Não se pode fazer ciência sem usar uma linguagem cheia de metáforas. Praticamente todo o corpo da ciência moderna é uma tentativa de explicar fenômenos que não podem ser experimentados diretamente pelos seres humanos porque se referem a forças e processos que não podemos perceber diretamente, ou por serem demasiado pequenos, como as moléculas, ou por serem demasiado vastos, como todo o universo conhecido, ou ainda por resultarem de forças que os nossos sentidos não podem detectar, como o eletromagnetismo, ou de interações extremamente complexas, como a formação de um organismo individual a partir da sua concepção como ovo fertilizado. Se pretendemos que as nossas explicações não sejam apenas proposições meramente formais, expressas em alguma linguagem técnica inventada, mas que apelem para a compreensão do mundo desenvolvida por meio de nossa própria experiência comum, elas terão, necessariamente, de envolver o emprego de linguagem metafórica. Os físicos falam de “ondas” e “partículas”, ainda que não exista um meio no qual essas “ondas” se movam nem haja solidez nessas “partículas”. Os biólogos falam de genes como “projetos” e do DNA como “informação”. Na verdade, toda a ciência moderna se baseia na metáfora de Descartes do mundo como uma máquina, que ele expôs na quinta parte do Discurso sobre o método a fim de compreender os organismos, metáfora depois generalizada como uma maneira de entender o universo como um todo. “Até aqui descrevi a Terra e todo o mundo visível em geral como se fosse uma simples máquina na qual nada houvesse a considerar além das formas e dos movimentos das suas partes.” (Princípios de filosofia, IV) Embora não possamos dispensar as metáforas para tentar compreender a natureza, existe umgrande risco de que venhamos a confundir a metáfora com aquilo que realmente interessa. De que deixemos de ver o mundo como se ele fosse comparável a uma máquina e o tomemos como sendo uma máquina. O resultado é que as propriedades que atribuímos ao objeto do nosso interesse e as perguntas que fazemos a seu respeito reforçam a imagem metafórica original e acabamos perdendo de vista os aspectos do sistema que não se conciliam com a aproximação metafórica. Como disseramAlexander Rosenblueth e Norbert Weiner, “o preço da metáfora é a eterna vigilância”. 1 Um problema central da biologia, não só para os biólogos mas também para o público em geral, é a questão da origem das similaridades e das diferenças entre os organismos individuais. Por que uns são baixos e outros altos, uns são gordos e outros magros, uns muito férteis e outros quase estéreis, uns inteligentes e outros estúpidos, uns têm êxito e outros fracassam? Todo organismo individual começa a vida como uma única célula — semente ou ovo fertilizado — que não é nembaixo nem alto, nem inteligente nem estúpido. Por meio de uma série de divisões e diferenciações celulares e movimentações de tecidos, forma-se um organismo inteiro, com frente e costas, com umlado interno e um lado externo e com um conjunto de órgãos que interagem entre si de maneira complexa. Alterações de tamanho, forma e função ocorrem continuamente durante toda a vida, até o momento da morte. Com o passar do tempo, crescemos e depois encolhemos, os nossos músculos se fortalecem e depois se enfraquecem, o nosso cérebro adquire mais informação e depois parece perdê-la. O termo técnico para essas alterações na história de vida é desenvolvimento, e o estudo do processo é denominado biologia do desenvolvimento (ou psicologia do desenvolvimento, nos estudos sobre o comportamento e a cognição). Mas o termo desenvolvimento é uma metáfora que traz consigo um compromisso anterior quanto à natureza do processo. Desenvolvimento (development em inglês; Entwicklungem alemão; desarrollo em espanhol e svillupo em italiano) é, literalmente, o desdobrar ou o desenrolar de algo que já está presente e em certo sentido pré-formado. Essa mesma palavra é utilizada em inglês para nomear o processo de revelar uma imagem fotográfica. A imagem já está imanente no filme, no interior da câmara, e o processo de revelação — development, em inglês — simplesmente torna visível a imagem latente. É exatamente essa a visão da biologia do desenvolvimento a respeito do desenvolvimento de um organismo. A moderna biologia do desenvolvimento é totalmente concebida em termos de genes e organelas celulares, cabendo ao ambiente apenas fazer as vezes de cenário. Considera-se que os genes no ovo fertilizado determinam o estado final do organismo, enquanto o ambiente em que o desenvolvimento ocorre é tão-somente um conjunto de condições propícias a que os genes se expressem, assim como o filme fotográfico, ao ser exposto, produzirá a imagem que nele já está imanente, quando colocado nos líquidos apropriados e na temperatura adequada. Uma das questões mais importantes da biologia pré-moderna do século XVIII foi a luta entre duas teorias do desenvolvimento — a pré-formacionista e a da epigênese.
Segundo a visão préformacionista, o organismo adulto estava contido, já formado em miniatura, no espermatozoide e o desenvolvimento era o crescimento e a consolidação desse ser miniaturizado. Os livros-textos de biologia moderna muitas vezes exemplificam noções curiosas do passado por meio de um desenho do século xvn que mostra um homúnculo comprimido em um espermatozoide (ver Figura 1.1). De acordo com a teoria da epigênese, o organismo ainda não estava formado no ovo fertilizado e decorria de profundas modificações de forma ocorridas durante a embriogênese. Costuma-se dizer que a visão epigenética derrotou de maneira decisiva o pré-formacionismo. Afinal de contas, nada pode parecer mais tolo do que o desenho do homenzinho dentro do espermatozoide. Mas, na verdade, foi o pré-formacionismo que triunfou, pois não existe nenhuma diferença essencial, exceto quanto aos detalhes mecânicos, entre a ideia de que o organismo já está formado no ovo fertilizado e a de que o projeto completo do organismo e toda a informação necessária para especificá-lo já estão contidos ali, uma visão que domina os estudos modernos do desenvolvimento. O emprego do conceito de desenvolvimento para designar as mudanças pelas quais umorganismo passa durante a sua vida não é simplesmente um caso em que a linguagem disponível influencia o conteúdo das ideias. Quando se decidiu transformar uma língua antiga, o hebreu, emlíngua moderna, dotada de vocabulário técnico, a palavra escolhida para designar o desenvolvimento de um organismo — Lehitpateach — foi a mesma que se escolheu para nomear o processo de revelação de um filme, mas na forma reflexiva, de modo que um organismo literalmente “desenvolve a si próprio”. Além disso, a palavra evolução tem o mesmo significado original de desdobramento, e por essa razão Darwin não a empregou na primeira edição da Origem das espécies. Antes de Darwin, toda a história da vida na Terra era vista como uma progressão ordenada de estágios imanentes. Ainda que Darwin tenha libertado a teoria desse elemento de predeterminação, sua história intelectual deixou a sua marca na palavra. O uso desses termos reflete um comprometimento profundo com a ideia de que os organismos, tanto em suas histórias individuais de vida como em sua história evolutiva coletiva, são determinados por forças internas, por um programa interno, do qual os seres vivos reais são apenas manifestações exteriores. Esse comprometimento é uma herança da visão tipológica da natureza, de origem platônica, segundo a qual eventos materiais reais, que podem diferir uns dos outros em graus variados, são realizações imperfeitas e acidentais de tipos idealizados. O real é o ideal visto “através de um espelho, indistintamente”. Essa foi a visão das espécies que predominou até o século XX. Cada espécie era representada por uma descrição de “tipo” e um espécime real era depositado em alguma coleção como representativo desse tipo, enquanto todos os outros indivíduos da espécie, variando com relação ao “tipo”, eram vistos como realizações imperfeitas do ideal subjacente. O problema da biologia consistia, então, em dar uma descrição anatômica e funcionalmente correta dos “tipos” e explicar as suas origens. A biologia evolutiva moderna rejeita esses ideais platônicos e sustenta que a variação efetiva entre os organismos é a realidade que precisa ser explicada. Essa mudança de orientação é consequência da ascensão da visão darwiniana de que a variação efetiva entre os organismos é a base material de que depende a mudança evolutiva. O contraste entre a teoria platônica moderna do desenvolvimento e a teoria evolutiva darwiniana reflete o contraste entre duas maneiras de explicar as modificações dos sistemas através do tempo. O desenvolvimento é uma teoria transformacional da mudança. Nas teorias transformacionais todo o conjunto dos objetos modifica-se porque cada objeto individual sofre durante o seu tempo de vida os efeitos de uma mesma história geral. O cosmos evolui porque todas as estrelas que têm a mesma massa inicial passam pela mesma série de modificações termonucleares e gravita- cionais em um caminho que as leva a uma posição previsível na sequência principal. Como grupo, as pessoas de setenta anos são mais grisalhas e mais esquecidas do que o conjunto das que têm 35 anos, porque a mente e o corpo de todos os indivíduos envelheceram.
Por outro lado, a teoria darwiniãna da evolução orgânica baseia-se em um modelo variacional da mudança. O conjunto dos indivíduos modifica-se não porque cada indivíduo passe por desenvolvimentos paralelos durante a vida, e sim porque existe variação entre os indivíduos e algumas variantes produzem mais descendentes do que outras. Assim, o conjunto como um todo modifica-se por causa de uma alteração na representação proporcional das diferentes variantes, cujas propriedades específicas permanecem inalteradas. Se os insetos estão se tornando mais resistentes aos inseticidas não é porque cada indivíduo adquire níveis cada vez mais altos de resistência durante a sua vida, mas sim porque as variantes resistentes sobrevivem e se reproduzem, enquanto os organismos suscetíveis morrem. Uma das consequências da diferença entre esses dois modelos de mudança diz respeito à problemática das disciplinas biológicas que os incorporam. Para os evolucionistas, as diferenças entre os organismos individuais e aquelas entre as espécies intimamente aparentadas constituem o centro das atenções. A variação é o principal objeto de pesquisa. Suas causas têm de ser explicadas e ela tem de ser incorporada às narrativas que explicam a origem e a evolução das espécies. As similaridades entre os organismos são vistas muito mais como consequência histórica da ancestralidade comum, da similaridade que se espera existir entre parentes próximos, do que como consequência de leis funcionais. Com efeito, toda a ciência da sistemática, cujo propósito é reconstruir as relações e os padrões de ancestralidade das espécies, utiliza como dado único os padrões observados de similaridade. Em contraste, para os biólogos do desenvolvimento a variação entre os organismos individuais, e até entre as espécies, não apresenta interesse. Ao contrário, tal variação é importuna e ignorada sempre que possível. No centro do interesse está o conjunto dos mecanismos que são comuns a todos os indivíduos e, de preferência, a todas as espécies. A biologia do desenvolvimento não se preocupa em explicar as extraordinárias variações de anatomia e comportamento, inclusive entre os descendentes de um mesmo casal, que nos permitem reconhecer os indivíduos como seres diferentes. Nem as grandes diferenças entre as espécies integram o campo de interesse dessa ciência. Nenhumbiólogo do desenvolvimento pergunta por que os seres humanos e os chimpanzés têm aparências tão distintas, a não ser para dizer o óbvio: que eles têm genes distintos. A agenda atual da biologia do desenvolvimento ocupa-se em explicar como se processa a diferenciação de um ovo fertilizado emum embrião com uma cabeça em um extremo e um ânus no outro, por que ele tem exatamente dois braços adiante e duas pernas atrás, em vez de seis ou oito apêndices que se projetassem do meio do corpo, e por que o estômago fica do lado interno e os olhos, do lado externo. A concentração nos processos de desenvolvimento que parecem ser comuns a todos os organismos resulta em uma concentração nos elementos causais que também são comuns. Porém, esses elementos comuns têm de pertencer ao interior do organismo, ser parte da sua essência fixa, emvez de provirem das forças acidentais e variáveis do ambiente externo. Considera-se que essa essência fixa reside nos genes. Sydney Brenner, um dos biólogos moleculares mais ilustres, falando a um grupo de colegas, afirmou que, com a posse da sequência completa do DNA de um organismo e com um computador suficientemente potente, ele seria capaz de computar o organismo como um todo. A ironia simbólica dessa observação está em que ela foi proferida no discurso inaugural de um encontro comemorativo do centésimo aniversário da morte de Darwin. 2 Seguindo essa tendência, outro expoente da biologia molecular, Walter Gilbert, afirmou que quando tivermos a sequência completa do genoma humano “saberemos o que é ser humano”. 3 Assim como a metáfora do desenvolvimento implica uma rígida predeterminação interna do organismo pelos seus genes, a linguagem usada para descrever a bioquímica dos próprios genes implica uma autossuficiência interna do DNA. Em primeiro lugar, o DNA é apresentado em livros-textos e em textos de divulgação científica como “autorreplicante”, capaz de produzir cópias de si mesmo para cada célula e cada descendente.
Em segundo lugar, considera-se que o DNA “produz” todas as proteínas que constituem as enzimas e os elementos estruturais do organismo. O projeto que visa caracterizar a sequência completa do DNA dos seres humanos foi chamado pelos biólogos moleculares de “a busca do Santo Graal”, e a metáfora aqui parece totalmente apropriada, uma vez que o Graal também teria as propriedades de autorrenovar-se (embora apenas na Sexta-Feira Santa) e de oferecer sustento a todos os que dele compartilham sans serjant et sans seneschal, sem servo ou criado. A metáfora do desdobramento está então completa desde o nível molecular até o nível do organismo como um todo. As moléculas que se autorreproduzem e têm o poder de produzir as substâncias que constituem o organismo contêm toda a informação necessária para a especificação do organismo completo. O desenvolvimento de um indivíduo é explicado na biologia corrente como o desdobramento de uma sequência de eventos já prevista por um programa genético. Portanto, o esquema geral da explicação referente ao desenvolvimento constitui-se em encontrar todos os genes que fornecem as instruções para esse programa e descobrir a rede de conexões de sinalização entre eles. A narrativa explicativa última da biologia do desenvolvimento será, então, algo assim: aA divisão da célula ativa o gene A, que especifica uma proteína que se liga ao DNA das regiões controladoras dos genes B e C, o que, por sua vez, ativa esses genes, cujos produtos proteicos se combinam para formar um complexo que desliga o gene A na célula próxima à superfície, mas não na célula que está mais para dentro, o que etc. etc.” Quando essa narrativa completa afinal estiver disponível, o que com certeza acontecerá no futuro relativamente próximo para grande parte do desenvolvimento embrionário inicial de vermes e drosófilas, estará resolvido o problema fundamental do desenvolvimento, tal como concebido na atualidade pelos biólogos do desenvolvimento. Além disso, alguns elementos dessa narrativa devem ser comuns não só aos indivíduos que são exemplos do ideal da mesma espécie, mas também a umvasto conjunto de espécies que são organizadas de maneira similar. A maior comoção ocorrida no estudo do desenvolvimento foi gerada pela descoberta de que há genes que se ocupam do ordenamento das partes de um organismo de um extremo ao outro, os genes homeóticos, encontrados em seres humanos, insetos, vermes e até em plantas. A existência desses genes desperta, sem dúvida, enorme interesse, especialmente para os evolucionistas que se ocupam das continuidades subjacentes à história da vida. Para o programa da biologia do desenvolvimento, no entanto, a comoção decorre do fato de essa descoberta corporificar o programa mais fundamental dessa ciência. A característica final do modelo do desdobramento é que os padrões da história de vida são vistos como uma sequência regular de estágios pelos quais passa o sistema em desenvolvimento, sendo a conclusão bem-sucedida de um estágio o sinal e a condição para a passagem ao estágio seguinte. As diferenças de padrão entre as espécies e entre os indivíduos são vistas, nessa óptica, como consequência da incorporação de novos estágios, ou da “suspensão do desenvolvimento” numa etapa anterior. O papel do ambiente externo nessa teoria é duplo. Em primeiro lugar, pode haver a necessidade de um “gatilho” (trigger) ambiental para dar início ao processo. Plantas do deserto produzem sementes que permanecem dormentes no solo seco até que uma chuva ocasional quebre a dormência e o desenvolvimento do embrião se inicie. Em segundo lugar, uma vez desencadeado o processo, devem existir algumas condições ambientais mínimas que permitam o desdobramento dos estágios internamente programados, assim como os banhos químicos adequados são necessários para a boa revelação de um filme, sem contudo alterar a forma da imagem final. A noção de que os estágios regulares são normais e de que a suspensão do desenvolvimento é fonte de anormalidades tem sido um aspecto crucial das teorias de maturação psicológica, como se vê nos estágios piagetianos pelos quais a criança tem de passar para alcançar a maturidade psicológica, e na teoria freudiana da fixação nos estágios eróticos infantis anal ou oral como fonte de neuroses. A explicação evolutiva também teve sua parcela de teorias de estágios. Os fetos de seres humanos e os de antropoides se parecem muito mais do que os respectivos adultos, e os adultos humanos possuem características morfológicas que os tornam parecidos com os fetos de antropoides, como por exemplo a forma do crânio e da face. A generalização dessas observações levou à teoria d a neotenia, segundo a qual existe uma tendência evolutiva de nascimento mais precoce, interrompendo-se o desenvolvimento em um estágio anterior da sequência de desenvolvimento do ancestral. Entretanto, observa-se uma tendência oposta quando se examinam estágios embrionários ainda mais iniciais e faz-se uma comparação com formas muito mais distantemente aparentadas. Os embriões muito jovens de vertebrados terrestres têm fendas branquiais como os peixes e os anfíbios, as quais desaparecem no desenvolvimento posterior.
Esse é um exemplo da regra segundo a qual “a ontogenia recapitula a filogenia”. Os organismos que surgiram posteriormente na evolução parecemter acrescentado novos estágios ao seu desenvolvimento ao mesmo tempo que continuam a passar pelos estágios mais primitivos dos seus ancestrais em vez de perdê-los por meio da neotenia.
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