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A vida antes de Legend: histórias de um criminoso e de uma menina prodígio – Marie Lu

Tenho doze anos. Moro na República da América. Meu nome é Day. Costumavam me chamar de Daniel Altan Wing, irmão mais novo de John, irmão mais velho de Éden, filho de pai e mãe moradores das favelas de Los Angeles. Quando você foi pobre a vida inteira, nunca acredita de verdade que as coisas possam mudar. E às vezes até fica feliz, porque pelo menos você tem família, saúde, braços, pernas e um teto sobre a cabeça. Agora estou sem a maioria dessas coisas. Minha mãe e meus irmãos acham que estou morto. Tenho um machucado no joelho que pode não curar nunca. Moro nas ruas do setor Lake, uma favela às margens do lago de Los Angeles, e todos os dias consigo apenas o suficiente para sobreviver. Mas as coisas sempre podem piorar, não é? Pelo menos estou vivo; pelo menos minha mãe e meus irmãos estão vivos. Ainda há esperança. Esta manhã estou empoleirado na varanda de um prédio em ruínas; todas as janelas de seus três andares foram cobertas por tapumes. Minha perna ruim balança sobre a beirada enquanto me apoio de modo casual na perna boa. Meus olhos estão fixos em um dos píeres do lago, e a água cintila através da neblina poluída da manhã. A minha volta, telões embutidos nos prédios transmitem as últimas notícias da República acima do curso contínuo e interminável dos operários do setor Lake. Muitas ruas adiante, vejo um grupo de meninos e meninas a caminho da escola de ensino médio local. Parecem ter mais ou menos a minha idade – se eu não tivesse reprovado na Prova, possivelmente estaria andando com eles. Ergo a vista e estreito os olhos para o sol. O juramento vai começar a qualquer instante. Odeio esse maldito juramento. Há uma pausa no telejornal nos telões, e então uma voz familiar soa pela cidade, saindo dos autofalantes de todos os prédios. Nas ruas, as pessoas param tudo o que estão fazendo, viram-se em direção à capital e erguem o braço numa saudação. Elas entoam junto com a voz dos autofalantes. “Juro fidelidade à bandeira da nossa grande República da América, a nosso Primeiro Eleitor, a nossos gloriosos estados, à unidade contra as Colônias, à nossa vitória iminente!” Quando eu era bem pequeno, fazia esse juramento como todo mundo e, por um tempo, até achei que era muito legal declarar meu eterno amor por nosso país ou qualquer coisa assim.


Agora fico em silêncio o tempo todo, mesmo que cada pessoa na rua recite as palavras obedientemente. Por que me incomodar em fingir que concordo com algo em que não acredito? Ninguém pode me ver aqui em cima mesmo. O juramento termina, e a agitação das ruas recomeça ao mesmo tempo em que os telões voltam ao noticiário. Leio as manchetes enquanto elas vão rolando: A MENINA-PRODÍGIO, JUNE IPARIS, DE DOZE ANOS, É A MAIS NOVA ESTUDANTE A ENTRAR PARA A UNIVERSIDADE DRAKE E SE APRESENTARÁ OFICIALMENTE NA PRÓXIMA SEMANA. – Argh! – bufo com desgosto. Sem dúvida essa garota é uma riquinha que tem uma boa vida no interior, em um dos setores de classe alta de Los Angeles. Quem se importa com a nota que ela tirou na Prova? O exame é feito para favorecer as crianças ricas mesmo, e ela deve ser apenas alguém de inteligência mediana que comprou a nota. Dou as costas enquanto a manchete continua, listando todas as conquistas da garota. Aquilo me dá dor de cabeça. Minha atenção volta a se concentrar no píer. Trabalhadores se movimentam no deque de um dos barcos. Estão descarregando um monte de caixotes que devem conter comida enlatada, pilhas de carne moída, batatas, espaguete, molho e salsichinhas de porco. Meu estômago ronca. Primeiro as prioridades: roubar o café da manhã. Não como nada há quase dois dias, e ver aquelas caixas me deixa tonto. Eu me arrasto pela lateral do prédio, tomando o cuidado de ficar escondido nas sombras do início da manhã. Alguns policiais de rua patrulham o píer, mas a maioria deles parece entediada, já exausta por causa do calor e da umidade. Em geral eles não prestam atenção aos órfãos sem-teto que se espalham em praticamente todas as esquinas do setor Lake e, num dia bom, são lentos demais para pegar todos os que tentam roubar comida. Chego à extremidade do prédio. Um cano de escoamento corre pela lateral, aparafusado à parede de modo instável. Ainda assim, parece forte o bastante para aguentar meu peso. Eu o testo antes, hesitante, pondo um pé sobre ele e dando um bom empurrão. Como o cano não se move, agarro-me a ele e deslizo até a viela estreita onde fica o prédio. Minha perna ruim pisa no solo de mau jeito – perco o equilíbrio e caio de costas no chão. Qualquer dia essa droga de joelho vai melhorar.

Espero. E aí finalmente vou poder subir e descer por esses prédios como eu quero. O dia está quente. Os cheiros de fumaça, comida de rua, graxa e maresia pairam no ar. Consigo sentir o calor do chão através dos meus sapatos gastos. Quase ninguém repara em mim conforme manco até o píer – sou apenas mais um garoto das favelas –, mas então uma menina a caminho da escola cruza seu olhar com o meu. Ela cora quando retribuo o olhar e desvia depressa os olhos para outra direção. Paro à beira da água para ajeitar o gorro, certificando-me de que meu cabelo está todo escondido dentro dele. A luz dourada e alaranjada refletida pela água me faz estreitar os olhos. No píer, operários empilham os caixotes de comida ao lado de um pequeno escritório, onde um inspetor digita observações sobre a carga. De vez em quando, ele olha para outro lado e fala em um comunicador. Fico parado por um tempo, observando o padrão de movimentos dos operários e do inspetor. Então olho para o fim da rua, ao longo da costa. Nenhum policial à vista. Perfeito. Quando tenho certeza de que ninguém está olhando, pulo para a margem e vou mancando até as sombras sob o píer. Vigas se entrecruzam na base do píer, dando-lhe apoio para avançar em direção à água. Pego algumas pedras no lamaçal perto da água e as enfio no bolso. Então me ergo para o labirinto de vigas e as escalo em direção aos caixotes. Água salgada respinga em mim. O barulho das ondas batendo contra o píer se mistura com as vozes lá em cima. – Você também ouviu falar daquela garota, não ouviu? – Que garota? – Você sabe. A garota, aquela que entrou para a Drake com o quê, doze anos… – Ah, sim, aquela. Os pais dela devem ter uma carteira gorda. Ei, para onde você passou mesmo? Risadas.

– Cale a boca. Pelo menos tenho alguma instrução. O barulho das ondas encobre a conversa de novo. Diversos baques abafados vindo das tábuas acima da minha cabeça. Devem estar empilhando caixotes aqui. Cheguei ao ponto bem embaixo do pequeno escritório e da carga. Paro a fim de ajeitar a posição dos meus pés. Depois subo várias vigas, seguro-me à beirada do passadiço do píer, ergo-me e espio ao redor. O escritório está bem à minha frente. O inspetor parou de pé na extremidade dele, de costas para mim. Eu me arrasto em silêncio para o passadiço e me encolho à sombra da parede do escritório. As pedras em meu bolso batem umas nas outras. Pego uma delas e mantenho os olhos nos operários. Então jogo a pedra na direção do barco com toda a força. Ela o atinge na lateral com um barulho alto o bastante para chamar a atenção dos trabalhadores. Muitos deles se viram na direção do som – outros vão até lá. Aproveito a oportunidade e saio correndo do meu esconderijo, indo para a pilha de caixotes. Consigo deslizar para trás deles antes que alguém me veja. Meu coração bate acelerado. Sempre que roubo suprimentos da República, eu me imagino sendo pego e arrastado para o posto da polícia local. Imagino minhas pernas sendo quebradas, como aconteceu com papai. Ou talvez eu nem fosse levado para o posto da polícia. Talvez apenas me matassem com um tiro ali mesmo. Não consigo decidir o que seria pior. O tempo está acabando.

Pego meu canivete, escondido cuidadosamente perto do meu sapato, e o cravo na lateral de um dos caixotes até atravessá-lo. Golpeio em silêncio, tomando o cuidado de observar em que direção os guardas estão olhando. A essa altura, a maioria deles já se dispersou, por sorte. Restam apenas dois, e mesmo eles estão a uma boa distância dos caixotes, perdidos em uma conversa sem importância. Definitivamente, a carga é comida enlatada. Minha boca se enche d’água quando volto a fantasiar com o que posso encontrar ali dentro. Salsichas e sardinhas. Todos os tipos de carne. Milho, ovos em conserva, feijões. Talvez até fatias de pêssego e pera. Uma vez consegui roubar um pêssego fresco, e foi a melhor coisa que comi na vida. Meu estômago ronca alto. – Ei. Dou um pulo. Ergo os olhos e vejo uma adolescente recostada nos caixotes, mastigando um palito de dentes e me observando com um sorriso divertido no rosto. Todas as minhas fantasias de comida desaparecem. Na mesma hora, puxo meu canivete do caixote e saio correndo. Os homens no píer me veem, gritam alguma coisa e partem atrás de mim. Corro pelo píer o mais rápido que posso. Meu joelho ruim queima com o movimento súbito, mas eu o ignoro. Um joelho ruim não vai importar se eu estiver morto. Eu me preparo para a agonia ardente de uma bala cravando minhas costas. – Charlie – grita um deles. – Pegue aquele pilantrinha! A garota dá uma resposta que não consigo ouvir. Passo cambaleando por dois estivadores estupefatos, chego ao fim do píer e ao início das ruas do Lake e corro para a viela mais próxima.

Atrás de mim, ainda posso ouvir o barulho dos meus perseguidores. Idiota, que idiota. Eu deveria ter sido mais silencioso ou esperado até a noite. Mas estou com tanta fome. Minha esperança agora é despistá-los no labirinto de vielas do Lake. Meu gorro sai da cabeça, mas estou assustado demais para me deter e ir buscá-lo. Meu cabelo louro-claro cai abaixo dos ombros, bagunçado. Alguém me segura por trás. Eu me contorço e consigo me soltar, então dou um salto na direção da parede e agarro o peitoril do segundo andar. Mas meu joelho ruim – já fraco por causa da fuga apressada – finalmente cede, e bato no chão, às sombras da viela. Todo o ar dos meus pulmões sai num sopro, mas ainda me viro e mostro os dentes, pronto para cravá-los em quem está me segurando. – Ei, fique frio! É a garota que me viu primeiro. Seu rosto não é ameaçador, mas ela me prende com força no chão. – Sou só eu. Falei para a tripulação do meu pai que eu ia pegar você. Estão todos lá no píer. Continuo lutando. – Olha, poderíamos fazer isso o dia inteiro. A garota inclina a cabeça e franze a testa. Ainda espero que ela pressione uma faca no meu pescoço. Mas não. Após alguns longos segundos, eu me acalmo. E ela assente para mim. – O que você estava tentando roubar da carga do meu pai? – Só um pouco de comida – respondo. Ainda sinto dificuldade de respirar, e a dor no meu joelho não ajuda em nada.

– Há dois dias que não como. – Você é do setor Lake, amigo? Sorrio para ela. Espero que ela não perceba o quanto estou nervoso. – Assim como você – digo, percebendo o termo familiar que ela usou. – Você deve ser até do mesmo bairro que eu. Ela me observa por um momento. Agora que enfim dou uma boa olhada nela, vejo que é bonita, de pele morena e cabelo crespo e preto, puxado para trás em duas tranças frouxas. Tem sardas leves no nariz, e seus olhos são castanho-dourados. As sobrancelhas parecem permanentemente fixas numa expressão surpresa. Ela deve estar em algum ponto entre o meio e o fim da adolescência, embora pareça pequena. Um sorriso se espalha em seu rosto quando percebe como a estou observando. Com cuidado, permite que eu me sente, mas não solta meu braço. – Você pretende me deixar ir logo? – pergunto. – Ou vai me arrastar de volta para o seu pai e os amigos dele? – Isso depende. – Ela estala a língua na parte de dentro da bochecha, num gesto inconsciente. – Você estava lá para roubar comida da nossa carga. Se tivesse conseguido, meu pai teria que justificar para as autoridades da República por que não bateu a cota. Você acha que gostamos de pagar multas? Ou de ser presos? – Bem, sinto muito. Você acha que gosto de passar fome?

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