alto — mais alto do que a rouca. Tem certeza de que não era a voz de um inglês. Parecia ser de um alemão. Podia ser voz de mulher. Não entende alemão. “Quatro das supracitadas testemunhas, tendo sido reconvocadas, declararam que a porta do aposento em que se encontrou o corpo de Mademoiselle L. estava trancada por dentro quando o grupo chegou. Tudo no mais perfeito silêncio — nenhum grunhido ou barulho de qualquer tipo. Ao forçarem a porta, ninguém foi visto.
As janelas, tanto do quarto dos fundos como do frontal, estavam abaixadas e firmemente trancadas por dentro. Uma porta entre os dois quartos estava fechada, mas não trancada. A porta que havia entre o quarto da frente e o corredor estava trancada, com a chave do lado de dentro. Um quartinho na frente da casa, no quarto andar, na extremidade do corredor, tinha a porta entreaberta. Esse cômodo estava abarrotado de camas velhas, caixas e coisas assim. Tudo foi cuidadosamente retirado e examinado. Não havia um centímetro em parte alguma da casa que não tenha passado por uma busca cuidadosa. Varredores foram enfiados de cima a baixo nas chaminés. A casa tinha quatro andares, além de águas-furtadas (mansardes). Um alçapão no teto fora firmemente pregado — parecia que não era aberto havia anos. O tempo transcorrido entre a altercação de vozes que ouviram e o arrombamento da porta do aposento foi estimado com variações pelas testemunhas. Alguns disseram três minutos — outros, cinco. A porta foi aberta com dificuldade. “Alfonzo Garcio, agente funerário, declara ser residente da Rue Morgue. É natural da Espanha. Tomou parte no grupo que entrou na casa. Não subiu as escadas. É nervoso, e ficou apreensivo quanto às consequências do tumulto. Escutou as vozes em altercação. A voz rouca era de um francês. Não pôde discernir o que foi dito. A voz aguda era de um inglês — tem certeza disso. Não compreende a língua inglesa, mas julga pela entonação. “Alberto Montani, confeiteiro, declara que estava entre os primeiros a subir as escadas. Escutou as vozes em questão.
A voz rouca era de um francês. Distinguiu diversas palavras. Seu dono parecia protestar. Não conseguiu discernir as palavras da voz aguda. Falava de modo apressado e irregular. Acha que é voz de um russo. Corrobora o testemunho geral. É italiano. Nunca conversou com alguém natural da Rússia. “Diversas testemunhas, na reinquirição, afirmaram que as chaminés de todos os aposentos no quarto andar eram estreitas demais para admitir a passagem de um ser humano. Por ‘varredores’ queriam dizer escovões cilíndricos, como os que são empregados pelos limpadores de chaminés. Esses escovões foram passados de ponta a ponta em todos os ductos da casa. Não havia qualquer passagem de fundos pela qual qualquer um pudesse ter descido enquanto o grupo subia as escadas. O corpo de Mademoiselle L’Espanaye estava tão firmemente enterrado na chaminé que só conseguiram descê-lo depois que quatro ou cinco do grupo uniram forças. “Paul Dumas, médico, declara que foi chamado para examinar os corpos ao nascer do dia. Haviam ambos sido colocados sobre o enxergão da cama no aposento onde Mademoiselle L. foi encontrada. O cadáver da jovem estava muito esfolado e contundido. O fato de ter sido enfiado na chaminé teria sido suficiente para dar conta desse aspecto. A garganta fora gravemente esfolada. Havia inúmeros arranhões profundos pouco abaixo do queixo, junto com uma série de manchas lívidas, que eram evidentemente marcas de dedos. O rosto estava terrivelmente manchado e as órbitas oculares protraídas. A língua fora parcialmente mordida. Um enorme hematoma foi descoberto sobre a boca do estômago, produzido, aparentemente, pela pressão de um joelho. Na opinião de Monsieur Dumas, Mademoiselle L’Espanaye fora morta por estrangulamento por uma ou várias pessoas desconhecidas.
O cadáver da mãe estava horrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e do braço direitos estavam quebrados com maior ou menor gravidade. A tíbia esquerda fora estilhaçada, bem como todas as costelas do lado esquerdo. O corpo todo horrivelmente contundido e manchado. Era impossível dizer como os ferimentos haviam sido infligidos. Um pesado porrete de madeira, ou uma grande barra de ferro — uma cadeira — qualquer arma grande, pesada e rombuda teria produzido tais resultados, se empunhada pelas mãos de um homem muito forte. Mulher alguma teria sido capaz de provocar tais ferimentos com a arma que fosse. A cabeça da vítima, quando examinada pela testemunha, estava inteiramente separada do corpo, e também gravemente fraturada. A garganta fora evidentemente cortada com algum instrumento afiado — provavelmente, uma navalha. “Alexandre Etienne, cirurgião, foi chamado junto com Monsieur Dumas para examinar os corpos. Corroborou o depoimento e as opiniões do colega. “Nenhum outro fato relevante veio a lume, embora diversas outras pessoas tenham sido interrogadas. Um assassinato tão misterioso, e tão desconcertante em todas suas particularidades, jamais foi cometido antes em Paris — se é que de fato um assassinato foi cometido. A polícia está completamente às escuras — uma ocorrência incomum em casos dessa natureza. Não há, entretanto, nem sombra de pista à vista.” A edição vespertina do jornal informava que o Quartier St. Roch continuava ainda em grande agitação — que o edifício passara por uma cuidadosa nova busca, e que novos depoimentos foramcolhidos, mas tudo em vão. Uma nota de última hora porém mencionava que Adolphe Le Bon havia sido detido e feito prisioneiro — embora nenhuma evidência parecesse incriminá-lo, além dos fatos já especificados.
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