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A viagem do descobrimento: A verdadeira história da expedição de Cabral – Eduardo Bueno

Botelhos são algas da família das fucáceas. Seu nome científico é fucus vesiculosus porque, em suas extremidades, essas algas possuem “vesículos” cuja forma se assemelha a uma garrafa. A palavra botelho veio do espanhol boteja, que significa justamente “garrafa”. Já as algas chamadas de “rabos-de-asno” nunca foram apropriadamente identificadas pelos estudiosos da Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual foram citadas, junto com os botelhos, como as ervas marinhas que deram aos homens de Cabral a certeza de que se encontravam próximos da terra. Fura-buxos, as aves da anunciação do Brasil, são gaviotas do gênero Puf inus anglorum, de plumagem negra no dorso e cabeça tingida de branco, muito comuns nos Açores e no litoral do Nordeste do Brasil. Como tapetes flutuantes, elas surgiram de repente, “em muita quantidade”, 1 balançando nas águas translúcidas de um mar que refletia as cores do entardecer. Os marujos as reconheceram de imediato, antes que sumissem no horizonte: chamavam-se botelhos as grandes algas que dançavam agrupadas nas ondulações formadas pelo avanço da frota imponente. Pouco mais tarde, mas ainda antes que a escuridão baixasse sobre a amplitude do oceano, outra espécie de planta marinha iria lamber o casco das naves, alimentando a expectativa e desafiando. os conhecimentos daqueles homens temerários o bastante para navegar por águas desconhecidas. Desta vez eram rabos-de-asno: um emaranhado de ervas felpudas que “nascem pelos penedos do mar”. 2 Para marinheiros experimentados, sua presença era sinal claro da proximidade de terra. Se ainda restassem dúvidas, elas acabariam no alvorecer do dia seguinte, quando os grasnados de aves marinhas romperam o silêncio dos mares e dos céus. As aves da anunciação, que voavam barulhentas por entre mastros e velas, chamavam-se fura-buxos. Após quase um século de navegação atlântica, o surgimento dessa gaivota era tido como indício de que, muito em breve, algum marinheiro de olhar aguçado haveria de gritar a frase mais aguardada pelos homens que se fazem ao mar: “Terra à vista!” O diário da histórica viagem de Vasco da Gama à Índia foi escrito por um marinheiro de nome Alvaro Velho. Ao passar pelas ilhas do Cabo Verde, Gama (abaixo) decidiu “abrir” seu rumo para o sudoeste, possivelmente seguindo indicações dadas por Bartolomeu Dias, seu precursor. De todo modo, foi a Gama que passou a ser atribuída a manobra genial que viria a ser conhecida como “a volta do mar”. Vasco da Gama e Cabral mantiveram contato constante antes da partida de Cabral. As instruções que o futuro Almirante das Índias deu ao futuro descobridor do Brasil são uma das “provas” mais citadas pelos defensores da teoria da intencionalidade da descoberta do Brasil. Além do mais, não seriam aquelas aves as mesmas que, havia menos de três anos, ao navegar por águas destas latitudes, o grande Vasco da Gama também avistara? De fato, em 22 de agosto de 1497, quando a armada de Gama se encontrava a cerca de 3 mil quilômetros da costa da África, em pleno oceano Atlântico, um dos tripulantes empunhou a pena para anotar em seu Diário: “Achamos muitas aves feitas como garções – e quando veio a noite tiravam contra o su-sueste muito rijas, como aves que iam para a terra.” Se nas oito décadas anteriores, em suas descobertas oceânicas, os portugueses nunca haviamdeixado de observar (e quase sempre seguir) o voo das aves, Vasco da Gama deve ter tido a certeza de que, caso desviasse ainda mais para oeste a rota que o estava conduzindo ao cabo da Boa Esperança (o ponto extremo sul da África) e daí para a Índia, fatalmente iria deparar com alguma terra – se uma ilha ou um continente, ainda era impossível saber. Mas o fato é que, por quase um século, em sua busca pelo caminho marítimo para as Índias, os lusos haviam navegado sempre em direção ao Oriente. E não seria naquele momento – depois que a fórmula para contornar a África fora enfim descoberta e a rota que conduzia à Índia se tornava cada vez menos nebulosa – que Gama iria alterar seu rumo e partir em direção às terras que, cinco anos antes, o genovês Cristóvão Colombo descobrira em nome da Espanha. A nova exploração deveria ficar para depois. Mas agora oito meses já se haviam passado desde o glorioso retorno de Vasco da Gama a Lisboa – após ele ter de fato, e enfim, desvendado a rota marítima que levava da Europa às fabulosas riquezas da Índia. E era justamente sob suas instruções que navegavam as 13 embarcações da frota comandada por Pedro Álvares Cabral.


Num baú, trancado em seu camarote, Cabral mantinha o manuscrito que o próprio Gama lhe confiara em Lisboa. Para escapar das enervantes calmarias do golfo da Guiné – com suas correntes contrárias e seu calor insalubre –, Cabral fora aconselhado pelo mestre a navegar para oeste, fazendo o que viria a se chamar de “a volta do mar”, antes de guinar para sudeste e contornar o cabo amedrontador que, anos antes, o rei D. João II rebatizara de “da Boa Esperança”, mas que os marinheiros, mais pragmáticos e menos protegidos, ainda conheciam por “cabo das Tormentas”. Embora sua missão fosse instalar um entreposto português no coração do reino das especiarias, emCalicute, na Índia, nada impedia Cabral de, naquele instante, prosseguir mais algumas léguas para oeste. Ele poderia investigar então a existência daquelas terras cuja presença Gama intuíra, inspirado não apenas por boatos seculares, mas pela própria desenvoltura com que as aves voavam no rumo do sudoeste. Como se tais indicações não fossem o bastante, as ervas flutuantes e a vivacidade dos furabuxos logo foram consideradas pelos homens de Cabral como mais do que um simples presságio. As Naus Embora as caravelas tenham sido os navios mais utilizados durante o período inicial das descobertas lusas, as naus se tornariam os navios mais usados durante o período áureo das expedições marítimas. As naus (do latim nave) eram uma evolução das caravelas e chegaram a ter 600 toneladas no auge da “Carreira da Índia”, sendo então substituídas por imensos galeões (alguns dos quais tinham 1.200t e 40 bocas de fogo), A capacidade dos navios do século XVI era medida pelo número de tonéis que eles levavam a bordo. O tonel era um barril de 1,2m de comprimento por 80cm de diâmetro. Embora tais tonéis não sejam mais utilizados, a palavra “tonelagem” ainda é aplicada para definir a capacidade de carga das embarcações. Quarenta e dois dias já se haviam passado desde que a armada chefiada por Pedro Álvares Cabral se lançara ao mar com destino à Índia. Com 10 naus e três caravelas, era a maior e mais poderosa frota que Portugal jamais enviara para singrar o Atlântico. Embora apenas duas semanas após a partida uma das naus houvesse desaparecido – “comeu-a o mar”, na frase poética e terrível de então –, a jornada fora rápida e tranquila. Nada ocorrera – nem temporais, correntes ou ventos bravios – que pudesse justificar um desvio involuntário de rota. E como atribuir um avanço tão resoluto para oeste a um erro de cálculo se a esquadra estava sob o comando dos pilotos mais habilidosos de seu tempo? Cinco dias antes do surgimento das ervas e das aves, a frota tinha vencido uma data muito temida pelos mareantes – mas o céu não escurecera nem trovões ribombaram naquela Sexta-Feira Santa, 17 de abril de 1500. Durante toda a Quaresma, os sacerdotes de bordo – sob o comando de frei Henrique de Coimbra – haviam tido tempo de sobra para apregoar sua liturgia de mistérios e consolações. Aqueles homens de batinas negras recitaram ladainhas e restringiram as absolvições. Um temor reverencial semeou-se na alma dos viajantes. “Se queres aprender a orar, faça-te ao mar”, dizia um ditado da época. A bordo, durante vários dias, houve jejum e penitência. A imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança que Cabral levara consigo ao longo de toda a viagem de Portugal à Índia foi colocada em uma capela construída por ele especialmente para abrigá-la. Até o século XVII a capela, deixada sob a guarda dos frades franciscanos, seria mantida por descendentes de Cabral. Atualmente, a estátua (acima) ainda pode ser vista na igreja da Sagrada Família, em Belmonte, cidade natal de Cabral. No domingo de Páscoa, porém, a ressurreição de Cristo pôde ser comemorada com uma missa solene, celebrada no convés da nau-capitânia, entre os mais ricos paramentos e os mais belos castiçais.

O órgão de frei Maffeu, um dos oito frades da frota, modulou a música sacra, cuja melodia barroca ecoou nos corações e mentes dos soldados e da marinhagem, dos degredados e dos comandantes. As rações foram melhoradas – a marmelada deixou os caixotes e foi distribuída entre os cerca de 1.350 homens embarcados nos agora 12 navios; os canecões de vinho rodaram com alguma liberalidade. A essas alturas, sem que ainda se pudesse saber, a armada estava a uns 250 quilômetros da costa, na altura daquela que, poucos anos mais tarde, viria a ser chamada de Bahia de Todos os Santos. Os mantos de ervas flutuantes surgiram à frente da frota na terça-feira, 21 de abril, apenas dois dias após a celebração da Páscoa. Ventava leste franco – o que significava que a esquadra de Cabral poderia navegar com facilidade para oeste, sem pôr em risco o objetivo de atingir a Índia o mais rápido possível. Na manhã seguinte, 22 de abril, com o vento ainda soprando de leste, o voo rasante dos fura-buxos levou os homens a repicarem os sinos e se apinharem nos tombadilhos. Ao contrário de Colombo, que “não conhecera o sono” 3 ao longo dos 36 dias em que navegara pelo Atlântico disposto a concretizar o sonho impossível de atingir as Índias pelo rumo do poente, não há indícios de que Cabral não tenha dormido noites impávidas durante os 43 dias em que esteve em alto-mar. Ainda assim, e talvez por isso mesmo, enquanto o alvoroço tomava conta dos embarcadiços, Pedr’Álvares, de 32 anos, mais um militar do que propriamente navegador, ajoelhou-se em frente à imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança, que ele próprio escolhera como padroeira da viagem e mandara entronizar num altar erguido no convés da capitânia. 4 Era uma oração legítima: os santos do céu (e os deuses do mar) pareciam de fato estar do seu lado. “Horas de véspera” era uma das sete partes em que se dividiam as horas canônicas. Equivaliam ao período entre 15 horas e o pôr do sol. Então, a cerca de 70 quilômetros da costa, nas horas de véspera, mais com alívio e prazer do que com surpresa ou espanto, o capitão e seus pilotos, os marinheiros e os soldados, os sacerdotes e os degredados, acotovelados todos à mureta das naus, puderam vislumbrar o cume de “um grande monte mui alto e redondo” 5 erguendo-se no horizonte longínquo. Ao entardecer, depois de avançar cautelosamente por mais 40 quilômetros, a frota deparou com outras serras, mais baixas, esparramando-se ao sul do grande monte. Silhuetadas contra o crepúsculo, cercadas por “terras chãs”, 6 elas surgiram vestidas por um arvoredo denso que avançava quase até o limite das águas claras, das quais as separava apenas uma estreita faixa de areia. A seis léguas (ou cerca de 40 quilômetros) da costa, a armada lançou âncoras. Elas mergulharam 34 metros no mar esverdeado antes de tocar o fundo arenoso. Estava descoberto o Brasil. Que significado teve essa descoberta? Na verdade, não apenas naquele exato instante, mas pelas três décadas seguintes, ela representaria pouco mais do que um intervalo idílico em meio a uma longa e tediosa navegação oceânica. Mas, para além do impacto que a mera existência de um oásis em meio ao oceano há de ter provocado nos homens que a vislumbraram depois de mais de um mês em alto-mar, o “achamento” daquela terra não iria, a princípio, se revestir de maior importância – e muito menos alterar o rumo e o espírito da missão da qual a frota de Cabral fora incumbida. Em primeiro lugar, se já não era conhecida, a existência dessa “nova” terra era, quando menos, previsível. Muitos anos antes de Vasco da Gama ter avistado aves voando “muito rijas” em meio ao oceano, os portugueses estavam convictos de que outras ilhas deveriam existir a oeste dos Açores e da Madeira – onde os ventos, por vezes, faziam aportar troncos com entalhes misteriosos. A questão é que parecia não valer a pena explorá-las. A Índia – com suas especiarias e suas sedas – com certeza ficava na direção oposta. A Ilha do Brasil A ilha do Brasil, ou ilha de São Brandão, ou ainda Brasil de São Brandão, era uma das inúmeras ilhas que povoavam a imaginação e a cartografia europeia da Idade Média, desde o alvorecer do século IX.

Também chamada de “Hy Brazil”, essa ilha mitológica, “ressonante de sinos sobre o velho mar”, se “afastava” no horizonte sempre que os marujos se aproximavam dela. Era, portanto, uma ilha “movediça”, o que explica o fato de sua localização variar tanto de mapa para mapa. Segundo a lenda, Hy Brazil teria sido descoberta e colonizada por São Brandão, um monge irlandês que partiu da Irlanda para o alto-mar no ano de 565. Como São Brandão nascera em 460, ele teria 105 anos quando iniciou sua viagem. O nome “Brazil” provém do celta bress, que deu origem ao verbo inglês to bless (abençoar). Hy Brazil, portanto, significa “Terra Abençoada”. Desde 1351 até pelo menos 1721 o nome Hy Brazil podia ser visto em mapas e globos europeus, sempre indicando uma ilha localizada no oceano Atlântico. Até 1624, expedições ainda eram enviadas à sua procura. Portanto, ao visualizarem aquele morro – que, de início, julgaram ser parte de uma ilha –, Pedr’Álvares e seus comandantes não foram tomados de grande perplexidade. Talvez nem mesmo a soldadesca inculta: desde o alvorecer do século IX, a imaginação e a cartografia europeias povoavam de ilhas as amplitudes desconhecidas do Atlântico – e a mais famosa delas se chamava ilha do Brasil. Aquele mar de árvores verdejantes, que agora balançava à frente das naus, deveria se erguer do solo de uma dessas ilhas tão faladas. Assim, quase meio século se passaria antes que os 10 dias durante os quais a armada de Cabral esteve ancorada nas enseadas paradisíacas da ilha de Vera Cruz viessem a ser considerados muito mais do que um simples “parêntese” em meio à obsessiva busca dos lusitanos pela Índia. De fato, foi somente três décadas após o avistamento do monte Pascoal – quando o fracasso comercial da “empresa das Índias” começou a se configurar – que o Brasil não só deixou de ser visto como uma consequência fortuita da grande saga dos descobrimentos como se tornou, progressiva e incontestavelmente, o cerne e o coroamento da aventura ultramarina dos portugueses. Porém, naquele momento – agora que a noite caíra, trazendo consigo os perfumes misteriosos da terra, e as naus balouçavam na escuridão em frente à costa, com os homens aguardando, insones, que o amanhecer lhes revelasse outra vez os fascínios do trópico –, ninguém a bordo tinha condições de supor que os portugueses haviam acabado de aportar diante do terceiro continente ao qual seu resoluto processo expansionista os tinha conduzido. Mas como imaginar, então, que o processo que estava para se iniciar na manhã seguinte seria o princípio da integração do Brasil ao mundo atlântico, ao circuito mercantil e à civilização europeia? Tal profecia era de todo inimaginável – embora fosse ela que, 44 dias e 7 mil quilômetros antes, num domingo ensolarado, em pleno coração de Lisboa, tivesse começado a se concretizar. A Capela do Infante Erguida numa suave colina no bairro de Belém, em Lisboa, a ermida de São Jerônimo foi mandada construir pelo infante D. Henrique e entregue por ele aos frades do convento de Tomar – ligados à Ordem de Cristo – para que eles abençoassem a partida das expedições marítimas. No auge do período manoelino, a ermida foi reformada pelo principal arquiteto do rei D. Manoel I, o francês Diogo Boitac, que também projetou o suntuoso mosteiro dos Jerônimos, sua obra-prima. O PORTO DE PARTIDA De fato, o dia 8 de março de 1500 caiu num domingo. A data fora cuidadosamente escolhida para que Lisboa, já então o principal centro da expansão ultramarina da Europa, pudesse se rejubilar emfestejos e celebrações. Fazia apenas oito meses que os dois navios da esquadra de Vasco da Gama tinham retornado àquele mesmo porto da praia do Restelo, junto ao rio Tejo, trazendo a notícia de que era possível atingir a Índia após circunavegar a África. Os 240 dias que se seguiram ao retorno de Gama foram os mais promissores que Portugal vivera desde a gloriosa conquista de Ceuta, emMarrocos, 85 anos antes. A certeza de que a Índia podia ser alcançada por mar era a recompensa por quase um século de esforços ininterruptos; a coroação de uma aventura que exigira grandes conquistas náuticas, custara muito dinheiro e reclamara centenas de vidas. Com a certeza de que o prêmio por tanto empenho estava ao alcance da mão, o rei D.

Manoel I queria que todos – inclusive os espiões da Espanha e de Veneza, os representantes dos comerciantes genoveses e os agentes ingleses, além do povo em geral – vislumbrassem a gloriosa partida de sua nova missão, comercial e guerreira, ao reino das especiarias. Por isso, desde a tarde anterior a pequena capela da ermida de São Jerônimo – que, havia quase 100 anos, o infante D. Henrique, padroeiro de todas essas conquistas, mandara construir às margens do Tejo – tinha sido suntuosamente decorada por artífices e tapeceiros. À direita do altar, um dossel (espécie de toldo) fora erguido para abrigar o próprio D. Manoel e sua corte. Toda a população de Lisboa fora convocada a presenciar a partida da esquadra. Por volta das 9 horas de uma manhã radiosa, o cortejo real – rutilante de ouro e veludo – chegou à capela, onde já se encontravam os capitães da frota e banqueiros opulentos que financiavam boa parte daquela caríssima expedição. Ao altar subiu D. Diogo Ortiz, bispo de Ceuta, matemático e cosmógrafo. Junto com os astrólogos Abraão Zacuto e José Vizinho, ele fora um dos consultores que, em 1487, vetara a aprovação ao delírio de Cristóvão Colombo – que pretendia atingir as Índias navegando para oeste. Após o sermão, pronunciado à luz de tochas, D. Diogo benzeu uma bandeira da Ordem de Cristo – ordem militar originária dos Cavaleiros Templários da Idade Média – e, retirando-a do centro do altar, a entregou a el-Rei. D. Manoel passou-a então a Pedro Álvares Cabral, o nobre cavaleiro que ele escalara para chefiar aquela missão e que havia convidado para sentar junto a si, sob a cortina franjada do dossel. A seguir, depois de o rei ter oferecido ao comandante também a touca vermelha usada por clérigos e cardeais – que fora benta pelo próprio Papa e era chamada de “barrete” –, todo o grupo, carregando cruzes e relíquias, saiu em lenta procissão rumo ao porto. Lá fora, a praia do Restelo fervilhava. Essa agitação febril foi descrita em minúcias pelo grande cronista real João de Barros, segundo todas as probabilidades uma testemunha ocular da cena. “A maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tão celebrada por el-Rei, cobria aquelas praias e campos de Belém”, anotou Barros no primeiro volume de sua obra clássica, Décadas da Ásia. “E muitos, em batéis que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assim serviam todos com suas librés [uniformes da criadagem real] e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol [o conjunto] daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levantava o espírito destas cousas, eram as trombetas, atabaques, cestros, tambores, flautas, pandeiros e até gaitas cuja ventura foi andar em os campos no apascentar [pastorear] dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, porque para viagem de tanto tempo tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar. Com as quais diferenças que a vista e ouvidos sentiam, o coração de todos estava entre prazer e lágrimas, por ser essa a mais formosa e poderosa armada que até aquele tempo para tão longe deste reino partira.” Era, de fato, uma armada imponente: vistas das alturas da Alfama, um dos bairros altos de Lisboa, sob a luminosidade daquele fim de inverno, as dez naus e as três caravelas balouçavam na contraluz das águas do rio Tejo, em frente ao Restelo, que o mesmo Barros chamara de “praia das lágrimas para os que vão, e terra do prazer para os que vêm”. É lícito supor que muitos dos jovens que em breve embarcariam na frota de Cabral tenham estado naquele mesmo porto ainda crianças, em dezembro de 1488, quando a ele retornara Bartolomeu Dias com a notícia de que a África podia ser contornada. E quantos deles, mais crescidos, não haviamdecidido fazer-se ao mar apenas nove meses antes, no momento em que Nicolau Coelho, antecipando-se ao próprio Gama, chegara a Lisboa, em 10 de julho de 1499, alardeando que a Índia fora enfim atingida? Dando à cena a coerência que, desde o início, caracterizou os descobrimentos lusos, tanto Coelho como Dias já estavam se preparando para subir novamente a bordo. A esquadra que Cabral iria comandar era, mais exemplarmente do que qualquer outra armada até então, um pedaço flutuante de Portugal.

Conduziria em seu bojo gente de todos os estratos sociais, numa divisão rigidamente hierárquica, desde nobres até degredados. No topo dessa pirâmide, logo abaixo do comandante, estavam os capitães das 12 demais embarcações. Alguns poucos – entre os quais Nicolau Coelho, Bartolomeu Dias e seu irmão Diogo – haviam sido escolhidos por sua destreza no mar. Os demais – como ocorrera desde as frotas armadas no século anterior pelo infante D. Henrique – ocupavam o cargo em função da complexa teia de suas ligações familiares e da “qualidade de seu sangue”. Esses, em geral, eram membros da Ordem de Cristo.

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