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A Vida Como Ela É… – Saraiva de Bolso – Nelson Rodrigues

Quando ela disse que tinha um filho, um garoto, já de 12 anos, Romualdo caiu das nuvens: — Filho? — Você não sabia? Foi enfático: — Nem desconfiava. E ela: — Pois tenho. Fez 12 anos, está no colégio. — Engraçado! — Por quê? Ele foi, então, gentilíssimo. Disse que ela não parecia mãe de ninguém e muito menos de um garoto, quase rapaz. E, na verdade, a idade do menino o espantara. Lucília, com seu tipo frágil e pequeno, o ar de menina, um quê de infantil nos olhos, no sorriso, nas maneiras, parecia uma garota solteirinha. E não foi somente de espanto sua reação. Experimentou também um certo alarma. Aquele filho, aquele marmanjo, inesperado e taludo, assustava. Foi, porém, bastante hábil e educado para dissimular o desconforto e bastante cínico para a seguinte promessa: — Vou ser para ele um segundo pai! — Deus me livre! — Como? Lucília suspirou: — Eu te explico. Vamos entrar ali, um momentinho. O filho Entraram numa sorveteria. Depois de sentados e servidos, ela foi tomando sorvete e explicando. — O Odésio não pode saber, nem desconfiar. Esta era uma condição que ela impunha. Ou ele aceitava ou, então, nada feito. Romualdo ainda ponderou: — Acho que você exagera! — Ora, Romualdo, tem dó! Você se esquece que é casado, que vive com outra, que tem filhos, esquece? — Realmente. — Pois é, meu filho, pois é! Eram seis horas quando Romualdo a largou, num ônibus, apinhadíssimo. Ela fez a viagem em pé. A promiscuidade, ali, era uma coisa abjeta. Espremida, imprensada, triturada em meio dos passageiros, teve uma sensação de ultraje, de profanação, de aviltamento. Um cavalheiro que ia saltar no poste seguinte, foi varando a massa humana; ao passar por ela quase a derruba. A sensação do ultraje recrudesceu em Lucília. Resmungou: — Animal! Mas ia bastante atribulada com seus problemas.


E não ligou mais para os contatos indesejados e brutais que, nos ônibus cheios, são inevitáveis. O drama de Lucília era, em suma, o seguinte: o medo, o pavor, de que o filho enfim soubesse… A opinião, o julgamento do garoto era a coisa que mais a impressionava no mundo. Temia-o mais do que o Juízo Final. Ao mesmo tempo, tinha loucura por Romualdo e a vida sem ele seria de uma monotonia medonha. Pendurada no ônibus, gemeu interiormente: — Oh! Meu Deus do céu! História de amor Então, começou a mais doce, a mais sofrida história de amor. Voltava, dos seus encontros com Romualdo, em sobressalto. O filho estava sempre na rua, jogando bola ou em brincadeiras turbulentas com amigos, de sua idade. Uma vez, deu um chute, e com tanta infelicidade, que a unha do dedo grande do pé saltou longe. O negócio inflamou; e Lucília, quando chegou, de uma entrevista amorosa, tomou-se de vergonha e de remorso. Pensou, lavando o pé machucado: enquanto ela se divertia com um homem, além do mais casado, o filho, sozinho, estava precisando de seus cuidados. Vamos que fosse uma coisa pior que um simples esfolamento de dedo. Que remorsos não sentiria? O menino, corajoso, quase não se queixava. E era ela quem tinha de perguntar: — Está doendo? — Mais ou menos. E Lucília: — Quando estiver doendo, diga! No dia seguinte, Lucília apareceu triste. Suspirava: — Que vida! Romualdo acabou se enfezando: — Que vida, por quê? Ela, então, pôs as cartas na mesa: — Reconheço que a culpada sou eu, porque você, sendo casado, eu não devia… Não. Romualdo, não está direito. Fez uma pausa, antes de completar: — Se, ao menos, você vivesse só pra mim! Foi brutal: — Ora, Lucília, ora! No mínimo, você está querendo que eu deixe minha mulher! Sou capaz de apostar! Despediram-se sem carinho. E ele, ressentido, mal se deixou beijar. Disse, apenas: — Vai com Deus, vai! Nessa noite, ele fez confidências a um amigo. Quando este soube que havia um filho no meio, um marmanjão de 12 anos, foi categórico: — Abacaxi autêntico! E Romualdo insistiu: — Você não acha um desaforo que ela queira, imagine, que eu deixe minha mulher? — Evidente! No primeiro encontro, Romualdo rompeu fogo: — Das duas, uma: ou você muda de cara, faz uma cara alegre ou então, minha filha, vamos acabar com esse negócio. Já não estou gostando, nada, nada! Já o termo “negócio” pareceu-lhe de uma abominável grosseria, de um prosaísmo ultrajante. Além disso, a agressividade, como se ela fosse uma qualquer! Exaltou-se, também: — Não grite! Está pensando que eu sou o quê? — Grito, pronto, grito! Não topo chiquê! Comigo, não! Ela não disse uma, nem duas. Apanhou a bolsa, que estava em cima da mesa: olhou-se instintivamente, no pequeno espelho; e, num passo lento, encaminhou-se para a porta. Parou um segundo, uma fração de segundo. Esperava talvez que Romualdo a chamasse.

Teria, então, voltado, e tudo terminaria numa reconciliação feroz. Mas ele, esbravejou: — Mulheres é que não faltam, inclusive a minha! Podia haver pontapé mais claro, mais insofismável, mais absoluto? Saiu para nunca mais. O abandono Tinha do próprio casamento e do marido morto uma lembrança penosa. O marido era uma nobre alma, que vivia para a esposa e para o filho. Mas tudo que ele fizesse, de bom, de heroico, de sublime, esbarrava diante de sua falta de amor. E isso, essa falta de amor, era pior do que o ódio. Crispava-se quando o pobrediabo vinha fazer-lhe festa. Houve uma vez, em que não pôde, não aguentou, explodindo: — Não me beija! Não quero seu beijo! Que coisa aborrecida! Ele já estava doente, na ocasião. Foi talvez este episódio que antecipou o fim. Seis meses depois ela, sem nenhum luto interior, tinha a sua primeira experiência amorosa, na pessoa do casado Romualdo. Viu, então, que o marido a interessava menos que o mata-mosquitos anônimo que vinha pôr creolina no ralo. Foi uma paixão feroz que acabou, como vimos, da maneira mais estúpida do mundo. Durante dias, Lucília, numa tristeza obtusa, esperou um telefonema, um bilhete, um recado. Nada. Absolutamente nada. Depois soube, por terceiros, que ele andava com uma datilógrafa extranumerária numa autarquia; tinham sido vistos no Passeio Público, onde tiravam retratos, no lambe-lambe. Lucília, fora de si, encerravase no quarto, ficava horas, de bruços, na cama, chorando. Já o julgamento do filho não a interessava mais. O garoto, diante do seu pranto, perguntava: — Que é que a senhora tem, mamãe? — Não aborrece! Não amola! Sai daqui, anda! Na presença do filho, ligava para o escritório do bem-amado. De lá, queriam saber quem era. Lucília se identificava. Então, a resposta infalível era: “Não está.” Uma vez, porém, coincidiu que o próprio atendesse. Mas quando percebeu que era ela, explodiu: — Me deixa em paz, sim? Quero sossego! Vê se não me chateia. O filho não fazia comentário.

Era uma testemunha muda de tudo. Guardara, porém, o nome e o repetia: “Romualdo, Romualdo.” Conhecia-o, de vista. Pensava nele, dia e noite, com essa obstinação de amor ou de ódio. E já não saía mais de casa, não jogava mais bola; passava as horas ao lado de Lucília, de olhos muito abertos, como se esse desespero o fascinasse, apesar de tudo. Ouviu quando a mãe, numa crise maior, amadiçoou o homem que a abandonara: — Tomara que ele morra, meu Deus! Fique debaixo de um automóvel! Tomara, meu Deus! Por fim, ela já não queria mais nada; ou, por outra, queria morrer. Não comia e seu desmazelo, de atitudes, de roupas, de higiene, era aterrador. Passava dias com uma mesma combinação. Outras vezes, do fundo do seu desespero, fazia a reflexão: “Há três dias que não escovo os dentes.” O filho se abraçava a ela, chorava: — Não fique assim, mamãe! Não chore mais! Certa vez, na rua, o garoto ouviu dizer que não se nega nada a quem está morrendo, a quem vai morrer. O “último” pedido de alguém, justamente por ser o “último” é alguma coisa de terrível e sagrado, que cumpre obedecer, sob pena de maldições tremendas. Então, afirmou: — Ele volta, mamãe! Volta, sim! Juro por Deus! A volta Romualdo estava, no poste, esperando o ônibus. O garoto desconhecido aproximou-se e disse que era filho de d. Lucília e falou mais: — Volta para minha mãe. É meu “último” pedido. Romualdo não entendeu. Ou só entendeu quando o menino se atirou debaixo de um ônibus que passava a toda velocidade. A morte foi instantânea. Alta madrugada apareceu mais alguém para fazer quarto ao menino: era o assombrado, o enlouquecido Romualdo. Voltava, sim. E continuou voltando, escravo do “último pedido” de uma criança. Quando, finalmente, ela se cansou dele e quis deixá-lo, Romualdo lembrou, apenas, o desejo do menino. Então Lucília compreendeu que estavam unidos, e para sempre, dentro de um inferno. 2 – O escravo etíope Saiu do colégio com 15 anos e trouxe para o mundo a sua inocência maravilhada. Ninguém mais sensível e exclamativa.

De uma fragilidade física impressionante, qualquer esforço dava-lhe palpitações, falta de ar; uma simples aragem a resfriava. O médico da família, que a examinou várias vezes, repetia: — Tem uma saúde muito delicada. É preciso cuidado, muito cuidado. Havia na família, o medo ou o presságio de que viesse a sofrer do peito como uma tia que morrera tísica. Filha de pais ricos, era tratada na palma da mão, com os mimos de uma princesa. E justamente por ser tão fina e frágil, de uma natureza tão delicada e suscetível, ninguém a contrariava. Aos 16 anos, teve o seu primeiro namorado. Era um primo, ótimo rapaz, educadíssimo, simpático e mesmo bonito, aristocrata nos modos, ideias e sentimentos. Ela se chamava Margô e ele, Paulo. Pareciam feitos um para o outro. Para as duas famílias foi, como se disse, “um achado”. Não houve duas opiniões. Todos disseram: “Ótimo, ótimo.” E o pai, que tinha a religião do dinheiro e a ideia fixa da pompa, exigia, esfregando as mãos: — Quero um casamento de arromba! — e sublinhava: — Um casamento que deixe todo mundo besta! Preparativos nupciais Enfim, foi proclamado o noivado. O velho — que era de origem plebeia e tivera de criar, tostão a tostão, a própria fortuna — queria um vestido de noiva inédito e deslumbrante, que embasbacasse a cidade. Acirrava as mulheres, dando murros na mesa: “Gastem sem dó nem piedade.” Na sua mania, fazia cálculos alucinados: “Um vestido de uns cem, duzentos contos.” Tal desperdício arrepiava as presentes. A própria noiva sentia-se desfalecer. Mas ele, desvairado, batia nos próprios bolsos: “Gastem! Eu pago! Pago!” Sob esse estímulo, todas as mulheres da casa se entregaram a um verdadeiro delírio. A mania de grandeza se transmitiu e se generalizou. Catou-se por entre páginas de revistas o figurino ideal. Afinal, descobriu-se um modelo encantador. O velho olhou e deu sua adesão: “Bacana.” A filha, muito mais aristocrática que o pai, suspirou: — Como é bonito, meu Deus! Um batalhão de costureiras pôs-se a trabalhar, dia e noite, no vestido mágico.

Quando uma delas cansava, o velho vinha lá de dentro com a ideia do suborno. “Eu pago extraordinário! Dou gorjeta, o diabo!” Já a cerimônia estava com data marcada. E quando o vestido ficou pronto, uma meia dúzia de parentes mais chegadas, inclusive a mãe, se fecharam com a noiva no quarto. Então lânguida, delicada, com seu aspecto de flor de luxo, Margô vestiu peça por peça. Houve um momento em que só ficaram faltando a grinalda e o véu. Ao redor, havia histerismos. Primas, tias, cunhadas, suspiravam: — Que amor! Que amor! Na verdade, era algo de indescritível. No meio de tanta alvura, a fragilidade física de Margô era ainda mais tocante. Faltavam uns 15 dias para o casamento. E, à noite, depois do jantar, ela se queixou de palpitações. As pessoas próximas se entreolharam num pavor de pneumonia. Alguém sugeriu: “Vai ver que foi um golpe de ar!” Passou. Mas na hora de se despedir do noivo, Margô fez-lhe o pedido: — Precisava de um favor teu. Ele, sempre cavalheiresco, limitou-se a dizer: — Dois. Margô baixou a vista, fugindo do seu olhar intenso: — Eu queria adiar o nosso casamento. Mistério Justiça se lhe faça: ele foi impecável. Explicou que naturalmente estaria muito interessado em que o casamento fosse o mais rápido possível. “Mas já que você quer, meu anjo…” Um pouco vaga, Margô explicou que não se sentia bem, que devia ter alguma coisa e, enfim, que andava nervosa, etc., etc. Paulo com sua polidez irrepreensível afirmou: “Por mim não há dúvida.” Quem se doeu com a transferência foi o velho. Estava mais ansioso pelo casamento do que os noivos. Gemeu, desabando numa cadeira: — Que caso sério! Que caso sério! Margô foi ao médico, que a examinou meticulosamente. Não achou, no seu estado, a menor novidade. Continuava fisicamente delicada, mas não apresentava nenhum sintoma que sugerisse doença.

Passaram-se dois, três, cinco meses. A família do noivo estranhava: — Que diabo! Vocês se casam ou não se casam? Ele parecia abdicar dos próprios direitos: — Quem decide é Margô. Protesto geral: — E você não pia? Ora veja! Não está certo, não está direito! Sob a pressão dos parentes, foi conversar com a noiva: — Meu anjo, precisamos marcar uma nova data. Ela suspirou: — Já? Vamos esperar mais um pouco. Como ele insistisse, embora com um máximo de tato e delicadeza, Margô acabou concordando. Houve um conselho de família, com a presença dos noivos, fixou-se o casamento para daí a três meses. Todos se animaram de novo. Houve a febre dos preparativos. Mãe, tias e amigas se reuniam planificando a festa. Foram ver se o vestido de noiva estava com alguma mancha; fizeram, nele, uma revisão minuciosa, com medo de alguma possível barata. O pai, com sua vocação para o desperdício, foi de uma liberalidade estupenda, outra vez: — Acho mais negócio fazer outro vestido! A mãe, que era uma senhora fina, interrogou os noivos: “Como é? Vocês vão viajar?” Margô teve que admitir: “Não pensamos nisso.” Então, a santa senhora fez-lhe uma repreensão: “Minha filha, acho você uma noiva tão não sei como; muito desanimada.” Sorriu, lânguida: “Sou assim, mamãe.” E a outra: “Está errado. Você deve se corrigir. Onde já se viu?” Finalmente, deu para a filha e o futuro genro a sugestão: — Se eu fosse vocês, sabem o que eu fazia? Uma viagem! — e já animada, já excitada pela própria ideia, continuou: — Casamento sem viagem de núpcias é tão sem graça! Vocês podiam ir à Europa, aos Estados Unidos! O noivo pareceu impressionado; comentou, grave: “Boa ideia.” Virou-se para Margô: “Você não acha, Fulana?” Ela respondeu: — Não. Acho pau. Gosto de ficar em casa. Dois dias depois, pediu que se adiasse, de novo, o casamento. Houve assombro na família. Crivaram-na de perguntas: “Mas adiar por quê? Qual o motivo?” Ela, desesperada, procurou um motivo, como se estivesse disposta a inventá-lo; disse, por fim: “Ando nervosa.” Insistiram, e a menina acabou perdendo cor, pulso, até desmaiar. Uma semana depois, a mãe foi sondá-la: “Você gosta mesmo do Paulo, minha filha?” Disse que sim, que gostava, mas que… Ainda uma vez, o noivo foi magnífico: concordou com o adiamento. A sogra Quem não gostou foi a futura sogra.

Chamou o filho. Instigou-o: “Essa menina está fazendo você de gato e sapato. Isso não é papel! Onde é que nós estamos?” Ele, que adorava a noiva, que a colocava acima de tudo e de todos, cortou o debate: “Vamos mudar de assunto, sim, mamãe?” A velha, porém, era tremenda. Largou o filho, com as seguintes palavras: “Está certo, não se fala mais nisso. Mas quero te dizer uma coisa: aqui há dente de coelho.” E o fato é que, sem dizer nada a ninguém, ela andava desconfiadíssima. De quem ou de que, nem ela própria saberia dizê-lo. Nesta mesma tarde, porém, recorreu a vários conhecidos, atrás de uma informação, até que descobriu um detetive particular. Chamou o homem; perguntou: — O senhor é discreto? — Um túmulo! — Ótimo. Eu preciso mesmo de um túmulo. Trata-se do seguinte… Incumbiu o sujeito de acompanhar os passos de Margô; advertiu: “Pode ser palpite meu, mas não custa apurar.” O Fulano concordou, grave: “Evidente! Evidente!” Deixou-o, com a super-recomendação: “Ninguém pode saber disso!” Quarenta e oito horas depois, o detetive reaparecia, de olho esgazeado. Contou, longamente, o que apurara. De vez em quando, interrompia o relatório para exprimir seu estupor: “De arder! De arder!” Assombrada, a velha balbuciou: “Eu só acredito vendo com os meus próprios olhos!” E o detetive: “Amanhã, eu mostro o homem à senhora!” O bem-amado No dia seguinte, encontraram-se a velha e o detetive na porta de uma companhia de ônibus. Súbito, o profissional indica: “Olha o homem!” Ela espiou. Lá vinha ele, no meio de outros motoristas, um negro gigantesco. Segundo apurara o detetive, ele saíra, no último carnaval, no rancho, de escravo etíope, com o dorso nu e retinto. A velha, fora de si, gaguejava: “Quer dizer que é esse o namorado de minha nora?” O detetive pigarreou: — Isto é, mais do que namorado. Eu apurei tudo, direitinho. Tenho endereços, o diabo. E posso provar. Então, a velha cambaleou. Seu estômago se contraiu, sofreu, ali mesmo, uma náusea violenta. Afastaram-se; ela pagou o preço que ele impôs e partiu num táxi. Como era uma mulher viril, de muito gênio, preferiu ir, de uma vez, à casa da menina.

E, lá, fez um escândalo medonho. Quiseram expulsá-la; foi chamada de louca. Ela, em desespero de causa, virou-se para a própria Margô que, sem uma palavra, ouvia tudo: — É verdade ou não é? Todos se voltaram na direção da menina. Então, aquela mocinha frágil, fina, que desfalecia ao aspirar um perfume mais intenso, ergueu o olhar firme, quase cruel. Disse apenas, sem medo: — É verdade. A ex-futura sogra saiu dali feliz e vingada. Foi um escândalo pavoroso. O pai veio, esbravejante. Falou em dar tiros. Ela o conteve com a ameaça: “Se fizer isso, eu me mato!” Ante a perspectiva do suicídio, a família capitulou. Tiraram o rapaz da companhia de ônibus, arranjaram um emprego. E, um dia, casaram-se às escondidas. No seguinte carnaval, quando o sogro passava, de Cadillac, pela praça Onze, viu o genro, num rancho — fantasiado de escravo etíope. 3 – Agonia Uma semana antes do casamento, foram os dois ao cinema ver um filme, se não me engano, de Clark Gable. No fim, o mocinho era assassinado da maneira mais ignominiosa e pelas costas. E, assim, varado de balas, Clark Gable agonizou e morreu no colo da mocinha. Alberto saiu do cinema indignado: — Ora, bolas! — Quê, meu filho? E ele: — Ah, se eu soubesse que acabava assim, não vinha, nem amarrado! — Eu gostei. O rapaz parou, no meio da calçada: — Gostou? Oh, toma jeito, Conceição. Tira o cavalo da chuva! Te digo mais: foi o fim mais besta que eu já vi na minha vida! Ela, temperamento macio, doce, não insistiu. Tinha horror às discussões. Mas, no fundo, gostara mesmo do desfecho sinistro. As fitas que acabavam mal, em morte, agonia e luto, causavam nela um duplo sentimento de fascínio e repulsa. A coisa que mais adorava era ver a heroína, de luto fechado, chorando o bem-amado morto. Ou vice-versa. E quando não havia, em causa, um morto ou morta, ela, na plateia, ao lado de Alberto, bocejava, desinteressada de tudo e de todos, querendo voltar para casa.

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