Não durmo há duas semanas. Mas antes já não dormia muito bem. Até então, até deixar de dormir, eu preparava o desjejum logo após o velho abrir os olhos e daí seguíamos para o trabalho. Todo dia era o mesmo dia. Do final de meu expediente noturno no distrito policial ao início da manhã sobravam duas ou três horas nas quais eu nadava nos lençóis, afundando sem conseguir atingir a outra margem. Depois, na mercearia, enquanto o velho se ajeitava na cadeira detrás da caixa registradora, seu posto habitual dos últimos sessenta e cinco anos, eu orientava meio sonâmbulo nosso único funcionário acerca da reposição de produtos, remarcação de preços e suas demais obrigações. O boliviano — era o rapaz de sempre ou um novo? — arrancava devagarinho as etiquetas das embalagens de beigale, varenike e challah, muito devagarinho; as pilhas do relógio da parede estariam no final? Os ponteiros pareciam imóveis, silenciosos demais, minhas pálpebras pesavam, sobrava espaço nas prateleiras e também minutos entre os ponteiros. Os negócios não iam bem. Na fresta escura das latas de óleo de gergelim, lá do fundo, um par de olhos me observava. Não costumava conversar com ninguém depois disso, a não ser pelos telefonemas de cobrança cada vez mais frequentes, e acompanhava o velho trocar frases em iídiche ao longo da tarde com um cliente tão antigo quanto ele próprio, seu amigo Glass, outro sobrevivente das reuniões do Yugent Club no prédio da Zukunft. Eu imaginava o teor daquelas conversas, os possíveis assuntos entre um afásico e um amnésico, quanta novidade inacessível era trocada ali. As visitas cessaram desde que o dr. Glass se matou faz duas semanas, no dia de seu aniversário de cem anos. A partir daí tudo desandou, inclusive meu sono. Em seguida, o velho também tentou se matar. Um dia, ao voltar de meu plantão no 77 o Distrito Policial, encontrei-o no banheiro com o barbeador de plástico barato na mão. Transtornado, sem compreender direito seu fracasso, ele esfregava o aparelho com força contra o próprio pulso. De início, pensei que estivesse de brincadeira. A lâmina de barbear servia apenas para machucar de leve sua pele senil, deixando uns vergões meio azulados. Era suficiente para arranhar, mas não para ferir de verdade. Parado no batente da porta, repeti seu nome duas ou três vezes, procurando não assustá-lo. Ele então deixou o barbeador cair na poça amarela, as barras das calças do pijama ensopadas de urina. Olhou para mim, mas não me reconheceu: seus olhos não tinham luz. Seu corpo lembrava um saco de estopa em vias de ser esvaziado, um entulho deixado para trás que o gato, saindo das prateleiras, cheirou por tempo suficiente apenas para dar meia-volta. A cena era absurda e um tanto cômica.
Mas tudo isso aconteceu ontem à noite, pertence ao passado. Estou na delegacia, não ouço nenhum ruído nas celas e vejo sombras lá fora, viciados em crack que se esparramam pelas ruas. No entanto, não consegui repousar e ontem ainda é hoje, assim como anteontem continua a ser ontem. O passado está para acontecer. É agora, vai ser amanhã. A eternidade se concentrou num dia que não passa nunca. Tenho dúvidas se voltarei a dormir. Enquanto isso, vou permanecendo aqui. Aguardo a claridade restituir as frações do dia, seus minutos e segundos. Até o sol arrebentar contra o muro dos fundos da delegacia feito uma ambulância que perdeu os freios. Até que outra noite venha restabelecer a ordem. O café da delegacia tem gosto de meia fervida. Entorno o resto da garrafa térmica na pia e coloco água no fogo. Deve ser o plantão mais tranquilo dos últimos anos. Os policiais estão todos fora, caçando viciados, “limpando a cidade”, como diz o Alto-Comando. Querem esvaziar as ruas para ficarem bonitas. Talvez aproveitem e coloquem margaridas nas sacadas dos prédios invadidos. Hoje não vai ter ocorrência alguma, nenhum travesti preso, os traficantes aproveitaram para descer até Praia Grande. Dia de bandido passear com a família no Minhocão, isso sim, sem ninguém no pé, tão livres quanto folhas caídas de um galho superior. Estou só com os suspeitos. A sra. X está na sua cela, tentando controlar a tremedeira das mãos. O taxista já era. E o entregador do mercado foi liberado. Aposto que a tia não lhe serviu nenhum prato quente quando chegou à sua nova casa.
E a criatura permanece isolada no quarto escuro do final do corredor, protegida pelas janelas cujos vidros foram pintados de preto. Na total escuridão. Não é possível vê-la, mas dá para sentir seu cheiro daqui. Parece o do café que acabo de jogar fora. O silêncio é tão denso que posso ouvir o barulho das bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela pm na Júlio Prestes, explosões suaves que se perdem na distância. Encho o copo de café e saio do prédio. Acima do estacionamento da delegacia, um céu todo estrelado. Nem parece que é o centro da cidade. As luzes dos arranha-céus e dos escritórios estão apagadas. Não restou quase ninguém na área enquanto a polícia age, exceto, claro, aqueles que não têm aonde ir. Uma faxineira debruçada preenche a extensão de uma janela com sua silhueta. Não há sinal de poluição nas nuvens, a não ser a da fumaça do café subindo devagarinho do copo em minha mão, desenhando círculos que se dissipam no escuro. Se fecho os olhos e pressiono as pálpebras com força, as estrelas desaparecem quando os abro, mas isso acontece só por uns segundos. Depois elas se fixam outra vez e voltam a girar e a girar. É como se eu estivesse preso em uma jaula e ao dar voltas sobre o meu próprio eixo pudesse escapar de grades imaginárias, atravessá-las com o corpo. Desaparecer. Experimento fazer isso várias vezes. Fecho os olhos. Quando os abro, tem um viciado quieto diante de mim. Também está com os olhos bem abertos, como eu. Carrega seu cobertor, a bandeira pirata de um navio incendiado. Seu aturdimento é tal que ao fugir da perseguição dos policiais pulou o muro dos fundos da delegacia sem saber aonde entrava. Ele então vê o imenso brasão da Polícia Civil estampado na parede às minhas costas, dá um tapa na própria testa num gesto de compreensão súbita e sai em fuga, pulando outro muro, enroscando-se nas farpas da grade, caindo fora. Deixa o cobertor e seus miasmas aos meus pés. Fecho os olhos outra vez.
O cheiro de merda misturada a crack do homem ficou no ar. Abro os olhos. Estrelas giram, giram. O noia escapou, eu continuo aqui. O café tem o gosto desse cobertor. No chão, reparo nos três rottweilers do taxista, enrolados em sacos plásticos pretos. Não escaparam. Não conheciam meu método de abrir e fechar os olhos e atravessar grades. Também não sabiam saltar muros como o noia. Esses cães deveriam ter sido cremados após serem sacrificados. Os idiotas da limpeza esqueceramde fazer isso. Não chamaram o pessoal do Centro de Controle de Zoonoses. Por acaso, se eu lhes jogasse um osso, os rottweilers se levantariam e abanariam o rabo, mesmo cortado? Farejariamvestígios de seu dono na cela vazia ou iam preferir caçar o viciado que acabou de fugir? A fidelidade desses animais é incompreensível, insistem em abanar seu coto para quem o separou do rabo. Quando terminar este jogo de abrir e fechar os olhos, vou avisar o pessoal do ccz. Esses cães fedem a carniça. Sim, eles conseguiram escapar. Estão bem longe agora. Antes do episódio da tentativa de suicídio, o velho e eu nos recolhíamos ao piso superior da mercearia assim que escurecia. Eu o levava até o banheiro e lhe fazia a higiene, depois preparava wurst com batatas ou sopa de lentilhas e arrumava sua cama. Ele resistia a dormir e pedia que eu lhe contasse histórias de animais. Conte umas fábulas, pedia todas as noites, alguma de Esopo, dizia emseus melhores momentos, mas isso foi bem no início da doença, depois não lembrava de mais nada e eu era obrigado a contar histórias só por uns minutos. Não eram necessários muitos. Tenho pouca imaginação, então relatava o que acontecia em minha segunda jornada, falava sobre os depoimentos que colhia no 77 o Distrito Policial, casos que investigava, uma ocorrência bizarra no Nocturama, o passeio noturno do jardim zoológico. Era mais fácil do que inventar, e ademais Esopo foi executado por fraude. Em pouco tempo, o velho adormecia.
Nas noites seguintes à primeira tentativa de suicídio, após o incidente do barbeador, não tive alternativa senão sedá-lo antes de sair. Temia encontrá-lo morto ao voltar do plantão. Meu receio era que se matasse enquanto eu trabalhava no dp. Não que me importasse, seria um alívio, porém preferia não ter que lidar com situação tão complicada. Eu não podia pensar direito devido à insônia e ao cansaço, e tudo continuava igual, talvez pior. Antes de sair, servia um copo d’água para ele e um comprimido que dizia ser vitamina C. O velho relutava um pouco, mas tomava o medicamento. Não me passou pela cabeça que um só comprimido pudesse matá-lo, pois o importante era que dormisse a noite inteira enquanto eu estivesse fora. Então ele pedia novas histórias de animais, todas as noites, histórias que ouvia de olhos revirados para a janela como se acompanhasse na cortina as projeções daquilo que eu narrava. E logo dormia. Na noite seguinte, pedia de novo. Me pergunto o que devia sonhar, se a normalidade perdida na vigília era restabelecida durante os sonhos, ou mesmo se isso era possível depois de tomar um Lorax. É um despropósito, eu sei, mas pode ser que tudo estivesse invertido, e que a confusão onírica se transferisse para a realidade cotidiana e vice-versa, talvez seus sonhos fossemorganizados como a sua vida deveria ser. Talvez houvesse alguma lógica neles, ao contrário do que ocorria diante de nossos olhos abertos, ao contrário do que acontece na vida ou durante a insônia, neste mundo de peixes sem pálpebras soltando bolhas de ar. Os sintomas da demência do velho começaram quando minha mãe ainda estava viva. Isso faz tanto tempo que só consigo lembrar de seu rosto se observar com atenção o único retrato dela dependurado no corredor. Naquela fotografia de cantos carcomidos pela umidade minha mãe lembra um fantasma, pois sua estampa começou a se dissipar de tal forma que agora está transparente. Tenho dúvidas se isso faz sentido (talvez seja apenas minha visão embaralhada), mas consigo ver detalhes da delicada tranca de louça do guarda-roupa que fica atrás dela no retrato, encostado na parede, e a borda pontuda da cortina de voile da janela à sua direita, invadindo o espelho dependurado na porta do guarda-roupa, cuja superfície no entanto não reflete minha mãe e sim a parede adiante, fora do campo de visão abrangido na fotografia. Na janela, dá para ver os salgueiros-chorões. Vejo tudo isso através da imagem desbotada de minha mãe, que ficou translúcida no reflexo do espelho. Devo estar confuso com a insônia. A deterioração do papel fotográfico é tamanha a ponto de deixar umas manchas parecidas com sóis negros ou queimaduras na margem esquerda da foto. Essas manchas invadem o rosto dela ou a área onde deveria estar seu rosto e não está, pois não há mais vestígios de olhos, nariz ou boca. Contudo, de acordo com a lógica que se estabeleceu no espaço daquela imagem, definitiva até a completa desaparição dos pigmentos deixados pelo nitrato de prata, calculo que deveria ser possível ver as costas de minha mãe refletidas no espelho, suas costas e também a parte traseira da saia na altura da cintura, porém nada aparece no reflexo, nem isso e muito menos o fotógrafo ou um mero detalhe que seja dele, um cotovelo arqueado que fosse ao segurar a câmera, que não devia ser pequena (e pela antiguidade da fotografia nem ao menos era portátil) ou então o bico gasto de sua botina. Seria o velho o autor daquele retrato? Talvez esteja invisível na foto assim como a velha, no entanto ela ainda pode ser levemente percebida — pela forma de sua cabeça pender à esquerda na silhueta abaulada parecendo a de uma grávida, como se suportasse demasiados problemas —, mesmo que seus detalhes fisionômicos não sejam visíveis, mesmo que sua voz não esteja mais audível.
O velho está ausente até na fotografia na qual não deveria estar. Aquele retrato de minha mãe é a única fotografia de nossa família. No verso há uma anotação que diz: “Retrato realizado na casa da rua Tocantins, n o 905, Bom Retiro, São Paulo, maio de 1945”. Era o endereço de um prostíbulo. Ao pensar em minha mãe, lembro de sua voz ocupando toda a casa. Em geral ela cantava na cozinha, enquanto fazia o jantar, ou então no banheiro. Também no quarto de casal, só para o velho (eu vivia de ouvido colado à porta). Sua voz preservava a qualidade musical mesmo quando ela dizia um palavrão. Ainda pequeno, eu tinha o costume de fazer a seguinte brincadeira: esquecia o rosto de minha mãe de propósito. Bastava ficar algumas horas sem vê-la na escola, ou então passar a tarde jogando futebol no campinho de várzea sem procurar seu rosto entre as traves ou perdido nas nuvens, e daí eu conseguia apagar todos os traços da lembrança dela. Apagava um a um, vincos do sorriso, rugas de felicidade da testa, dobrinhas franzidas para baixo ao lado dos olhos escuros. E só então os olhos, o nariz e a boca. Restava apenas a voz, límpida e forte, ordenando que eu fosse tomar banho, me chamando para jantar, esculhambando comigo. Contando histórias antes de dormir. Cantarolando baixinho uns boleros para mim, seu hálito quase derretendo minhas orelhas. Ela adorava contar a história do boneco de neve que se apaixonava pelas labaredas do fogão. Lembro da vibração tênue da voz de minha mãe ao se referir tantas vezes àquele boneco de neve meio idiota. No início eu não entendia o quanto era terrível. O boneco de neve tinha o entusiasmo de uma criança recém-nascida. Confundia o sol com a lua. Sua vaidade não conhecia tamanho, achava que seu brilho era idêntico ao dos astros. Era um completo ignorante sobre a vida, até começar a conversar com o cão acorrentado diante da casa, um cão velho e sábio que sugere o tempo todo ao boneco de neve que ele não fique tão entusiasmado assim com o brilho do sol, ei, pois afinal quem não sabe o que o calor faz aos bonecos de neve? No entanto a nevasca chega, e o boneco fica ainda maior e mais cheio de sua importância e de sua beleza. Quando a história atingia esse ponto, a voz de minha mãe adotava ingenuidade idêntica à refletida pelos olhos de cacos de vidro do boneco de neve, uns olhos que os moleques lhe deram para que visse o mundo daquele jeito quebrado, incerto, e eu o enxergava do mesmo jeito que ele graças à voz de minha mãe. O boneco, após ser esclarecido pelo cão, au, a respeito da cozinha que ambos viam pela janela, e de como à volta do fogão era um lugarzinho bemquentinho e tão diferente de tudo ali fora, do quintal soterrado pelo gelo, da lua fria e triste, apaixona-se pelas chamas avermelhadas a lamberem o fogão. E assim ele se esvai: com a chegada do calor, começa a derreter aos poucos, ui, até escorrer ao meio-fio e sumir na boca de lobo.
Quando isso acontece, o cão compreende o arrebatamento do boneco de neve pelas chamas: os meninos que o construíram o haviam sustentado sobre o cabo de uma pá de jogar carvão no forno. Sempre tem umcão acorrentado para nos alertar dos perigos da realidade, e assim era comigo, o jogo de esquecer os traços de minha mãe virava um suplício, pois ao retornar para casa, vindo da escola ou do campinho, eu realmente não lembrava mais do rosto dela, e ao atravessar ruas e praças meio desesperado, semao menos olhar para os lados apenas para chegar mais rápido em casa, e daí subir ofegante a escada e quase arrombar a porta, eu fazia isso tudo acreditando que ao pisar o tapete da sala atraído por sua voz que cantarolava na cozinha, e ao atravessar o corredor aos prantos, eu tinha certeza de que, quando ela se virasse na pia da cozinha onde se encontrava para mim, que corria em sua direção, que ao olhar para mim ela não teria mais olhos, e não teria mais nariz e a voz que saía dela sairia de algum outro lugar que não era mais sua boca, seria só a sombra de sua boca, pois os traços de seu rosto não existiriam mais e ela olharia para mim sem olhos e falaria comigo sem lábios e então ela contaria pela milésima vez o final da história, dizendo “e ninguém voltou a pensar no boneco de neve”. Minha falta de lembranças é acentuada pelo fato de eu ter saído cedo de casa, ainda na adolescência. Vivi num kibutz em Israel uns anos, numa fase sionista de minha vida, depois de viajar pelo Leste Europeu e pela região da Rússia de onde meu pai tinha vindo, ou ao menos de onde eu pensava que ele tinha vindo (nunca tive certeza). Lá me casei, mas esta é uma história que prefiro esquecer, que já esqueci. Que parece nunca ter acontecido, do mesmo modo que a militância sionista que representava uma busca patética por raízes que afinal nunca existiram. Imigrantes têm raízes aéreas idênticas às de uma orquídea que absorve água da atmosfera. O casamento teve um triste final, ou uma conclusão meio óbvia: ela identificou as minhas inconsistências, como dizia, e desistiu antes do combinado, eu fiquei para tio e The End. Foi nessa época, quando completava cerca de uma década de ausência, ou de inexistência, ou de intenso conflito com minhas próprias inconsistências, que recebi em Israel um telefonema do velho avisando da morte de minha mãe. Tinha câncer e eu nemao menos me inteirei disso. Não conversávamos com a devida regularidade. Minhas andanças não me permitiam ser localizado com facilidade, e os velhos acabaram se conformando com o silêncio do telefone e da campainha de casa. O acaso simultâneo dessas duas mortes (a ex não morreu, embora eu prefira inconsistentemente pensar que sim) me fez voltar ao lugar onde cresci, a este ponto morto diante do retrato onde minha mãe algum dia esteve, mas não está mais. Onde meu pai nunca coube. Voltei feito o salmão que torna ao lugar onde nasceu para morrer. Mas antes de isso acontecer, no final da adolescência, precisei sair do Bom Retiro por causa dos índios. Na realidade nada teve a ver com o fato de ser judeu e com a errância dos judeus, pois minha mãe não era asquenaze igual ao velho, longe disso, e portanto eu não estava, digamos, atado a nenhum atavismo, muito pelo contrário, sempre fui uma mariposa fulva e insone, como um dia me chamou o dr. Glass. No entanto, durante minha infrutífera procura por raízes no deserto, vamos dizer que estive, nem que fosse ilusoriamente. A fuga teve tudo a ver com os comanches, isso sim, com a extinção dos comanches conforme li num livro de história que eu adorava e do qual não larguei nem por um só segundo quando tinha dez, onze anos de idade. Meu pai fugiu dos pogroms da Rússia — ao menos foi o que sempre pensei, devido à época em que ele chegou aqui — e passou a viver no Bom Retiro como se nunca tivesse existido outro lugar, como se ele tivesse nascido ali mesmo no porão do sobrado da rua Prates, onde viviam os lituanos que o abrigaram. É típico dos imigrantes: sofrem ao partir de sua terra natal, depois passam misérias por não pertencerem ao lugar para o qual migraram e então, de hora para outra, esse lugar lhes pertence como se tivesse sido sempre seu, e daí passam a não admitir a entrada de mais ninguém. Abominam “os estrangeiros” (é assim que chamavam e ainda chamam os sefarditas e mizrahim), encontram-se na pletzel para saber quem vem e quem vai, se o arquiduque Francisco Ferdinando foi realmente assassinado, se a Primeira Guerra acabou, se o Império Austro-Húngaro não mais existe, quais as notícias do Unzer Shtime, se a pedra fundamental do Zukunft Club será lançada, se Hitler invadiu a Polônia, se haverá reunião no clube trotskista e baile na rua Aimorés e se Ben-Gurion fez o que prometeu e se afinal os Hirschberg mudaram para Higienópolis de vez. Quando o velho saiu de baixo do piso da sala na qual a família Lubavitch ouvia notícias do mundo pelo rádio, do úmido porão do sobrado da rua Prates onde ele armazenava gravatas que era obrigado a secar com ferro de passar antes de vendê-las na praça do Patriarca na manhã seguinte, quando o velho saiu de lá não havia mais nenhum bisonte galopando sobre a Terra. Então os bisontes já estavam extintos fazia muito tempo.
Aconteceu mais ou menos como com os peles-vermelhas. Depois das guerras contra os brancos, a nação comanche foi confinada a uma reserva em Oklahoma. Contra a vontade, de nômades passaram a sedentários e começaram a plantar, mesmo desprezando a agricultura e a inércia. Porém os índios continuaram a sonhar com as pradarias texanas nas quais caçavam bisontes em cima de seus mustangues, isso muito antes da queda, do quase extermínio após a derrota final. Então surgiu umlíder, Quanah Parker, um mestiço, filho de uma mulher branca que havia sido sequestrada e ficou vivendo com os índios. Obcecado pela liberdade, Quanah Parker promoveu concessões, negociou, foi submisso ao homem branco, muito matreiro, bastante sábio, tudo para conseguir voltar à pradaria, para os comanches tornarem a ser os nermernuh, como se autodenominavam em sua língua, “O Povo”, e a caçar bisontes na borda do precipício e a serem impulsionados pelo vento, era isso tudo o que eles queriam, voltar a cavalgar e a distender seus arcos e a apontar seus rifles e a caçar os animais que eram tudo para eles, desde a roupa que vestiam e a casa onde moravam à comida que alimentava sua prole e seus totens religiosos. Assim, os comanches comandados por Quanah Parker atravessaram os Estados Unidos da América de volta ao Texas em longos dias até a região onde nasceram, iguais ao salmão que retorna à nascente para morrer, iguais a mim que voltei à casa de meus velhos, mas por qual motivo mesmo? Quando lá chegaram, os comanches encontraram uma imensa planície coberta de ossos de bisontes embranquecidos pelo sol. Mais nenhum animal galopava no horizonte. Não era mais possível ouvir o tropel das manadas e sentir a terra tremer, antecipando sua chegada. A vida como eles a conheciam não existia. Desse modo, a nação dos bravos nermernuh não tinha mais como sobreviver. Os índios montaram em seus cavalos e voltaram cabisbaixos para a reserva em Oklahoma. Lá eles morreram, no entanto já haviam morrido antes, comos bisontes e com o modo de vida que representavam. É mais ou menos como se Deus tirasse o McDonald’s de toda essa gente aí. Para meu pai, equivale à desaparição da pletzel na qual os judeus se encontravam aos domingos para conversar. O lugar da pracinha continua lá, mas o Bom Retiro dos tempos do velho desapareceu qual bisontes da pradaria, levando junto os domingos e as suas manhãs. O dr. Glass foi o penúltimo a partir. Sou filho único. Ao menos era o que pensava ser. Difícil explicar qual é a sensação de ser sozinho e mesmo assim nunca ter recebido atenção. É como ser um animal extinto ou um comanche apartado de seus bisontes. Um mundo sem McDonald’s. Talvez eu esteja precisando dormir um pouco, isso sim (a insônia), e abandonar esta vida de mariposa fulva. Eu não devia abusar tanto das anfetaminas, comecei com remédio para emagrecer e agora estou assim, gordo e sem dormir.
De início, quando voltei para casa, o trabalho de escrivão servia como fuga das obrigações na mercearia. Dois meses inteiros comparecendo todo dia à empresa familiar foram suficientes para perceber que eu não aguentaria por muito tempo a companhia silenciosa do velho. Ademais, nunca gostei de trabalhar detrás do balcão, pois os clientes sempre me confundiam com um empregado qualquer, já que não pareço nada com ele. Depois, percebi que o plantão noturno aqui na delegacia (preenchido na maior parte por apreensões de traficantezinhos, de prostitutas e cafetões e ocorrências de veículos roubados) era ideal para insones feito eu, para mariposas fulvas e insetos noturnos arruivados, embora esta descoberta tenha sido precedida por outra bem pior, a de que na verdade eu nunca mais conseguiria dormir após ouvir as histórias contadas no trabalho. O que acontece aqui no 77 o dp acaba endurecendo a gente, isso sim. Então contei ao velho todas as noites o que ouvia até que ele adormecesse. Contar histórias tão horríveis fazia tanto sentido quanto contar outra qualquer, com a diferença que funcionava. O ideal seria também dar certo comigo e que eu dormisse ao ouvi-las, mas que nada, só fico mais acordado por causa dos Inibex. Rotina de escrivão pode ser bem monótona. Muita conversa de policial com tempo livre. Não é como hoje, pois estão todos na rua. O turno da noite, porém, costuma ser mais movimentado e acabei optando por ele ao passar no concurso para escrivão. Para “escravão”, como dizem os tiras. Aconteceu que o velho piorou cerca de um ano após eu ter ingressado na corporação. Foi nessa época que começaram os telefonemas dos credores. Umdia, no meio da tarde, o telefone da mercearia tocou. Atendi. Do outro lado, uma voz grossa procurava pelo velho. Respondi que não estava, perguntei quem gostaria. Não respondeu. Quando insisti de novo, a ligação caiu. Fui à cozinha dos fundos atrás de explicações do velho, mas não o achei. Encontrei-o no banheiro em frente ao espelho. Mantinha o braço direito dobrado sobre o ventre feito um garçom com sua toalha ao atender pedidos, e dizia palavras em iídiche que não compreendi. Só depois que ele saiu daquela espécie de transe e voltou a se encarapitar em sua cadeira alta detrás da caixa registradora é que percebi o que fazia.
O velho devia lembrar de seus tempos de mascate na juventude, quando vendia gravatas na praça do Patriarca. Era assim, com o braço fixo diante do ventre, que oferecia seus produtos aos clientes. Então a doença já havia detonado a cabeça dele.
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