Ser popular tem seus privilégios, mas poder escolher suas matérias no ensino médio não é umdeles. Infelizmente, ser o braço direito da garota número 1 da escola não é suficiente para me livrar de uma manhã inútil, dedicada aos estudos, em meu último ano. 1 Na verdade, ser a segunda “alguma coisa” não ajuda muito em nada. Não ajuda, por exemplo, a saber quando sua melhor amiga vai dar a próxima festa ou quem teve a sorte de entrar na lista de convidados, como Gabriel Avenale demonstrou ao entrar na sala uns trinta segundos depois de tocar o sinal, nem um pouco preocupado com isso, mas parecendo ter acabado de ganhar o campeonato mundial. Acho que a sensação deve ser mais ou menos essa. Tudo bem, eu nunca tive de me preocupar se estava ou não na lista da Hanna, nem conheci a emoção insubstituível de ver meu nome escrito lá pela primeira vez, porém conheço essa sensação mágica de ser escolhida pela grande Hanna – apesar de o meu momento mágico ter vindo antes de o de todo mundo. Ela me escolheu no jardim de infância. O primeiro dia de aula de uma garota negra na branquíssima Fidelity Elementary foi uma experiência assustadora. Ainda por cima, tive o azar de frequentar uma escola que ficava a duas cidades de distância, só porque minha tia conhecia uma professora lá. Enquanto, no primeiro dia de aula, os outros alunos retomavam a matéria de alguns meses atrás, eu permanecia em pé, fora do círculo, uma menininha com o joelho ralado e a cor de pele inadequada que tinha entrado na escola errada. Devia haver, percebo hoje, outros alunos novos que se sentiam intimidados, nervosos e excluídos, mas acho que não me dava conta disso naquela época. Até onde sabia, eu era a única estranha ali. É o tipo de coisa que pode ser traumática em qualquer idade, ainda mais aos cinco anos. Lembro-me de chorar, não na frente de todo mundo, pois até mesmo aos cinco anos eu percebia como isso seria devastador, mas mais tarde, enquanto andava pelo gramado inimaginavelmente longo da escola em direção ao carro da minha mãe. Não era um choro berrado; estava mais para um choro de filme piegas. Lágrimas de autopiedade rolavam pelo meu rosto e enchiam meus olhos. Então, aconteceu. A menina mais alta, mais loira e mais bonita da sala chamava o meu nome – ela sabia o meu nome. Lá, no gramado em frente à escola, ela anunciou que seríamos amigas. Não perguntou, mas informou, e talvez se eu tivesse sido escolhida mais tarde na vida, teria ficado ofendida com aquela abordagem. Talvez, mas provavelmente não. Mesmo aos cinco anos de idade, eu pressentia o que aquela amizade significaria para mim. Desde então, nunca mais fiquei de fora de um círculo sem ser por escolha própria. Isso é mesmo verdade? Quer dizer, teria acontecido exatamente da forma como eu acho que aconteceu? Eu tinha cinco anos. Como posso me lembrar de detalhes como um joelho ralado ou lágrimas no meu rosto? Mas, sabendo de tantos detalhes, como poderia não ser verdade? Enfim, o que sei – vendo Gabriel correr para a sua cadeira com o maior sorriso do mundo estampado no rosto – é que conheço essa sensação.
Esse contentamento. Já passei por isso, e, apesar de destoar da minha tendência ao cinismo, talvez seja a melhor sensação de todas. Outra coisa que sei é que estou total e completamente apaixonada pelo Gabriel. Isso não é algo que acabei de perceber. Na verdade, passei este ano inteiro babando por ele, desde que percebi como ele preenche seu uniforme de futebol em vez de nadar dentro dele. Desde que percebi que, de repente, ele parece ser muito mais um jovem homem do que um garoto grande, fiquei caidinha por ele. Então, eu me pergunto, é claro, se todos os meus esforços para esconder esses sentimentos foramem vão, se a Hanna de alguma forma descobriu meus desejos mais secretos e me recompensou colocando o nome de Gabriel na sua primeira lista de convidados do nosso último ano. Meu coração palpita e minhas mãos suam. Não por causa do Gabriel, mas porque acho que a Hanna sabe, e não quero que ela saiba. Não quero a Hanna envolvida. Quero o Gabriel. Quero que ele seja puro, que não seja contaminado pela Hanna. Um bom tempo depois, quando o sinal nos liberta do inferno da sala de estudos, caminho pelo corredor quando uma voz me chama: “Oi”. Fico paralisada. Viro-me lentamente. Gabriel sorri para mim, um pouco menos do que quando entrou voando pela sala de estudos anunciando sua boa notícia para quem quisesse ouvir, mas ainda assim era o sorriso de alguém que estava tendo um dia muito, muito bom. “Eu só queria agradecer, sabe”, diz ele. “Sobre a lista de convidados. Estou muito ansioso pela festa.” “Não me agradeça”, corrijo, percebendo depois que isso parece meio antipático. “Quer dizer, estou feliz que você esteja na lista, e também estou ansiosa pela festa.” Ele concorda, e só Deus sabe onde a conversa poderia ter ido parar, porque sou puxada de repente para o banheiro feminino por uma mão desconhecida. Sob o brilho das luzes fluorescentes repletas de mariposas mortas, vejo que a mão pertence a ninguém menos que Sheila Trust. Ao contrário do radiante Gabriel, ela reclama feito uma menina mimada que não ganhou um pônei de aniversário. Para piorar, os azulejos verdes e encardidos do chão e do teto do banheiro refletem em sua pele branca, causando uma aparência que beira o demoníaco.
Seus cachos loiro-escuros se libertam do confinamento de uma presilha de strass, enquanto ela luta para prender uma cadeira furtada na maçaneta da porta, criando uma sala de reuniões privada. “Da próxima vez, um ‘com licença’ educado poderia funcionar”, sugiro. “Quieta”, retruca ela. “Você sabia disso?” “Disso o quê? Da existência desse banheiro?” “Ha-ha. Você sabe muito bem do que estou falando.” “Na verdade, não sei, não.” “Não dá pra ser mais óbvia. Estou falando sobre a lista de convidados da Hanna.” “Ah, isso”, digo. “Ah, isso”, repete ela, com uma voz de reprovação. “Sim, isso. Apenas a maior notícia do dia todo, e eu tenho de descobrir pela Melissa Drackett, como se eu fosse uma idiota qualquer. Fiquei com cara de trouxa, Olivia.” “Acho que essa cara não tem nada a ver com a Melissa ou com a lista de convidados.” A porta vibra, como se estivessem tentando abri-la por fora, mas a cadeira a segura. Alguém grita e bate na porta. “Vá embora, vadia!”, grita Sheila, voltando-se para mim. “Você sabia disso, não sabia?”, exige saber. Param de bater na porta. “Acabei de saber na sala de estudos.” “Mentirosa.” “Palavra de escoteira”, confirmo e, como não sei o gesto certo, cruzo minha mão direita no peito com o dedo do meio estendido. Sheila pressiona os lábios e respira, ofegante, pelo nariz, parecendo agora realmente um demônio. “Ela consultou ou não consultou você sobre isso?”, pergunta Sheila. “Já falei, acabei de descobrir há alguns minutos.
” “Isso é loucura. Ela é louca. Quem diabos ela pensa que é? Ela deveria consultar a gente sobre esse tipo de coisa. A gente deveria discutir esses assuntos. Nossa opinião deveria valer alguma coisa.” “Isso é o que você pensa”, corrijo. “A Hanna nunca disse isso. Tenho certeza.” Sheila não é como todas nós. Nem todo mundo percebe, mas eu sei e a Hanna sabe, e é provável que até a Sheila saiba, mas ela é tão burra que eu duvido. Sheila não foi escolhida. O restante de nós foi escolhido a dedo pela Hanna, mas Sheila foi a única que escolheu a Hanna, que se tornou membro da turma por vontade própria. Claro, por um lado a Hanna teve de aceitá-la, então não é que a Hanna não goste da Sheila, mas é diferente com ela… Talvez seja por isso que eu a odeie. Puxo a cadeira da maçaneta e começo a abrir a porta. “Aonde você vai?”, pergunta Sheila. “Pra aula.” “Você não está nem aí, né?” “Não importaria se eu estivesse.” Enquanto saio, percebo que alguém escreveu VAI SE FERRAR, HANNA na parede do banheiro com canetinha preta. 1 O ensino médio nos Estados Unidos é cursado em quatro anos, e não em três, como no Brasil. (N. E.) Sheila Só porque alguém é a garota mais popular da escola, não quer dizer que ela sempre será a garota mais popular da escola. Hanna acha que é intocável. Acha que todo mundo vai amá-la para todo o sempre. O problema é que ela é desleixada e preguiçosa, não sabe porcaria nenhuma sobre popularidade.
É só dar uma olhada nos otários que a rodeiam. Enfim, popularidade é algo que requer esforço, algo que você tem de querer muito, muito mesmo. E eu quero. Esse assunto da lista de convidados pode parecer besteira, mas não é só o fato de ela não ter me consultado que me irrita. É que aquela lista, sinceramente, é um lixo. Tem pessoas lá que não têm nada a ver, e quem realmente merecia ser convidado para a festa não foi. Se ela tivesse feito a gentileza de me consultar antes, de me mostrar a lista e pedir a minha opinião, eu poderia ter apontado essas falhas para ela, mas não. Em vez disso, ela pendura o negócio para todo mundo ver, e agora sua lista idiota virou verdade absoluta. “Ah, eu achei fofo ela ter convidado o Tom”, diz uma voz que parece ser da Karen Rourke. Eu me escondo para ouvir secretamente o restante da conversa. “Fofo, talvez, mas estranho”, comenta uma segunda voz. Débora Shune? “Ele é meio babaca.” “Pode ser, e é estranho que a Rose não esteja na lista, né?”, diz Karen. “E o Robert. Estou dizendo, a Hanna devia estar bêbada quando fez essa lista.” Timing é tudo, por isso aproveito o momento para aparecer. Débora está de boca aberta, olhando para mim feito uma idiota. Karen apenas sorri daquele jeito alegrinho dela. “É melhor você fechar essa boca”, digo para Débora. “Tem muita mosca por aqui.” Obedientemente, ela fecha a boca. “A gente só estava brincando”, explica Débora. “Eu não quis dizer aquilo. Quer dizer, é meio estranho que o Tom esteja na lista, mas posso entender por que a Rose não entrou.” “Relaxe”, digo.
“Aliás, eu concordo. O Robert deveria estar lá.” “Ele é uma gracinha”, acrescenta Karen. Começo a me olhar no espelho do banheiro e pego um gloss na minha bolsa; não que precise dele, mas tenho de mostrar às meninas que somos todas amigas e que está tudo bem. Um minuto depois, elas relaxam e começam a se produzir também. Em pouco tempo, estamos fofocando sobre quem está traindo quem e o que realmente aconteceu no fundo do ônibus naquele passeio da semana passada ao museu. Esses são os detalhes que a Hanna simplesmente não entende, e é por isso que eu acho que sua popularidade não é imortal. A questão é: eu sempre fui uma garota popular. Na verdade, até ser arrancada do meu território e replantada aqui em Fidelity, eu era a garota popular. Quando, por questões de trabalho, minha família foi obrigada a se mudar, não enterrei minha cabeça na areia. Marchei em direção a Fidelity High com a cabeça erguida. Não demorou muito para que eu descobrisse quem dava as cartas, e fui direto a ela. Até mesmo Hanna, em sua grandeza, percebeu como eu era especial e me trouxe para debaixo de sua asa, ao seu grupinho bizarro. Às vezes, sou grata por tudo ter dado certo, mas outras vezes me pergunto se teria sido melhor nunca ter entrado na turma. Sabendo tudo o que sei sobre a Hanna, imagino se não poderia simplesmente ter desafiado seu título de garota mais popular da escola e vencido, sem grandes dificuldades. Em vez disso, estou presa ao papel de servente glorificada, enquanto Hanna continua dando as cartas. Mas tenho a vantagem de estar dentro – e alguns impérios são destruídos de dentro para fora. Patrícia A cada foto que tiro, dou um nome em minha cabeça. Esta se chama “Esperanças perdidas”. Esta outra é “Calouros descobrem a popularidade”. São os rostos de meus colegas de escola, contorcidos por nojo, alegria, surpresa e inveja. Mais tarde, revelarei cada foto na minha sala escura, estudando cada rosto, tentando entender o que significa ser aquela pessoa naquele exato momento emque meu obturador se fechou, capturando-a em um instante congelado no tempo. Encontrei a Nikon no meu sótão. Pertencia ao meu avô há muito tempo, e é totalmente manual. Fiz um curso de introdução à fotografia no ano passado e era a única da sala que não tinha uma câmera chique, cheia de sinos e apitos.
Os outros alunos não entendiam a adoração que o senhor Hankins tinha pela minha câmera, nem por que ele sempre mostrava minhas fotos como bons exemplos e me dizia que eu tinha um dom. Para eles, suas câmeras eram apenas mais um aparelho emuma vida cheia de gadgets, apenas uma bugiganga. Não sabiam olhar pelo visor e encontrar não somente uma foto bonita, mas a própria vida em todas as suas nuances. Houve um tempo em que eu teria me sentido insegura ao carregar uma câmera pela escola o dia todo. Houve um tempo em que teria me preocupado com o que as outras pessoas achavam de mim. Mesmo após ter me tornado a mais nova integrante da turma da Hanna, ainda passava um bom tempo me preocupando com o que as pessoas pensariam se eu usasse um penteado diferente, se não me vestisse exatamente com as roupas certas, se dissesse ou fizesse a coisa errada. Então, em algummomento, percebi que nada disso importava. Ou talvez simplesmente encontrei outras coisas com as quais me preocupar. Enfim, em algum momento surgiu um boato de que eu estava no comitê do livro do ano. Não sei quem começou, mas nunca me preocupei em desmentir isso. Então ninguém acha estranho que eu ande pela escola o dia todo com uma câmera. Eles nem se importam que eu tire fotos deles, até porque quem não gostaria de aparecer no livro do ano? É claro, nenhuma dessas fotos vai acabar emqualquer livro do ano. O único livro em que estarão é o meu caderno pessoal, no qual página após página é preenchida com os rostos dos alunos de Fidelity High, capturados em seus momentos mais nus e vulneráveis. Quando me preocupo com o futuro, com o que vai acontecer quando todos se formarem, pego meu caderno e folheio as páginas. Em parte, é reconfortante ver todos esses outros rostos, tantos deles tão problemáticos e assustados quanto eu. Em parte, é um esforço para adquirir um pouco de compreensão. Porque, até onde eu sei, no próximo ano caberá a mim guiar esse bando de almas atormentadas, e não tenho ideia de como fazer isso. Um rosto está visivelmente ausente em meu caderno, um rosto que provavelmente aparecerá emmuitas páginas do verdadeiro livro do ano. Não há fotos de Hanna em meu caderno, apesar de ela ser a figura mais dominante do nosso ensino médio e a mais influente em minha própria vida. Quando entrei em Fidelity High como uma caloura medrosa e patética, não fazia ideia de quemera Hanna. Meu primeiro dia foi um desastre. Um erro na secretaria fez com que a minha grade de horário fosse confundida com a de uma aluna do segundo ano, o que levou quase uma hora para ser esclarecido. Lembro-me de entrar no escritório quase em lágrimas, explicando meu caso para as secretárias confusas, quando uma garota bonita do segundo ano entrou pela sala, iluminando-a comseus cabelos loiros radiantes e seus olhos azuis. Quase que imediatamente ela resolveu as coisas. “Espere aí”, disse, quando o computador finalmente mostrou a minha grade certa.
“Isso não vai funcionar.” “O que foi?”, perguntei, com uma voz baixa e amedrontada. “Eles colocaram você no terceiro almoço”, explicou ela, “e a gente sempre almoça no segundo horário.” Então, simples assim, fez as secretárias reorganizarem minha grade, para que eu tambémpudesse almoçar no segundo horário. Quando saímos da secretaria, Hanna explicou onde eu encontraria sua mesa na lanchonete. Eu só pensava ter dado sorte por encontrar alguém que me deixasse sentar em sua mesa durante o almoço. Ainda não havia percebido que era muito mais do que um almoço – que, naqueles poucos minutos, Hanna havia decidido que eu deveria entrar em sua turma. Havia me adotado e se tornado minha fada madrinha. Em um instante, passei de uma caloura tímida com cabelos crespos e aparelho a uma das garotas mais populares da escola, que, inexplicavelmente, tinha cabelos castanhos crespos e usava aparelho nos dentes. Esse é o poder incrível da Hanna. Agora, talvez você entenda por que estou tão apavorada com o que vai acontecer no ano que vem, quando ela for embora. Tome como exemplo a lista de convidados fixada em um quadro de avisos vazio, no corredor da escola. Apenas algumas folhas de papel, uma lista de nomes. Qualquer um poderia ter impresso sua própria lista de convidados e fixado lá, mas somente a lista da Hanna tem o poder de gerar lágrimas de alegria e de devastação aos desejosos pela popularidade, cujos nomes estariam ou não anunciados no sagrado pergaminho. Um close de uma bochecha com lágrimas de rímel escorrendo, no momento em que uma alma desafortunada descobre que não hoje, não esta semana e talvez nunca saberá como é se sentir especial, sentir-se invejada. Um take de dois amigos se abraçando aliviados ao descobrirem que ambos entraram na lista. Nenhum consolo constrangedor para esses dois, nada de prometer não ir àquela festa idiota e depois quebrar a promessa, porque não importa quão forte seja sua amizade, você não pode deixar de ir à festa da Hanna. E aqui está o garoto que tenta parecer indiferente, mas a câmera flagra aquele brilho em seus olhos. Conheço essas pessoas. Refletirei sobre seus rostos por horas, mais tarde, na privacidade do meu quarto. Conheço-as; porém, mais importante ainda, elas me conhecem.
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