| Books | Libros | Livres | Bücher | Kitaplar | Livros |

A verdadeira historia do alfabeto – Noemi Jaffe

Era o ano de 341 a.C. quando Epicuro partiu de Samos para Téos, e, após ter se frustrado com o filósofo Pânfilo, ouviu notícias sobre o pensamento atomista. Depois de muitos estudos, Epicuro concluiu que a inclinação de um átomo por outro pode ocorrer não somente por necessidade, como pensava Demócrito, mas por atração e desejo. Foi por essa época, também, e em função da constatação sobre o desejo que os átomos sentiam uns pelos outros, que Epicuro desenvolveu a letra A. Os átomos já existiam desde toda a eternidade e o infinito dos infinitos, desde o momento causador do caos, mas ainda não havia uma letra para designá-los. Por esse motivo, o desejo de umátomo por outro, o apelo de um átomo pelo outro, não tinha como expressar-se. Não havia uma letra para fazê-lo. E o problema não era só dos átomos propriamente. As pessoas, movidas internamente pela força atômica, também se encontravam carentes de aproximação daqueles por quem se sentiamatraídas. Quando alguém como Demóstrata de Kyos se sentia perdidamente seduzida pelos átomos de Ípsion de Elera, que, por sua vez, não se dava conta do desejo que o visava, não havia forma de expressar tal desejo, pois, quando Demóstrata procurou Ípsion para declarar sua inclinação atomística, faltava uma letra para dizê-lo. Epicuro, observando a imensa lacuna que se desenhava entre as manifestações de desejo dos átomos — no espaço ou nos homens — e sua realização, determinou-se a criar a letra que preencheria todos esses vácuos amorosos. Em primeiro lugar, cuidou de definir, pela observação dos movimentos atômicos, qual seria a figura geométrica que mais se adequaria à representação de seu deslocamento pelo espaço e pelas células. Decidiu-se pela reta inclinada, que, aliás, também coincide com a definição que vinha configurando, de que os átomos sentem inclinação uns pelos outros. Permaneceu, por alguns meses, com a reta inclinada numângulo de 45 graus, mas não se satisfazia com ela. Considerava-a insuficiente para dar conta de todo o circuito que os átomos perfaziam. Foi quando, depois de uma noite comArícia de Páros, lembrou- se de outra reta inclinada, no mesmo ângulo mas em direção oposta, que, em seu vértice, se encontrasse com a anterior. Isso simbolizaria quase perfeitamente a força magnética que um átomo exercia sobre outro, embora não a importância igualmente relevante da casualidade, que, como seu mestre Demócrito afirmara, compunha necessariamente a atração entre os átomos. As duas retas inclinadas, encontrando-se no vértice, transpareciam somente atração necessária, e não casual. Mas rapidamente Epicuro se deu conta de que o vazio que havia na base entre as duas retas, sem que o triângulo se fechasse, estava ali justamente para representar o acaso, que, casualmente, já viera integrar-se ao desenho da letra sem que Epicuro percebesse. E ele então se satisfez com o triângulo aberto na base. Mas eis que o mestre, contra sua própria filosofia — a de que o prazer é a ausência de dor —, apaixonou-se por Arícia, e isso o afligia. Convidou-a a frequentar seu jardim e refletiu sobre o mal que aquela paixão lhe provocava. Como Arícia correspondia aos sentimentos de Epicuro e concordou em participar do jardim, a teoria do prazer como ausência de sofrimento podia ser efetivada sem prejuízo teórico. Foi durante essa experiência que Epicuro se lembrou de instalar uma pequena reta unindo as duas retas anteriormente inclinadas, para reforçar a ideia de aliança no bemestar.


Desde então, a letra A tem servido para todas as teorias atomistas subsequentes, como também para designar os aviões, um dos desenvolvimentos da teoria atomista, as aves e a cor azul, que não passa de um encontro feliz de átomos pacíficos. Em 1725, Johann Sebastian Bach se preparava para compor sua cantata número 1 em si bemol maior, na igreja luterana de São Tomás, em Leipzig, onde mantinha uso exclusivo e solitário do grande órgão adquirido pelo arcebispo de Leipzig, a seu pedido, dezoito anos antes, diretamente de umfabricante que por ali passara e comentara a existência do órgão, quando ocorreu um grave problema. Bach já sofria de cegueira quase completa, que uns diziam provir de diabetes mal tratada, mas outros mais maldosos garantiam ser efeito do fato de ele ter copiado as partituras de seu irmão 21 anos antes, no escuro. Mas isso pouco se comentava, porque todos testemunhavam a descida corpórea de anjos quando Johann se sentava ao órgão para tocar aos domingos e também, até mesmo, a presença de um pequeno anjo loiro quando ele havia começado a ensaiar uma nova fuga. O problema foi que Bach percebeu que uma das notas de uma frase musical da cantata teimava em não se completar. Sempre que ele começava a tocar a frase que martelava em sua cabeça, o órgão se recusava a soar aquela nota. Ele a tocava, mas, de alguma forma misteriosa, o som emitido era diferente. Da mesma maneira, a própria concepção da frase em sua imaginação e a correspondência mental da melodia estacavam exatamente naquela nota. Tratava-se de um si bemol, disso ele sabia. Pensou em modificar a nota, mas não era possível, pois a nota teimava em ser tocada e era certamente a mais exata para a cantata como Bach a concebera, ainda na noite anterior, durante mais um dos acessos de insônia que vinha tendo havia algumas semanas. O músico revirou o órgão por dentro, sentou-se, esperou, mas tudo continuava intocado, e o instrumento guardava-se com uma perfeição cada vez maior, quanto mais era tocado pelo emissário único dos anjos da esfera intermediária. Esses anjos intermediários, que habitavam uma porção, como diz o nome, mediana das esferas celestes, eram responsáveis pelas coisas terrenas que permitiam aos homens conhecer brevemente alguns enigmas do céu. Não pertenciam às camadas superiores, responsáveis pelos assuntos propriamente celestes, nem às totalmente inferiores, que se encarregavam de problemas estritamente mundanos, como doenças e afogamentos. Contrariado e ansioso, pois a cantata deveria ser apresentada dali a dois dias, quando a igreja contaria com a presença do arcebispo de Leipzig em pessoa, Bach tornou a sua casa, onde nada parecia acalmá-lo. Teimava em repetir aquele si bemol que, por sua vez, resistia a soar a contento. Em sua pequena biblioteca, com a ajuda do filho mais novo, Bach alcançou um volume antigo, cópia apócrifa de um manuscrito cujo original se encontrava guardado na Biblioteca Central do Vaticano. Tratava-se de uma reprodução dos originais de Guido d’Arezzo, escritos ainda no século X, sobre a marcação das notas musicais. Mais uma vez, depois de tantas que já havia folheado aquelas páginas, o músico se debruçou sobre os nomes das notas. Releu o Hino a São João Batista, de onde Guido havia extraído os nomes das notas ut, ré, mi, fá, sol e lá. Ut queant laxis — Para que nós, teus servos; Resonare fibris — possamos elogiar claramente; Mira gestorum — a força dos teus atos; Famuli tuorum — e teus milagres; Solve polluti — absolve a impureza; Labii reatum —de nossos lábios. Como em todas as outras vezes, o músico se emocionava com a precisão das palavras que praticamente justificavam a existência da música; um elogio claro à força e ao milagre de Deus e a mais perfeita absolvição de nossas impurezas. Rezou a Guido e, temerariamente, tambéma Deus e a outros anjos de sua predileção, a fim de que o iluminassem para que a nota teimosa se decidisse por soar harmoniosamente. Pela primeira vez, Johann percebeu, então, e para sua incompreensível surpresa, que, nas notações musicais de Guido, faltava justamente a correspondência para a nota si. Como isso poderia ter lhe escapado? Percebeu que, caso encontrasse a origem pia da nota, encontraria também a chave para sua recusa em soar. Passou o resto do dia revirando insatisfatoriamente seus outros manuscritos e ainda brigou com seu filho Wilhelm, que dizia, acintosamente, saber a origem oculta da nota.

À noite, entre sonhos fragmentados e sempre afetados pela vigília, entreviu uma resposta. As letras iniciais de Sancte Iohannes formavam o si, a nota que faltava. Foi direto ao cravo de seu quarto e acreditou que, finalmente, a nota soaria a contento. Não soou. Voltou à igreja cabisbaixo, e já cruzava o átrio quando Wilhelm surgiu ofegante, insistindo em lhe fornecer a resposta. Pediu-lhe que retomasse a notação grega, ainda proveniente da teoria pitagórica, ligada às esferas celestes e suas correspondências terrestres. Bach negou comveemência aquele descaramento pagão e mandou Wilhelm de volta para casa. Entretanto, ao voltar ao órgão, diante de mais uma recusa renitente da nota, sacou de uma pena que mantinha guardada no bolso de seu casaco e experimentou anotá-la segundo as regras do grego antigo. Desenhou: uma reta vertical do lado esquerdo, acoplada a dois semicírculos que a preenchiam lateralmente. Não conhecia o significado desse símbolo, mas sabia configurá-lo. Desenhou e imediatamente voltou ao órgão. A nota soou clara como se nunca tivesse resistido. O músico, apesar da heresia e diante do pouco tempo que restava para a apresentação, resolveu adotar a notação e, no momento de dar o nome à cantata, ainda ousou nomeá-la em homenagem àquela nota profana, que se intrometera na melodia contrapontística da fé cristã. Chamou-a Cantata em si bemol maior, ou, segundo sua própria anotação, Cantata em B bemol maior. Assim, com uma intervenção pitagórica das esferas cósmicas em meio à devoção piedosa das notas cristãs, nasceu a letra B, que se mantém até os dias de hoje emcoisas e seres religiosos e profanos, como as bétulas, os bichos e as bolas. Em 1611, durante a expedição que Cornelis de Houtman realizou nas Índias Orientais Holandesas, estabelecendo dali para a frente e de uma vez por todas a grande metrópole de Jacarta, capital da atual Indonésia, dois de seus tripulantes resolveram, à revelia do capitão, o qual mantinha uma rígida disciplina calvinista no navio, conhecer a famosa noite indonésia, que já naquele tempo circulava de boca em boca entre os marinheiros de todos os portos. Diziam os marinheiros de navios mais liberais que o do capitão Cornelis, como aqueles da Companhia de Jesus, liderados por homens cristãos e, portanto, mais negligentes com as alegrias da carne, como João Lopes e Luís Angra de Vasconcelos, que as mulheres de Jacarta eram as mais lascivas, corpulentas e alegres de todas as colônias e que, além de tudo, dominavam segredos sexuais nunca antes imaginados nem por católicos, muito menos pelos reformistas, escravos do trabalho e do dinheiro. Rijskmussen e Maarten, os dois tripulantes do navio holandês, já havia muito estavam cansados das exigências descabidas do comandante. Noventa dias no mar, sem conhecer o destino de chegada, enfrentando tempestades que certamente poriam fim à vida de tantos pobres coitados, ladrões, condenados, estupradores honestos, e tudo isso sem poder fornicar, beber um único gole de gim, dançar ao som das Sinterklass, que o marinheiro Gunther tocava tão bem na flauta de madeira, nada, nada, somente aquelas leitosas aulas noturnas, com a horrorosa filha do capitão, sobre a importância do trabalho, da grandeza da nação holandesa, da inferioridade servil das colônias, de sua selvageria e que todos se encontravam lá para a grandeza da Coroa e aquela conversa que não enganava ninguém e ainda os impedia de aproveitar os prazeres imediatos. Como eles invejavam os marinheiros católicos, devassos, poluídos, gordos, menos bemsucedidos, é certo, mas o que eles queriam com o sucesso da Holanda? Rijskmussen e Maarten haviam se conhecido pouco tempo antes, no mar das Celebes, durante uma pequena tempestade. O capitão havia pedido aos dois que cuidassem do mastro esquerdo da popa do navio, para que ele se mantivesse ereto, e durante sete horas seguidas os dois se conheceram, falaram de suas famílias, de suas condenações — um por sacrilégio e outro por cortejar a prima — e prometeram que, se sobrevivessem juntos à tempestade e à viagem, iriam também, juntos e em segredo, aproveitar a noite da famosa Jacarta, beber à amizade e, por que não?, também à Holanda. Escondidos, portanto, e durante a noite, os dois escorregaram para fora do navio e caminharam até atingir a praça central de Jacarta, então chamada praça Merdeka. Vendedores ambulantes, estrebarias, estalagens, bêbados, magos e religiosos ainda se misturavam na praça àquela hora da noite. Os dois estacionaram emfrente a um enfeitiçador de serpentes e se admiraram de sua arte, que julgavam milagrosa, de fazer a cobra responder ao seu chamado. Compraram sal, valioso em outras paragens, experimentaram a canela e o açúcar mascavo, e avistaram, ali perto, duas moças, em trajes brilhantes e sumários, que aparentavam ali estar para oferecerem-se aos homens.

Das Américas às Índias, passando pela China e pelos mares do Sul, era como se fossem sempre as mesmas moças, ainda que usassem outras roupas e tivessem outros trejeitos. O mesmo olhar de misericórdia e malícia, carência e superioridade. Rijskmussen e Maarten eram ambos homens sensíveis, os dois preocupados com a família e amantes de música e de teatro. Dirigiram-se rapidamente às moças e as abordaram com gentileza, como tinham aprendido em outros portos, o que as comoveu imediatamente e as deixou prontas a acompanhá-los. Foram para uma hospedagem modesta, porém bem cuidada, e cada uma, naturalmente, como se tivessem sido escolhidas para eles, encaminhou-se a um alojamento. Assim que entrou, Maarten assombrou-se. Era uma câmara coberta de lenços dourados, prateados e multicoloridos do chão ao teto, forrada de almofadas que brilhavam e com cheiros que o acolhiam. Abhay dançava e se despia, enquanto entoava uma melodia estranha aos ouvidos de Maarten, que a olhava enfeitiçado.

.

Baixar PDF

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Baixar Livros Grátis em PDF | Free Books PDF | PDF Kitap İndir | Telecharger Livre Gratuit PDF | PDF Kostenlose eBooks | Descargar Libros Gratis |