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A Viagem Vertical – Enrique Vila-Matas

Quando a noite caiu em pleno dia sobre Barcelona e o temporal de chuva e vento se desencadeou, Federico Mayol, que há uma semana estava à beira do abismo e naquela tarde vagabundeava, não teve outro remédio além de refugiar-se num bar da praça Letamendi, pronunciando a palavra desespero. Já no bar, disse a si mesmo que havia chegado a hora de enfrentar, de uma vez por todas, a situação de catástrofe total em que a vida mergulhara desde que sua mulher, uma semana antes, na penumbra da cozinha, falou: — Se não tivesse tanto medo, se meu caráter fosse mais forte, agora me atreveria a lhe dizer como gostaria de… Ela, que descascava ervilhas na cozinha banhada pela luz do entardecer, deteve-se justamente por causa do medo que tinha do marido, e ele então, com ar de autossuficiência, ordenou-lhe que continuasse. — Está bem — disse ela, observando absorta como as ervilhas caíam ritmadamente dentro da vasilha de porcelana —, você pediu, querido. Eu agora diria a você o quanto gostaria que me deixasse, que fosse embora desta casa para sempre e me deixasse sozinha. Sim, eu diria isso. Vá embora, Federico. Me deixe sozinha, quero saber quem sou, eu preciso. Ele achou que a mulher estava brincando, embora não deixasse de ser muito estranho ouvi-la falar dessa maneira. Teve dúvidas se não estaria bêbada, mas isso era improvável pois ela jamais havia bebido na vida. Tentando se acalmar, chegou à conclusão de que estava simplesmente diante de um daqueles discretos rompantes de suave mau humor que ela tinha muito de vez em quando. — Eu ouvi bem? — disse ele num tom de voz algo ameaçador que, diante da esposa sempre lhe ajudara a manter o controle de qualquer situação. O que Federico Mayol — Mayol para os amigos — mais gostava dessa casa, sua segunda residência, era o local em que se encontravam nesse momento, um espaço que não tinha nome, algo assim como um pátio entre a cozinha e o jardim coberto parcial mente e que os dois decoraram aos poucos. Ali sentia-se feliz por que, entre outras coisas, podia contemplar a horta que a mulher lhe havia pedido para quando a velhice chegasse. — Repito. Será que ouvi bem? — disse Mayol elevando o tom intimidatório. O resultado de sua estratégia foi o contrário do que pretendia. Sua mulher, talvez pelo cansaço de haver suportado tantos anos aquela voz ameaçadora reagiu com raiva, perdendo imediatamente parte de seu medo. — Claro que ouviu bem. Até agora só tinha sugerido, mas agora eu exijo. Quero que você vá embora desta casa e da de Barcelona. Das duas, entendeu? Quero que me deixe em paz. — Mas você ficou louca? Ela ficou olhando melancolicamente a horta. Depois, com voz pausada, tentando dominar o medo que ainda lhe restava no corpo, disse: — Eu sei muito bem o que estou fazendo. Você sempre pensou que, em matéria de amor, não amar demais era um meio seguro de ser amado. E você se enganou, meu pobre Federico.


Ainda que seja tarde, agora me dei conta disso. Quero que saia de minha vida, meditei muito, quero que me deixe sozinha, eu preciso. Mayol observou-a querendo acreditar que tudo aquilo era tão irreal quanto um pesadelo. Ela ficou como que ausente, relaxada depois de suas últimas palavras; ficou com a serenidade própria de um rio tranquilo e profundo, que permanece imperturbável em toda sua extensão diante do ocaso do dia. Calada, olhou para além da horta, para a luz mais longínqua do crepúsculo onde talvez visse refletido o poente de seu casamento. — Vamos, Julia. Diga que está zombando de mim. Você está fazendo isto porque fica irritada quando descasca ervilhas. Essas últimas palavras devem ter parecido uma afronta para ela. Reagiu com violência. — Como tenho de lhe dizer? Vá pensando em me deixar em paz. Os poucos anos de vida que me restam quero desfrutá-los em liberdade. Uma noite antes haviam celebrado em Barcelona suas bodas de ouro, e nem a mente mais perspicaz do mundo teria conseguido intuir, no dia seguinte, uma cena conjugal feito essa. Ela não só fora sempre um modelo de mulher fiel ao marido, mas em todos os momentos, ao longo de meio século de casamento, tinha sido a mãe cristã e perfeita de seus três filhos e a esposa ideal, uma mulher discreta e elegante que dedicara toda sua vida a Mayol. — Já sei o que está acontecendo. Você ficou louca ao vir para o campo. Pois olhe que eu avisei. E pensar que estaríamos tão tranquilos em Barcelona, comentando o que se passou ontem. Ou é por causa das alfaces? — Fazia dias que mantinham uma tola discussão sobre uns pés de alface que ela havia plantado no espaço existente entre os pés de berinjela, sem pensar que as baratas gostariamainda mais das folhas de berinjela que das folhas de batata. Por culpa das alfaces não se podia pulverizar com arsênico. — Claro, é pelas alfaces. Então olhe, Julia, não estou disposto a continuar discutindo. Devíamos estar em Barcelona e não aqui, descascando ervilhas e olhando o tempo todo para essa horta de merda. — Os poucos anos que me restam — disse ela, com palavras que pareciam muito meditadas, tremendamente sérias —, quero desfrutar em paz. Tenho estado excessivamente confinada a todas as suas decisões, ao seu egoísmo.

Olhe para mim, se puder. Careço de personalidade, só tenho uma horta e sou apenas um vaso triste. Você deve estar contente. Não sei quem sou, essa é a única realidade. Sobretudo, não sei que tipo de mulher eu seria se não tivesse ficado toda a vida ao seu serviço. Decidi, nos poucos anos que me restam, descobrir quem sou realmente ou, no mínimo, quempoderia ter sido e não fui. Eu preciso. Mayol quis lhe dizer que ela sempre havia exalado um aroma de desamparo e que desde o primeiro momento ele experimentou um impulso instintivo de protegê-la, mas preferiu calar, ser prudente. Em vez disso, respondeu: — Você não fala sério, não é possível que esteja falando sério. Julia, já somos velhos, velhos demais. Sempre fomos felizes. Eu lhe dei tudo. Na verdade é impossível acreditar que você possa estar falando sério. Bastou dizer isso para logo começar a acreditar. Em toda sua vida não tinha se deparado com algo tão inesperado e perturbador. Mayol sentia-se terrivelmente confuso. Decidiu ir até a sala e se entreteve com o baralho, jogando paciência. Achou melhor deixar passar um tempo para ver se mais tarde as coisas mudavam. Alguns minutos depois, voltou sigilosamente àquele pátio entre a cozinha e o jardim. Sua mulher já não descascava ervilhas. Estava sentada, com o olhar perdido. — E então? Sente-se melhor? — perguntou Mayol. — Quanto antes você entender que deve desaparecer da minha vida, tanto melhor para os dois. — Você ficou louca ou tomou alguma droga, sei lá o que fez, mas tudo isto não é normal. Vou levá-la ao médico.

Já chega de bobagens. Vejamos. Supondo que fale sério — fitou-a nos olhos e viu com horror que de fato ela falava sério —, gostaria de saber onde você pensa que devo ir morar. Olhe, Julia, não seja ridícula. E, além do mais, gostaria de saber como você pensa que irá se sus tentar. Pelo amor de Deus, já temos mais de setenta anos… Olhe, se quiser, preparo um analgésico para você. — Não me faça rir — disse ela, rindo de um jeito infinitamente sério. Era preciso reconhecer que, de uma maneira tão firme quanto enlouquecida, a menção ao dinheiro parecia tê-la enfurecido. — Meus filhos vão me ajudar, isso é claro como água. Até os negros sabem disso. Até os negros sabem disso. Essa afirmação, fazia mais de cinquenta anos, essa afirmação pronunciada com estranha graça e encanto, o levou, num bar de Viladrau, a pedi-la em casamento. Fazia mais de cinquenta anos. Agora a frase parecia ter recobrado matizes muito diversos aos daquele dia inesquecível. — Gostaria de saber o que é que sabem os negros — disse Mayol um tanto fora de si. Essa é a independência que você quer conseguir? Talvez fosse mais conveniente me denunciar por maus— tratos, nos divorciarmos e eu pagar a você uma pensão vitalícia para que se dedique, sem problema a tratar de saber quem é ou quem poderia ter sido. Você está maluca, Julia. A resposta foi um olhar medonho, de verdadeiro ódio. Desvaneciam-se, a passo ligeiro mais de cinquenta anos de doçura e submissão. — Você pode dizer o que quiser — disse ela. — Não vai mudar minha decisão. Vamos voltar para Barcelona. Para mim é uma questão de vida ou morte. Meditei muito, mas não sabia como dizer e nem se ousaria fazê-lo, mas agora já fiz e não vou voltar atrás. Você tem que fazer um esforço, sei que é difícil.

Mas tente. Tente se colocar no meu lugar e compreender. Vamos voltar para Barcelona, vamos voltar para a casa em que você tantas vezes me deixou sozinha enquanto saía com sua amante ruiva. Essa é a casa de minha solidão. A partir de hoje o será para sempre. Não quero vê-lo mais dentro dela. Não sabe o quanto chegou a me incomodar, desde que começou a sentir-se velho, o fato de você passar mais tempo nela, nesta casa que na verdade é só minha. Minha. Entende? Eu a fui moldando à minha medida, à medida de minha solidão. Você dentro dela é só um estorvo. Ficava claro que a mulher, embora um pouco trêmula, vencera todo o medo e se fortalecia cada vez mais. Mayol não saía do estupor ao mesmo tempo em que não parava de recomendar a si mesmo paciência e prudência. — Nunca tive uma amante — disse Mayol com voz quase sus surrada, tentando reprimir a fúria que se apoderara dele. — Tudo isto é cada vez mais grotesco. Reconheço que nunca fui muito caseiro, mas não creio que isso seja um crime. Além do mais, você esquece um pequeno detalhe. Talvez já não se lembre, mas eu tive que sair de casa, entre outras coisas, para ganhar a vida. Ou não, querida? Trabalhei como um imbecil para você e para as crianças, isso é tudo. Sim, claro. Reconheço que passei muito tempo com os amigos. Mas é que em casa eu me aborrecia, o que posso dizer? Agora, por favor, Julia, nunca tive uma amante. Nunca a enganei e você sabe muito bem. — Você se aborrecia porque sempre foi incapaz de ficar tranquilo lendo um bom livro ou assistindo a um bom filme na televisão ou simplesmente achando boas razões para me fazer companhia. Sempre tinha que sair. Sair! Sair! Quando ficou velho, voltou para eu cuidar de você… — Que eu saiba, nunca fui embora de casa.

Você não faz senão dizer barbaridades. — Para eu cuidar de você. Mas já não quero continuar me sacrificando como uma escrava. Sei que tudo isto é muito duro para você; para mim também é. Mas a realidade se impõe: preciso urgentemente me livrar de você. — Acho que você leu livros demais sobre separações. Sempre a adverti. Eu posso não ler, mas você lê demais. Basta ouvi-la falar para saber. É ridículo. Acho que não vou mais me preocupar, estou farto de toda esta tolice. “Quero ficar sozinha, não sei quem sou”. Por favor, o que é isso? — Chamarei um táxi, vou para Barcelona. Vamos ver se assim você reage e começa a entender que estou falando muito sério. — Que horror! — murmurou Mayol, já preocupado com a confirmação de que tudo isso não era mesmo uma piada de mau gosto. A expressão da mulher, sua frágil firmeza, não o enganavam. Ela tinha se cansado dele e, afinal, pensou Mayol, não tinha por que estranhar tanto: o cansaço conjugal se abate repentinamente sobre pessoas de todas as idades. Esse pensamento angustiou Mayol ainda mais. Ela, como se tivesse percebido a angústia que começava a dominá-lo, procurou dar-lhe um golpe de misericórdia: -Vou dizer mais, Federico. Falar com você tem sido sempre uma experiência maçante. Desde o primeiro momento, pratica mente desde o dia em que o conheci, tive a sensação de que tentava me fazer entender por um velho senil. Agora que de fato você é esse tipo de velho, a sensação ficou insuportável. Sem dúvida era uma provocação completas uma tentativa de que tudo estourasse violentamente e a separação fosse mais fácil. Mayol se conteve, tentando infamemente a reconciliação: — É verdade. Estou velho.

Você, ao contrário, não. — Também estou velha. Precisamente por isso é que prefiro ficar sozinha e tentar descobrir quem sou sem você, sem sua mal dita velhice que passa o dia inteiro grudada em mim. — Que horror — tornou a murmurar Mayol, vendo que aqui lo não tinha jeito de se resolver. Uma angústia fria cruzara sua vida. Porém Mayol tinha um senso de humor muito desenvolvido. Até nas situações mais trágicas escapava-lhe uma risada. Nos instantes em que se abriam diante dele abismos de tristeza, tinha visões cômicas. Assim, não parecerá estranho dizer que, mesmo desesperado ao ver a determinação da mulher, Mayol se deixou dominar por uma breve risada. Olhando para a horta, brincou: — Tudo isto é por causa das alfaces e das berinjelas tenho certeza. Mayol disse isso e logo começou a alimentar a desesperada esperança de que a estranha atitude de sua mulher fosse simples mente passageira. Mas, uma semana depois, refugiado num bar da praça Letamendi, ouvindo o rumor obsessivo da chuva e do vento, já perdera as esperanças de que a atitude de sua mulher fosse passageira. Ao longo de toda aquela semana tão trágica para Mayol, ao longo dos dias seguintes à desconcertante e dolorosa cena, ela havia confirmado tudo, mostrando-se inflexível, muito encantada diante da possibilidade de mudar sua vida, e se dedicara a dinamitar a fundo a placidez da convivência conjugal. Mayol moveu mundos e fundos, falou com cada um dos filhos, procurou desesperadamente auxílio, pediu-lhes ajuda para que sua velha mãe entrasse novamente no mundo da lucidez. Primeiro visitou a filha Maria — casada com um homem velho, um importante banqueiro que ela enganava com um jovem operador da bolsa: uma história que deixava Mayol muito preocupado —, e a doce e adúltera Maria se compadeceu muito do pai, mas acabou enxugando as lágrimas e dizendo, muito a contragosto, que nada podia fazer, porque já tinha falado com a mãe e esta se mostrara inflexível. Depois Mayol tentou a sorte com o filho mais velho, brilhante sucessor na presidência da Seguros Mayol, o poderoso negócio familiar; mas também o filho modelo, esse filho de quem sentia tanto orgulho, não podia fazer muito por ele. Em seu desespero, mas também movido pela curiosidade de ver o que sucederia, Mayol chegou até a procurar a improvável ajuda de Julián, o único artista da família, o filho mais novo e impertinente que, ao recebê-lo em seu estúdio de pintor medianamente badalado, queixou-se com maus modos por ele ter chegado no momento menos oportuno, justo quando sua alma, em busca de inspiração (disse-o com ar meloso, levando as mãos ao peito) elevava-se a regiões inacessíveis. Mayol perdoou-lhe a frase, já que tinha escutado dele outras muito mais lamentáveis; afinal, não passava de uma afetação ridícula da qual sua mulher, Julia, era a principal culpada por ter introduzido no filho a obsessão doentia pela arte. Mayol perdoou-lhe a frase porque lembrava de outras muito piores como as que alguns dias antes, em plena celebração das bodas de ouro, sob os efeitos do álcool, lhe haviam sido lançadas: — Olhe, pai. Você e eu somos iguaizinhos. Senso de humor, inteligência imaginação. Como diz um amigo meu, só nos diferenciamos na cultura. Eu tenho e você não tem muita. Mayol não pudera cursar a universidade por causa da guerra. Depois a necessidade imediata de ganhar a vida, os negócios o afastaram da cultura.

Não sentia que tivesse de se desculpar por isso, e muito menos ao filho. — Está me dizendo que não tenho cultura mas que possuo inteligência natural. Não é isso? —disse Mayol. — Não. Bom, não é isso exatamente. Escute, não precisa se ofender… — Você me faz pensar em algo que um amigo sempre repete um amigo meu do clube. Ele sempre diz uma frase bem boa, a propósito daqueles que, como você, acreditam que são inteligentes. — Vamos ver essa frase. — “Vamos ver essa frase” Quem não te conhece diria que você vai me examinar, senhor catedrático. — Não é minha intenção, pai. — Pois, olhe, a frase é esta: “Nos exames, os burros perguntam coisas que os inteligentes não sabem responder”. — Não entendo. — Não entendo. — Mayol observou por alguns segundos a cara de desconcerto do filho. —Vamos, pai. Você ficou chateado? O que eu disse não era para ferir seu orgulho, acredite. Só constatava de um fato diferencial, com palavras simples e objetivas. — Subjetivas, gênio, subjetivas — limitou-se a comentar com o filho. O gênio, dito nesse tom de zombaria, pareceu ofender o filho. — Pensando bem, pai, para você, na verdade, o único fato diferencial é a Catalunha — disse em clara alusão à sua militância nacionalista. — E o senhor gênio vê algum mal nisso? — Sabe o que eu acho? — o filho perdia rapidamente as estribeiras. — Que, por mais que lhe doa, eu tenho certa genialidade. Você é simplesmente um bobo. É compreensível então que, tendo sido agredido dias antes, na celebração das bodas de ouro, com frases desse calibre, Mayol não concedesse excessiva importância à acusação melíflua de que acabava de interromper a sublime inspiração de um artista. Mas doeram, sim, e muito, as palavras que seguiram a acusação: — Olhe, pai.

A meu ver, mamãe fez bem em se revelar. Já é velha demais para isso, mas antes tarde do que nunca. Você foi sempre um tirano com ela. Tenho certeza de que ela voltará atrás, mas tem que deixá-la respirar seu próprio ar por um tempo. Essa é minha opinião. Para seu consolo, lhe dou de presente uma frase de Tolstói: “O casamento é uma doença mortal”. — Esse Tolstói era um imbecil — disse Mayol, e abandonou o ateliê do pintor medianamente badalado, batendo a porta com força. Dois dias depois daquela batida forte, ao terminar sua trágica semana, refugiado do temporal de maio num bar da praça Letamendi, Mayol sentia-se profundamente perdido e abatido, mas decidira enfrentar a realidade e procurar uma fresta por onde escapar da difícil situação em que estava preso. Nunca imaginara que numa idade tão adiantada precisaria começar de novo. Em muitas ocasiões havia manifestado à família seu desejo de arruinar-se por completo para assim voltar a se divertir, começar de novo e mostrar a todo mundo — sobretudo aos parentes invejosos — que não fora um acidente sua capacidade de levantar um notável império econômico a partir da pobreza absoluta. Mas esse desejo de começar de novo do zero havia se manifestado quando ele tinha cinquenta sessenta anos. Passados os sessenta, desvanecera qualquer desejo de recomeçar. Além do mais, o pior da história era que não se abria diante dele um futuro atraente, tratando-se, isto sim, de nada menos que reestruturar sua vida, e para tanto não se considerava especialmente apto. Nunca chegara a imaginar que numa idade tão avançada se veria obrigado a recomeçar a viver. Apesar de se encontrar bem de saúde, afora a artrite matinal, a ciática e alguns pequenos problemas de próstata não sentia forças suficientes para uma empresa tão árdua como a de ter que reaprender a viver. E isso apesar de sentir-se bastante jovem. Sim, estava bem. Mas não o bastante para começar do zero nesse capítulo tão delicado da natureza humana: o mundo de nossos sentimentos. Refugiado num bar da praça Letamendi, aguardando que passasse o inesperado temporal de chuva e vento, Mayol não parava de pensar naquilo que sua mulher tinha dito a respeito de não conhecer a si mesma e de querer procurar quem diabos era na verdade. Tudo bem, pensou Mayol deve-se reconhecer que ela tem este direito, e que no fundo é justo propor uma coisa dessas. Só há um pequeno inconveniente: me deixar sozinho. Embora… Mas é triste pensar que para saber quem é, ela tenha de me deixar na rua. A mim, um santo. Ficou pensando em si próprio. Quem sou eu, perguntou-se de repente Mayol.

E teve a impressão de que lá fora o dilúvio havia ganhado ainda maior intensidade. Eu sou, disse Mayol, falando lentamente para si mesmo, um homem de idade avançada que parece um pouco mais jovem, como se tivesse um contrato especial com o passar do tempo. Meus olhos são de um azul intenso, nisso todo mundo está de acordo. Sou alguém que de vez em quando acusa um tique, como o focinho de um cachorro quando investiga um cheiro. Sou um homem alto e me atreveria a dizer que elegante. Sou alguém que sempre esteve convencido de que se parece muito com um ator falecido, meu admirado George Sanders. Sou alguém em quem nunca ninguém quis reconhecer essa semelhança. Sou alguém que está sentado num bar da praça Letamendi de Barcelona e que não pode sentir-se mais perdido. Sou alguém a quem hoje tudo o que vê incomoda e que tenta ver o menos possível. Sou alguém que está de mau humor. Alguém a quem as circunstâncias empurram para se transformar, o mais rápido possível, em outro. E também sou alguém que, quando tiver se transformado em outro, terá de agir como se isso não fosse nada demais, como se pertencesse à ordem natural do mundo. Sou alguém a quem acontecem às vezes coisas estranhas. Alguém que para ser outro deve apagar de seu pensamento sua mulher, apagá-la da memória, pensar que ela já não existe, apagá-la, apagá-la — aqui ficou visivelmente inquieto —, esquecê-la. Sou alguém sem guarda chuva. Alguém que tem três filhos, dos quais só um o enche de orgulho, o primogênito. Alguém que pensa que sua filha não deveria ter se casado com um homem tão velho. Alguém que detesta seu filho mais moço, que é um pobre presunçoso. Sou um bom jogador de pôquer. Sou um patriota catalão. Sou um católico que não vai à missa. Sou um homem que, no fim da vida, sente sua boca cheia de lama e não sabe se deve engolir ou cuspir. Sou um homem alto a quem as crenças impedem que tenha um final suicida como o de seu admirado George Sanders, que deixou em Castelidefeis aquela nota tão depreciativa em relação ao mundo. Sou um homem alto que às vezes pensa coisas esquisitas como por exemplo que sua nuca bate no teto. Sou um homem pouco lido, mas que sabe pensar por si mesmo.

Sou alguém que há cinquenta anos sonha viver num hotel, onde nunca pagou a conta porque conhece uma escura rampa secreta junto ao elevador de cargas que não funciona. Alguém que agora procura um atalho estreito para escapar da situação em que se encontra preso e para não pagar nunca os gastos do triste hotel de sua vida. Alguém que, cada dia que passa tem mais medo de observar como seu mundo apodrece lentamente. Sou um monte de trapos velhos, só que me chamo Federico. Mas, agora que penso é estranho se chamar Federico. De repente ficou literalmente angustiado pois viu que sabia menos de si mesmo que há uns minutos, quando tinha se perguntado quem era. Invadido por um suor frio, percebeu que, junto comele próprio seu café tinha esfriado. Pediu mais um, e enquanto o fazia refletiu sobre a possibilidade de o garçom chegar a perceber que aquele cliente de idade avançada, aquele homem que reclamava sua atenção com aparente segurança no gesto em realidade não era ninguém ou, melhor, era o Senhor Ninguém também chamado Federico. Refletiu sobre isso e, quando viu o garçom ainda sem perceber que o chamava, recorreu a um suave grito acompanhado de um gesto deliberadamente antiquado, chamando-o como setenta anos atrás tinha visto seu pai fazer num desaparecido e saudoso café wagneriano, vizinho do Teatro Coliseum: O Ouro do Reno. Ali seu pai havia tido uma roda e ali aprendera a chamar os garçons com os modos próprios de um “senhor de Barcelona”, uma estirpe emextinção. O garçom se aproximou entre sonolento e confuso, e embora Mayol soubesse que era anda luz, nessa ocasião falou-lhe em catalão, com uma educação afeta da, com gestos próprios da burguesia barcelonense do começo do século. O garçom, que parecia cada vez mais sonolento, escutou o pedido observando com certo estupor a extrema gestualidade antiquada de Mayol, e sobretudo o lenço branco que emergia do bolso superior de seu paletó. Pouco depois, justo quando lhe traziam o novo café, era Mayol quem caía num estado de sonolência. Como se o temporal de chuva e de vento o tivesse hipnotizado, deixou-se dominar por uma imagem que não pertencia ao mundo de suas lembranças, era tão— somente um sonho recente e deformado: sua mulher calçava-lhe os chinelos em casa e de repente mudava violentamente de expressão e lhe dizia gritando que o medo de olhar para sua cara e de escutar o timbre de sua voz potente os separava. Quando Mayol conseguiu afastar esse sonho deformado, o café tornara a esfriar, mas isso foi algo de que nem se deu conta, porque imediatamente voltou a refletir angustiado sobre o acontecido nos últimos dias. Uma injustiça total. Uma pessoa como ele, que dedicara a vida ao trabalho pela família, não merecia aquilo que estava lhe acontecendo. O máximo a se dizer dele é que havia tido uma amante ruiva. De fato, pensou Mayol, não entendo como Julia soube disso. Mas essa amante ruiva morrera fazia muitos anos, quase tantos quanto os que se passaramdesde que George Sanders se suicidou. Essa amante ruiva era para Mayol um passatempo em todos os sentidos, lembrava dela como uma autêntica chata, uma ninfomaníaca que vomitava palavras francesas cada vez que atingia o orgasmo. Ficou pensando longo tempo na ruiva absurda e defunta até que de repente como se existisse íntima relação entre uma coisa e outra, a próstata passou a ser o centro de seus pensamentos. A repentina necessidade de ir ao toalete se apoderou dele. Urinou pensando no pai, sempre temera que seus problemas de próstata fossem maiores e que acabasse como o pai, que morreu de câncer. Urinou com o braço esquerdo apoiado nos azulejos horrivelmente azuis do lavabo, e pouco depois repetindo um gesto involuntário porém muito constante em sua vida, olhou-se no espelho.

Continuava a se parecer com George Sanders, por mais que nunca ninguémtivesse querido admiti-lo. Sempre se parecera com aquele ator de Hollywood tinha certeza. Quando voltou para sua mesa, continuou sem reparar que o segundo café também havia esfriado. De repente seus pensamentos foram invadidos por essa sensação que, dizem, envolve a mente dos moribundos, e viu passar em décimos de segundo o filme de sua vida, um resumo aloucado, extremamente vertiginoso: seu nascimento na rua Bruch de Barcelona, seus dois avós —um contrabandista e o outro fazendeiro —, sua doce mãe morta em idade precoce os anos da guerra que interromperam para sempre seus estudos, o drama da ruína do negócio têxtil de seu pai no pós guerra o trabalho como modesto agente de seguros até abrir um caminho triunfal na vida com a fundação da Seguros Mayol, o fim do franquismo seu ingresso no partido nacionalista catalão, seu cargo político, sua renúncia a esse cargo, sua aposentadoria de tudo negócios e cadeira no Parlamento catalão —, sua mulher deixando de calçar seus chinelos no sonho, seu estúpido filho menor desmaiando quando via um peixe morto e se justificando depois, dizendo que isso acontecia porque, numa vida anterior, ele fora um habitante de Atlântida, a morte rindo de uma maneira tão infinitamente séria como Julia. Viu passar o filme de sua vida numa velocidade extraordinária, sua vida dedicada à família e à sua pátria catalã, e voltou a pensar que era uma completa injustiça o que tinha acontecido a uma pessoa como ele, um senhor de coração íntegro e alma livre. E agora gostaria de saber para onde posso ir e o que me resta fazer na vida, pensou Mayol. Lá fora, a força quase ciclônica da chuva e do vento tinha começado a arrefecer. Pensando em lugares para onde poderia viajar à espera de que as coisas melhorassem, Mayol imaginou terras muito remotas, temperaturas elevadas, países muito exóticos. Mas também pensou em lugares menos distantes, em cidades próximas e já visitadas por ele. No dia anterior, na roda do clube, seu amigo Terrades lhe dissera algo que produziu nele um enorme efeito, lhe dissera que, enquanto não inventasse de visitar cidades onde nunca tivesse estado antes, continuaria vivo. Terrades costumava dizer coisas desse tipo simplesmente para deslumbrar os comensais com sua reconhecida facilidade para frases estranhas e engenhosas, mas por vezes não havia nada de gratuito em seus presságios, era o rei das intuições, das intuições que mais tarde se cumpriam. Mayol esteve um bom tempo passando em revista as cidades que visitara ao longo da vida. Anotou algumas num guardanapo de papel: Paris, Lisboa, Porto, Roma, Sevilha, Madri — riscou-a, odiava essa cidade —, Córdoba, Granada, Málaga. Não achou muitas mais porque Mayol era umbarcelonês profissional sempre havia sido uma proeza fazê-lo concordar em sair de sua cidade. Assim, voltou ao novo grande problema perguntou-se por que temos, com tanta facilidade, o detestável hábito de ser infelizes. Sua imaginação o fez ver a si próprio como uma estátua que acordava no quarto de um mundo em que tudo havia morrido. Viu entrar no bar uma anciã de luto fechado, uma velha dama dignas tão firme e severa que Mayol não pôde reprimir um sentimento cômico diante daquela aparição. Imaginou a velha dando-se conta de seu riso secreto e, caminhando com determinação surpreendente para sua idade, indo diretamente até ele. A anciã enlutada, em cujo rosto cheio de rugas o suor diluíra uma espessa capa de pó, colocava então seus braços na cintura e dizia: — Quer dizer que temos festa. Mayol deixou para trás, num estalo, toda a sonolência, enquanto pensava que talvez aquela mulher tão firme e enrugada fosse simplesmente a Morte. Lançou-lhe um novo olhar e observou-a consultar as horas num pequeno relógio que levava à antiga num colar. Aterrorizou-se. Veio-lhe à memória uma frase do amigo Terrades, uma frase que sempre o intrigara: “A morte se esconde nos relógios”. Mayol pensou que não convinha instigar a má sorte. Foi até o balcão e pagou os dois cafés frios.

Saiu para a rua. Demorou longos minutos até achar um novo refúgio. Ao entrar nele — um pequeno bar da rua Balmes —, envergonhou-se de imediato por não trazer um guarda-chuva. Todos os fregueses tinham ficado olhando o súbito espetáculo na porta de entrada: um senhor alto, de idade respeitável quase pingando água das orelhas, calado até os ossos. Orient-Express Convém, convém, convém uma viagem. A frase martelava na mente de Mayol, ainda meio ensopado, após instalar-se à mesa do bar da rua Balmes, escutando sem parar que lhe convinha, lhe convinha, lhe convinha uma viagem. Lá fora, a tormenta parecia estar diminuindo de intensidade, mas na verdade só parecia. De vez em quando aumentava com força, e pouco depois, como se quisesse se divertir, perdia o ímpeto. Convém, convém, convém uma viagem. Mayol escutava isso e, à beira da loucura, suspeitava que a tormenta, aliada a essa ordem para viajar, tentava convertê-lo num boneco à mercê de toda a sorte de intempéries. Convém, convém, convém uma viagem. Era a frase que mais vezes Mayol tivera de escutar no dia anterior, nessa roda do clube que fora diferente das habituais, pois na ocasião tinha-se falado apenas de temas que pareciam indefectíveis — futebol, doenças, política catalã —, além de se comentar o drama vivido por Mayol. A culpa de que só se falasse disso era dele próprio, pois num momento de debilidade, acossado por algumas perguntas a propósito de suas olheiras e de sua cara de desespero, acabara contando o que lhe acontecia, as palavras da mulher e seu sentimento de profundo desconcerto diante do que, a partir de então, a vida poderia lhe apresentar. Os convivas esforçaram-se por desanuviar o amigo mas na verdade não fizeram mais do que acrescentar um sentimento ainda mais trágico à consciência que Mayol tinha de ter desembarcado na praia terminal de sua vida.

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